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terça-feira, 7 de junho de 2016

SILA E O CANGAÇO QUE TODOS CONHECEMOS

Por Alfredo Bonessi

O Cangaço foi um fenômeno social que teve como berço o Sertão Brasileiro. Originou-se logo após o descobrimento do Brasil e germinou nas cidades interioranas do Nordeste Brasileiro,  onde a lei era a vontade do mais forte, o  senhor dono das terras. Esse fenômeno surgiu como um grito de revolta e indignação aos desmandos desse poder absoluto,  que estava acima de todos e até mesmo da própria lei – pode-se dizer que o Cangaço foi uma revolta de homens valentes contra as formalidades  sociais da época – insurretos – insubordinados contra as normas vigentes de uma sociedade em transição entre a burguesia portuguesa escravocrata e preconceituosa  e o pobre sertanejo de enxada na mão, escravo da fé, do dogma religioso,  da superstição,  vítima da natureza inclemente que não aceitava a intromissão  de pessoas frágeis, sem vontade de viver e fáceis  de matar.  

O Cangaço foi composto por gente sertaneja, da terra, que nada temia, nem mesmo a morte. Não se tem noticias que  um Cangaceiro não tenha se comportado com valentia e dignidade na hora da morte, mesmo ferido e sabendo que a hora derradeira havia chegado.

Na guerra contra o  Cangaço valia  tudo, e nunca na história das sociedades a fofoca matara tanta gente. Bastava falar mal de um inimigo, inocente ou não, tanto para a polícia  como para os cangaceiros, que seria morte certa dessa pessoa.

O Cangaço como todo o movimento social fora-da-lei cometeu exageros e crimes hediondos, a maioria injustificáveis, às vezes contra pessoas inocentes, algumas delas a serviço da lei, como prova de desacato e provocação a corporação a que serviam.

O Cangaço começou a definhar quando atrapalhou o comercio, impedindo o progresso local, e quando surgiram as estradas e o rádio de comunicação, quando veículos motorizados foram empregados em sua perseguição e quando sertanejos foram colocados como guias a frente  das volantes a procura dos cangaceiros. Podemos afirmar que Lampião, principal chefe de bando e considerado o Rei dos Cangaceiros, morreu sem saber da tática principal da policia que acabaria o levando a morte:

-  a intriga entre um coitero e outro;

- quando a policia descobria um coitero, o deixava de molho, a espera de uma boa oportunidade para agir contra ele, normalmente o aliciava como informante, ao invés de puni-lo com a chibata e a tortura;

- o cerco de várias volantes ao mesmo tempo, se reunindo em um lugar pré-determinado pelo comandante - chegando ali recebiam novas ordens e novos itinerários de busca;

Essa estratégia, essa nova forma de combater,  longe dos olhos dos coiteros, fazia com que os informes dos movimentos da policia  que chegavam a Lampião eram aqueles que a policia desejava que ele  soubesse, mas não eram verdadeiros,  o único objetivo era deixar transparecer que a força estava inativa, inoperante, estava acomodada, quando na verdade mais de 3 mil homens se movimentavam sem cessar, diuturnamente, fechando o cerco contra o bando de cangaceiros.

Muitos chefes de bando e historiadores culpam as mulheres como o principal fator de extinção do Cangaço – na minha ótica, a mulher favoreceu ao afrouxamento das regras de sobrevivência do cangaço, por questões obvias: elas não combatiam, não cozinhavam, eram mais sensíveis e delicadas,  simplesmente eram mulheres mesmo do pessoal e por tudo isso o bando precisava  sempre andar beirando a água, sejam  nascentes ou rios ou caldeirões de água depositadas pela chuvas.

A presença da mulher foi marcante no bando dos cangaceiros porque o número de estupros das sertanejas diminuíram;  muitas mulheres do bando mandavam mais que os homens, davam as suas opiniões pessoais nas questões internas do grupo, salvaram pessoas da ponta do punhal, e foram algozes na  condenação de outras cangaceiras a morte, nos casos de saídas do bando. Pode-se dizer que com a chegada das mulheres a tenacidade guerreira do grupo de cangaceiros arrefeceu um pouco, os homens se acalmaram mais – o bando virou um feudo do crime, onde havia rei e rainha, quem mandava e quem obedecia; todos os olhares e toda a consideração eram  para as mulheres, principalmente a mulher do chefe. Os homens eram ferozes, valentes, justiceiros, guerreiros, altivos, prepotentes, arrogantes, mandões, para os de fora do bando, mas dóceis, afáveis, atenciosos, cortejadores, galantes para com as suas mulheres – as mulheres eram para eles um precioso objeto, um bem valioso, mais que a sua própria vida – a mulher representava  a  honra, o  status, o  poder de seu dono -   por isso era  coberta de jóias - era o centro de todas as atenções  por parte dos membros do grupo – por causa disso  a cangaceira  era o alvo preferido das piadas e descompostura dos policiais durante os combates.

