Por José Gonçalves
Em 1987, foi
gravada na Bahia a minissérie da rede Globo,“O pagador de promessas”. Escrita
por Dias Gomes e dirigida por Tizuka Yamasaki, a obra foi rodada em duas fases:
primeiro em Monte Santo, depois em Salvador. A peça já havia sido filmada
nos anos sessenta (1962), quando ganhou a Palma de Ouro, no Festival de Cannes,
na França, uma das mais prestigiadas premiações do cinema mundial.
A trama,
protagonizada por modestos trabalhadores rurais, inicia no interior da Bahia e
termina na capital do estado, onde finalmente ocorre seu desfecho. O pano de
fundo é o da religiosidade popular, que permeia do início ao fim o
comportamento dos personagens. O personagem principal, Zé do Burro, faz
uma promessa à Santa Bárbara, a fim de que Nicolau, seu burro de estimação,
seja curado de um grave ferimento provocado durante uma tempestade. Graça
alcançada, lá se vai o devotado lavrador cumprir sua longa e amarga penitência.
Portando
enorme e pesada cruz, e acompanhado de sua fiel companheira, Rosa, “o pagador
de promessas” sai do seu pequeno torrão e segue em direção a Salvador, à
procura da igreja de Santa Bárbara, santa esta cujo correspondente no Candomblé
é Yansã, a deusa das tempestades. Chegando ao local da promessa, depara-se
o personagem com um cenário completamente hostil à sua presença; longe do seu
ambiente familiar, como se fora um corpo estranho em meio à vasta multidão,
torna-se logo vítima da curiosidade pública, da perseguição policial e, por
último, da intransigência da igreja. Há também, por outro lado, aqueles que o
veem ora como um líder revolucionário – na defesa da reforma agrária – ora como
um defensor fervoroso da causa do Candomblé.
Acusado da
prática de sincretismo religioso, Zé (como Rosa prefere chamá-lo), é impedido
de adentrar o interior do templo, o que o deixa por demais enfurecido. Num
ímpeto de indignação, tenta em vão arrebentar as portas, e é contido pela
polícia com quem trava violento confronto. Acuado de todos os lados, mas
irredutível no seu propósito, é assassinado nas escadarias da igreja, sob o
olhar espantado de populares e seguidores das religiões afrodescendentes. Morre
sem conseguir cumprir a promessa que fizera à santa do milagre.
Para a
gravação da minissérie da Globo, novos elementos foram acrescentados ao texto
original, de modo a adequá-lo ao contexto sertanejo. O autor, velho conhecedor
dos conflitos sociais, já tendo tratado do assunto em obras como “Roque
Santeiro” e “O Bem-Amado”, foi buscar no sertão da Bahia, em Monte Santo, os
elementos de que precisava para recompor seu apreciável drama.
Inspira-se ele
na experiência de luta social levada a cabo pelo padre Enoque Oliveira, chegado
a Monte Santo em 1981. Luta social que consistiu em amplo e vigoroso trabalho
de articulação popular, incluindo desde trabalhadores rurais até jovens,
crianças e mulheres. O contexto era o dos movimentos populares, destacando-se
as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a luta pela terra, a reconquista de
sindicatos livres, a redemocratização do país. Movimentos populares que, no
caso específico de Monte Santo, despertaram a ira das forças reacionárias,
fazendo desencadear violenta onda de perseguição contra as atividades da
igreja, tendo como alvo principal a figura do sacerdote, que acabaria preso em
1985.
É a reforma
agrária um dos temas centrais da edição global de “O pagador de promessas”;
tema, aliás, muito em voga no momento em que se deu a gravação da peça, já que
eleito como uma das prioridades do governo do então presidente José Sarney.
Pela primeira vez, depois do golpe de 64, o assunto entrava na agenda oficial,
ganhando até um ministério – o ministério da Reforma Agrária. A questão,
todavia, não passava da pura retórica, sendo a realidade do campo completamente
diferente daquela apregoada pelos propagandistas da “nova república”. Nos rincões
do Brasil o que se viam eram os conflitos de terra, que acabavam, não raro, em
mortes e derramamento de sangue.
