Por José Romero
Araújo Cardoso - Marcela
Ferreira Lopes
Capistrano de
Abreu, célebre historiador cearense, denominou a formação cultural sertaneja,
fruto da miscigenação das raças branca, indígena e negra, como civilização do
couro,
enquanto Paulo de Brito Guerra e Benedito Vasconcelos Mendes
definiram-na em função da labuta do gênero humano que habita a hinterlândia no
desafio constante à inclemência da seca.
Paulo de Brito Guerra
Benedito Vasconcelos Mendes
A organização
do espaço sertanejo esteve desde o início da colonização fortemente atrelado à
importância auferida pela pecuária no ensejo da própria ocupação territorial
das terras adustas do semiárido.
O
abastecimento de carne para a zona da mata açucareira constituiu-se na razão
econômica da expansão para o interior do atual território nordestino, tendo em
vista a impossibilidade de criar animais de grande porte nas terras destinadas
ao suporte mercantil no quinhão que coube a Portugal quando da assinatura do
Tratado de Tordesilhas.
A exemplo da
área açucareira que se firmou através da existência de grandes latifúndios em
consonância com pequenas extensões de terra trabalhadas por homens livres e que
se responsabilizaram pelo abastecimento da região com produtos alimentícios de
origem agrícola, o semiárido também teve na distinção entre animais de grande
porte e de pequeno porte a cristalização de status social.
Possuir gado
bovino em grande número significava sinônimo de poder, enquanto dispor de
rebanho caprino definia a situação de cada um na escala social. A cabra, ou
vaca do pobre, era criada, como ainda é hoje no conjunto regional, pelas
pessoas que detinham menos poder aquisitivo.
Descobriram
que o traslado do gado vivo era extremamente inviável, pois nas longas
caminhadas os animais perdiam peso e se desvalorizavam consideravelmente.
Surgiram então as oficinas, as charqueadas nordestinas, responsáveis pelo
fabrico da carne de sol.
O
aproveitamento do couro para a confecção de apetrechos usados no cotidiano deu
ênfase à definição de Capistrano de Abreu para a civilização surgida no
semiárido a partir do motivo econômico que ensejou todo processo de ocupação da
hinterlândia.
A vegetação
extremamente espinhenta fez com que o vaqueiro nordestino se diferisse dos
outros campeadores de gado espalhados Brasil a fora. O couro passou a ser
utilizado na confecção de gibões, chapéus, cantis, alforjes, luvas, silhas,
selas, perneiras e uma gama de outros apetrechos de trabalho, indispensáveis
para que o campear do gado fosse realizado no semiárido.
Impossível
adentrar a caatinga se não estivesse bem protegido das verdadeiras armadilhas
representadas pelos dilacerantes espinhos das inúmeras espécies vegetais que
fazem da caatinga um desafio. Quando das pegas de boi no mato, tempo de
marcação das rezes, visto que não havia cerca divisando propriedades, era
necessário que o vaqueiro estivesse bem protegido, caso contrário seria fatal à
integridade física dos valentes campeadores de gado do
semiárido.
Era impossível
que o vaqueiro sertanejo enfrentasse as duras condições apresentadas pela
ecologia da caatinga se não houvesse uma adaptação ao meio. Dessa forma, o
couro dos animais abatidos foram definindo a própria condução cotidiana da
região.
Com o couro,
os sertanejos passaram a fazer verdadeiras obras de arte, usando-o em camas,
cadeiras, estofados, mesas, portas, enfim, na própria construção cultural que
se efetivou enquanto produto direto da habilidade humana.
Quando das
grandes seca, a exemplo da ocorrida entre os anos de 1877-1879, o couro dos
móveis e das formas artesanais que passaram a ser feitas no semiárido, foi
usado como meio de sobrevivência. Retiravam o couro para servir de alimento,
pois, conforme Rodolfo Teóphilo, somente no Ceará cerca de trezentas mil
pessoas ou morreram de fome e de sede ou emigraram para a região norte,
sobretudo para os seringais do atual estado do Acre, na época pertencente à Bolívia.
As pregações
do Padre Cícero Romão Batista foram importantes para que os sertanejos se
convencessem que a única saída para os filhos da civilização do couro e da seca
naquela época de aflição era tentar a vida fora do Nordeste semiárido. Navios
lotados transportaram flagelados das secas até Óbidos, no Pará. De lá seguiram
subindo o curso do Amazonas rumo ao desconhecido.
Somente quando
o mercado externo deu sinais de alento econômico no que tange à utilização do
couro para produzir determinados bens de consumo, foi que começou a se efetivar
importante momento para o produto de origem animal que antes era utilizado
apenas pelos sertanejos em suas vidas diárias.
Coronel Delmiro Gouveia
Coronel
Delmiro Gouveia conseguiu amealhar fortuna exportando, não raras vezes
contrabandeando, peles e couros bovinos e caprinos para importantes firmas
estrangeiras, acumulando capital suficiente a ponto de estruturar a ousada
experiência industrial da Fábrica Estrela na Vila da Pedra (Hoje Município de
Delmiro Gouveia) em Alagoas.
A civilização
da seca, por sua vez, foi determinada, principalmente, conforme seus
definidores e principais estudiosos, através da implementação de estupendas
obras de engenharia empírica que garantiram em certas épocas o fomento à
sobrevivência do sertanejo frente à inclemência das estiagens prolongadas.
O
aproveitamento de matérias-primas encontradas no bioma catingueiro só foi
possível graças à invectividade sertaneja, pois certos produtos obtidos através
do extrativismo realizado na região seria impossível se não tivesse havido
ênfase a projetos artesanais como a prensa de cera de carnaúba, fabricada com o
miolo da aroeira, árvore nativa do semiárido.
O algodão,
detentor, até bem pouco tempo, de grande valor no mercado externo não teria
condições de ser comercializado se não tivesse havido a implementação da
bolandeira que descaroçava um dos principais motores econômicos da região até o
advento da praga do bicudo.
A inteligência
do homem do sertão fez surgir rústicos engenhos que transformavam o melaço da
cana em rapadura, alfenins e outros produtos de larga aceitação no mercado
interno. Ao contrário do litoral, cujo artesanato teve caráter contemplativo,
no semiáridos foi à sobrevivência perante os desafios suscitados pela natureza
extremamente hostil.
Civilização
firmada na superação de obstáculos, o semiárido nordestino desenvolveu
caracteres próprios que determinaram a originalidade de um povo forte que luta
de forma estoica contra os ditames da natureza inclemente e a indiferença dos
poderes constituídos que ainda insiste em negar direitos inalienáveis à
dignidade humana.
José Romero
Araújo Cardoso. Geógrafo. Escritor. Professor-Adjunto IV do Departamento de
Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte. Especialista em Geografia e Gestão Territorial
(UFPB) e em Organização de Arquivos (UFPB). Mestre em Desenvolvimento e Meio
Ambiente (PRODEMA/UERN).
Marcela
Ferreira Lopes. Geógrafa/ UFCG/CFP. Graduanda em Pedagogia/UFCG/CFP.
Especialista em Educação de Jovens e Adultos com ênfase em Economia Solidária
/UFCG/CCJS.
Enviado pelos autores deste.
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http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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