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terça-feira, 10 de maio de 2016

CAFÉ COM O PASSADO

*Rangel Alves da Costa

Nas minhas andanças de fim de tarde, pelos desalentados caminhos do dia a dia, eis que avisto aqueles que eu jamais imaginei pudesse encontrar lado a lado: o passado e o presente. O primeiro, velho amigo de estrada, já é conhecido de muito tempo, de outros percursos no mundo. Já o segundo, mesmo sendo avistado ali e acolá, afeiçoa-se mais a um conhecido desconhecido e sempre parece tramando alguma coisa que não quer revelar.

Mas eis os dois em ligeira conversação, com o passado retirando da memória tudo que desde muito desejava revelar, porém sem a compreensão e a paciência do presente, que simplesmente dizia estar muito ocupado para aquela prosa, mas prometia para outro dia um encontro mais demorado. E assim o presente partiu apressadamente, deixando para trás o passado envolto em pensamentos. Foi quando me aproximei um pouco mais e o convidei para uma xícara de café.

O passado aceitou, mas com a condição de ser café verdadeiro, daquele cujo grão é batido em pilão de quintal, peneirado e depois colocado em chaleira já de água fervente por cima do fogão de lenha. Servido no bule e não em garrafa térmica, com açúcar grosso de engenho e não aquele pó branco refinado pela máquina. E talvez acompanhado de um bolinho de chuva, biscoito de nata ou bolo de macaxeira, mas com preparo na cozinha e no forno de lenha, jamais comprado pronto e sem sabor. Mas tudo é difícil demais, tentei explicar, pois é tão difícil encontrar um pilão no quintal como o café saboroso e perfumado fervendo em fogo de lenha.

Relutou o quanto pôde, porém acabou aceitando um café comum, mas desde que não fosse solúvel, sem gosto, imprestável ao ritual prazeroso de colocar o lábio na borda da xícara e logo sentir vontade de se queimar. Café em pó ainda é possível arriscar, afirmou o passado, mas desde que preparado em chaleira antiga, no tempo certo e servido sem estar requentado. E sem qualquer bolo, biscoito ou bolacha. E disse mais: Já distante o tempo em que a cozinha era o melhor lugar da casa e esta vivia sempre perfumada pelos quitutes das velhas senhoras, das vovós sempre preparando surpresas saborosas para os seus netinhos.

Quase não aceita o café colocado à mesa. Só concordou em experimentar porque estava quentinho e de negrume forte, leitoso. Fez descer um gole, mais outro, pediu licença para preparar um cigarro de palha e se pôs em prática. Tirou do bolso um pequeno embrulho, de dentro retirou palha seca de milho, um pedaço de fumo e um canivete miúdo. Segurou o pedaço de fumo com uma mão e com a outra foi pinicando aos poucos, até juntar sobre a mesa a quantidade certa para o cigarro. Em seguida abriu a palha de milho, espalhou o fumo e se pôs a dobrar. Depois levou o cigarro à boca para amaciá-lo e fechar a palha. Estava pronto o cigarro.


Pediu mais café e pouco tempo depois já estava baforando e ansioso para conversar e, certamente, sobre si mesmo, o passado. Mas tomei como surpresa ao ouvir que era preciso primeiro enxergar o presente para avistar o passado, o ontem, o tempo ido. Só se valoriza o passado quando o confronta com o presente. Daí ser costumeiro ouvir que hoje já não se faz mais como antigamente, que agora as coisas não chegam nem aos pés de como eram antigamente, que tudo agora é feito para acabar sem deixar lembrança ou recordação. Os móveis antigos são exemplos disso. Mesas, oratórios e cristaleiras de cem anos atrás ainda permanecem firmes, resistentes. Mas o móvel bonito de hoje já estará esfarelado amanhã.

Até a pessoa de hoje é muito diferente daquela de outros tempos, foi relatando o passado. De uns tempos pra cá, parece mesmo que a maioria nasce sem o tempero da vida. Vem ao mundo sem o sal da temperança para viver num mundo insosso. Ao sangue falta a pitada de coragem, de vontade de luta, de destemor, de galhardia. O coração parece completamente destemperado. E no corpo inteiro, desde a alma à sola do pé, o pouco ou inexistente tempero da honra, do caráter, da verdade, da moral e da decência. Por isso mesmo é quase nada mais se exemplifica pelo agora, mas pelo que se faz distante na estrada. E comumente se diz que homem de honra era fulano ou sicrano, que bastava a palavra e não havia escrita que tivesse mais validade do que o dito.

E prosseguia o passado, sempre buscando no contraste com o agora a valia de outros idos. Dizia que muito se fala na arrogância e no chibatamento dos velhos coronéis, aqueles senhores de latifúndios e vidas, bem como das botinas dos generais que um dia pisaram sobre muita gente. Mas hoje, sem a violência e a perseguição de ontem, quem não sente falta de pessoas de pulso forte, que comandem com zelo e seriedade aquilo que devam comandar? E o mais importante, que não tergiversem com a realidade da nação nem com o sofrimento do povo.

E sobre o futuro, perguntei, por fim, ao passado. E este respondeu: Do jeito que a coisa anda só restará o passado, e desde muito passado. Nem presente nem futuro merecerá ser relembrado. E quem viver verá.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 


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