Assim,
mesclando ficção e realidade, a minissérie destaca a luta pela terra,
caracterizada por conflitos constantes entre posseiros e proprietários rurais.
Padre Eloy (Osmar Prado) é o líder religioso, comprometido com a causa dos
injustiçados e a principal referência no tocante à luta pela posse da terra.
Sua prédica, sedimentada na realidade social que o cerca, tem como foco
principal a libertação dos pobres e oprimidos.
https://zinebrasil.wordpress.com/2009/05/15/p-de-promessas-hq/
Durante uma
reunião com lavradores na casa paroquial, ele denuncia o sistema opressor que
nega o direito à terra e à vida: “o que eu procuro é dar a vocês consciência
dos seus direitos. E é por isso que eles querem tapar a minha boca. Mas não
adianta. Porque se entre 10 crianças que eu batizo oito morrem de fome antes de
completar um ano de idade, a gente tem que denunciar. E se essas duas que ficam
não vão ter escola pra estudar, nem um pedaço de terra pra trabalhar, a gente
tem que denunciar. A terra é um bem de Deus e a vida é um bem de Deus. Todo
homem tem direito a um pedaço de terra e a uma vida decente”.
Em estreita
sintonia com a memória regional, busca Eloy inspiração noutro líder popular,
Antônio Conselheiro, o fundador do arraial santo de Canudos. Em sermão na
igreja matriz, durante os festejos de Todos os Santos, enquanto é insultado
pelos representantes do poder local, ele evoca a figura do beato cearense: “há
quase cem anos, bem perto daqui, em Canudos, um homem chamado Antônio
Conselheiro e seus seguidores ocuparam terras que passaram a cultivar dividindo
a colheita entre si. O movimento comunitário de Canudos provocou a ira dos
senhores de terra que conseguiram mobilizar a polícia e o exército para
destruir a comunidade. Canudos virou cinzas, degolaram até o último
sobrevivente. Mas como disse o grande Euclides da Cunha, ‘Canudos não se
rendeu’. É neste exemplo que nós temos que nos inspirar”.
Em torno de
padre Eloy atuam lideranças camponesas, como Romualdo (Arildo Deda), Lula
(Diogo Vilela) e Zé do Burro (José Mayer), que depois partirá para Salvador,
carregando sua pesada cruz. São eles os responsáveis por soprar o “vento da
meia-noite”, o fantasma aterrador que tanto irrita o fazendeiro Sebastião
Gadelha (Carlos Eduardo Dolabela), dono das terras que há em toda aquela
redondeza. A ação consiste na derrubada das cercas e na ocupação das terras por
parte dos camponeses. Das mesmas terras que um dia pertenceram a eles
(camponeses) e aos seus familiares e que agora se encontram em poder do
truculento latifundiário.
O conflito se
estabelece e, mesmo diante das ameaças do grileiro, os posseiros não desistem
da luta. A questão atinge seu ponto crítico no momento em que se dá o
assassinato de padre Eloy, a mando do poderoso Sebastião Gadelha.
A figuração
foi composta por moradores da localidade e reuniu pessoas dos mais diferentes
segmentos sociais, como romeiros, feirantes, artistas, trabalhadores rurais,
lideranças comunitárias, dentre outros.
Projetada em
12 capítulos, a produção, que foi exibida no ano seguinte, acabaria vítima do
golpe da censura (da própria Globo), sendo reduzida a oito capítulos. As
abordagens mais contundentes acerca da reforma agrária e dos conflitos
políticos não foram até hoje ao ar, limitando-se a emissora em dispor tais
conteúdos em sistemas de mídia de leitura digital.
“O pagador de
promessas” é, sem dúvida, um marco da teledramaturgia brasileira. Com a
inteligência e maestria dos seus idealizadores, a fita articula de maneira
cativante os mais diferentes elementos do cotidiano brasileiro (em especial do
universo sertanejo), que vão desde os conflitos sociais, até as manifestações
de fé expressas por meio da religiosidade popular.
José
Gonçalves; Poeta e cronista
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
http://cariricangaco.blogspot.com.br/2016/07/o-pagador-de-promessas-e-o-movimento.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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