Sila era uma criança quando se comprometeu que seguiria com o cangaceiro Zé Bahiano, mas  acabou fugindo de casa com  Zé Sereno, primo desse. Em termos de sanguinário e violento não se sabe quem era o maior, mas quando os comparamos ao dinheiro e  a agiotagem,  Zé Bahiano é infinitamente mais rico que Zé Sereno. Sila alegou sempre para a imprensa que a entrevistava,  que seguiu ZÉ Sereno porque esse ameaçou toda a sua família – não acreditamos nisso. O fato é que esses cangaceiros deixavam transparecer uma riqueza e um poder que só existia na mente deles, simplesmente impressionava as mocinhas da época, que viviam em completa servidão na casa dos pais, longe de tudo e que precisavam sobreviver da roça queimada pelo sol, da escassa chuva quando havia, nutrindo a esperança de ver  qualquer um   homem  que raramente  passava pela frente de sua casa. Normalmente a vida da sertaneja se resumia entre a roça e o curral, a cozinha, e as noites enluaradas, onde  contemplava as estrelas do firmamento, deixando-se embalar pelos  devaneios dos causos e das historinhas contadas pela avó e pela mãe – até que o sono as separavam em mais uma noite de sonhos e de ilusões.

Acertada a fuga,  Sila saiu pela janela de sal casa e logo adiante, na primeira noite,  foi estuprada em cima de uma enorme pedra -  foi mulher como devia ser a mulher de um cangaceiro – escolha feita por ela, fato esse marcante para sua mente juvenil de 14 anos, e que nunca mais saiu de sua memória. Daí por diante foram  correrias, fugas espetaculares da polícia,  noites mal dormidas, chuva, frio, fome, sede e abortos provocados,  algumas raras vezes o sossego a beira de uma fogueira, os encontros com os outros bandos, a carne assada nas trempes, o café delicioso  e o dedo de prosa com as amigas, as costuras e os bordados das roupas do pessoal e o preparo do enxoval do novo filho. Mas amor de sonho de menina nunca houve – Zé Sereno tinha muita coisa para se preocupar – precisava viver daquilo e sobreviver como  fera em um  ambiente hostil e ainda ludibriar a polícia – dependia do coitero para tudo – o cangaço era movimento  e o grupo de cangaceiros, chefiado por ele,  não podia ficar parado em um só lugar. Viver aquela vida,  que não era vida e que não podia deixar de vive-la,  foi um tormento para Sila.

Ao romper do dia naquela manhã de 28 de julho de 1938 estava acordada quanto um tiro isolado despertou a natureza na Grota de Angicos – Sergipe. Em seguida mais tiros,  levantou-se rapidamente e saiu  correndo em uma direção seguida de alguns companheiros. Balas ricocheteavam por todos os lados, a macega espinhenta se dobrava a sua frente pelo corte dos projéteis. Não teve tempo de olhar para atrás . Viu uma amiga cair morta,  amparou um cangaceiro que estava com o braço dependurado e quando os tiros ficaram mais longe se reuniu com os sobreviventes do grupo de cangaceiros para tomar um fôlego – estava milagrosamente  salva, mas toda lanhada nas pernas pela ação dos espinhos da caatinga.  
  
Depois vieram  as entregas – rendição para a policia – a viagem a São Paulo – o encontro com a cidade grande, berço de recolhimento de todo retirante nordestino. Seria nova vida ? – não foi. Apesar de ir fazer aquilo que mais gostava – costurar – sofreu  os efeitos que uma cidade grande provoca em todos os seus habitantes: a indiferença. Em um aglomerado urbano de milhões de pessoas, a atenção, o carinho e a afeição passam despercebidos,  de nada valeria gritar para a multidão que foi cangaceira.  Restou  criar os filhos e netos e conviver com o marido feroz e violento.

Em dado momento ressurgiu para as noticias de jornais, rádios e TVs onde tentava explicar o inexplicável: como foi que entrou para o cangaço. Viajou para muitos lugares, encontrou-se com outros remanescentes do cangaço – todos tinham algo a contar e a explicar, mas a grande maioria confundia datas e fatos, alguns escondiam mal feitos, outros não se lembravam de nada, mas grande parte deles  guardavam  silencio, ainda receosos da ação da justiça e da vingança por parte dos familiares das vítimas do cangaço.

Muito se tem escrito sobre  a guerra cangaceira – muito ainda se há de escrever – o tema é inesgotável. Sobreviveu a terra, o sol,  a caatinga. Ainda hoje o chão está marcado pelo  sangue dos policiais e dos cangaceiros – ainda hoje se pode ver as marcas das balas encravadas nas pedras e nos matos – ainda hoje os espíritos desses guerreiros se encontram nos caldeirões, nas aguadas da vida espiritual  para trocarem pensamentos dos feitos da guerra cangaceira  vivida na  terra.

Para o sertanejo nada mudou. A terra é a mesma, a política é a mesma, o gado morre do mesmo jeito, o sertanejo anda de moto, usa iPhone e possui computador. Em cada sertanejo de hoje existe um pouquinho de cangaceiro e um pouquinho de volante – e o pior bandido de todos que existe nesse momento são os políticos – com uma grande diferença dos guerreiros daqueles tempos – agem em nome da legalidade e são protegidos por lei.

Resta-nos  trazer aqui as palavras finais do grande chefe volante, Coronel João Bezerra,  que eliminou o Rei dos Cangaceiros, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião:

“Hoje eu não perseguiria Lampião. Hoje eu acho que ele não era bandido. Hoje existem bandidos bem piores do que ele”. 
(João Bezerra)
                             
Tarde demais.
Fortaleza,Ce, 05 de junho de 2016
Alfredo Bonessi – GECC - SBEC  

Enviado pelo professor, escritor e pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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