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sábado, 30 de maio de 2015

ANGICOS 1938 – FINAL


Madrugada em Alagoas quando a tropa, numa pisada felina, foi-se aproximando de Lampião. Eram quatro horas da manhã. Bezerra dera ordens terminantes aos seus homens para que aguardassem um sinal convencionado a fim de abrir fogo. No entanto, os soldados haviam se aproximado demais do local.

O grotão estava semi-silencioso. Fazia instantes que Maria Bonita acordara, deixando a tenda com uma vasilha na mão, para vir acender o lume e fazer café da manhã no terreiro. Um soldado do aspirante Ferreira, que se aproximara demais do coito, não se conteve com medo talvez de ser descoberto. Esquecendo a ordem do tenente, rompeu fogo por sua conta.


Dera tempo, no entanto, a que Maria Bonita servisse um cafezinho ao Capitão. A rajada da costureira do soldado foi dada quase à queima-roupa. Pois a cinco metros do tenente Bezerra estava José Sereno, já desperto. O aspirante Ferreira Tinha Virgulino a poucos metros da sua mira. A rajada do soldado deu início, assim, ao tiroteio.

Luiz Pedro, saltando de dentro de uma tenda, chapéu não mão, gritou:

- Compadre Lampião, vamos embora que é gente muita!

Maria Bonita, aturdida, teve tempo ainda de replicar a Luiz Pedro:

- Luiz, você não disse que nunca abandonaria o seu compadre Lampião?

Aí Luiz Pedro estacou. Não foi mais homem para correr. Não pode, porém, reagir a violência e subitaneidade do ataque. Quando ia fazê-lo, caiu trespassado, pesadamente.

Outra rajada atingira de frente, na cabeça e em várias partes do corpo, o Capitão Virgulino. Ele já estava de rifle na mão, mas vergou sobre os pés, esbujando no chão. Maria correu para junto dele, as mãos postas aos céus, orando talvez. Dizem que as últimas palavras do Capitão foram de mensagem à polícia:

“Não tenho dinheiro”

Os que puderam escapar, fizeram-no saltando as pedras do riacho, numa debandada infernal, acometidos que foram de surpresa. A polícia calculou em meia centena o número dos que estavam com Lampião em Angico.

O combate fora de curtíssima duração, um quarto de hora, pouco mais ou menos.

Morta, ao lado do Capitão, estava Maria Bonita. Trajava a defunta um vestido de seda cinza, de sombra estampada, quando o cabo Bertoldo, degolou-a, com um só golpe de facão “Jacaré”.

“Sua pele era macia, seu corpo não tinha uma cicatriz, parecia feito de louça”, confidenciou, mais tarde, em prantos, o cabo degolador.

As tendas de chita, onde Lampião e o bando dormiam, arriaram sobre as armações de forquilhas. Pelo chão, no fim da refrega, viam-se, dispersos, os objetos de usos daquela estranha comunidade.

Estavam mortos Luiz Pedro, Desconhecido, Cajarana, Diferente, Mergulhão, Elétrico, Caixa de Fósforos, Quinta–feira, e Enedina, esta última mulher de José de Julião, que logrou escapar.

O soldado José Panta, ao ver tantos corpos estendidos, disse ao cabo Bertoldo:

- Bertoldo, tem gente morta aqui que dá agonia!

- Viva Nossa Senhora! – Gritou, em resposta, o cabo alagoano, cercado pelos soldados Honoratinho, Antonio Ferro, Agostinho e Abdon.

O aspirante Ferreira ordenou a degolação dos cadáveres. Um único soldado da tropa morrera, o de nome Adrião, e um outro saíra ferido. O corpo do morto foi recolhido pelos companheiros.

 Adrião Pedro de Souza é o primeiro da esquerda - Esta foto pertence ao acervo do professor, escritor e pesquisador do cangaço Antonio Vilela de Souza

Reza a tradição que o sargento Aniceto, para apoderar-se dos troféus, não perdeu tempo em retirar dos cangaceiros os anéis que traziam. Empunhando o seu facão, decepava-os em bloco, embolsando os dedos ainda com os anéis.

Depois da degola, contavam-se onze cabeças. Elas foram postas em latas de querosene, imersa em álcool e sal e levadas às canoas na beira do rio.

No percurso de volta, rumo a Maceió, pelas estradas, formou-se alegre cortejo: três caminhões, quatro carros.

Abismados, na orla dos caminhos, pelas ruas e praças das cidades e povoados, os sertanejos contemplavam aquelas medusas retardatárias. Como as gentes do nordeste baiano haviam olhado, estarrecidas, quarenta anos antes, a cara disforme de Antonio Conselheiro.

Durante o trajeto, conseguiu-se formol para conservar as cabeças de Lampião e Maria Bonita. As demais fediam, no seu apodrecimento.

Em Limoeiro de Anadia, numa das paradas desse museu ambulante de horrores, olhando fixamente a cara de Virgulino Ferreira da Silva, um homem do povo comentou:

- Parece mentira, mas é o Capitão mesmo!

As mocinhas de Palmeira dos índios ficaram exultantes com a passagem do circo exótico, do teatro medieval. E, na vila de Mosquito, outro sertanejo assim falou:

- Mataram o Capitão, eu sei, porque oração forte não vale dentro d’água...

Aludia ao riacho seco, cujas pedras serviram de túmulo a Virgulino Ferreira, apenas coberto por elas, no grotão dos angicos.

No momento em que se feriu o combate, o tenente João Bezerra não tinha a menor noção do seu alto feito d’armas. Soube que Lampião havia morrido quando dele se aproximou um soldado, com uma cabeça na mão, no meio daquela fumaça que se levantava em derredor e do nevoeiro chuvoso que se abatia dentro da madrugada, comunicando-lhe isto:

- Seu tenente, o cego também morreu.

E levantou, diante do espantado comandante, que fora levemente ferido, a cabeça em que se reconhecia o olho vidrado do Capitão Virgulino Ferreira da Silva Lampião.

Aquele olho terrível que nos fitava do fundo da histórias do sertão...

FIM!
Fonte: Capitão Virgulino Ferreira: Lampião
Autor: Nertan Macêdo
Edições O Cruzeiro Rio de Janeiro
Ano: 1970

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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