*Rangel Alves
da Costa
O tempo parece
não passar em diversos contextos e situações. Quando muito, apenas uns poucos
hábitos e costumes vão sendo enterrados com as gerações que se vão. Dependendo
da força do povo, de seu enraizamento e de sua manifesta vontade de
permanência, é como se o passado continuasse tão vivo como nos tempos mais
antigos.
Assim ainda se
avista na Rua das Pretas, uma moradia de descendentes de escravos em meio ao
mundo novo, ao urbanismo moderno. Descendentes, de distantes raízes, mas se
considerando ainda como aqueles primeiros que vieram de longe para o sofrimento
servil. Sem o tronco, a senzala antiga, o açoite, a dor na pele lanhada, o
sofrimento se alastrando em tudo, mas ainda a vida escrava pelas misérias,
carências e necessidades.
Alguns até
chamavam a rua esquecida e mal alinhada de Senzalinha. Outros iam além,
denominando-a de Rua do Tronco ou do Couro Cru. Mas é apenas a Rua das Pretas,
assim conhecida pelas negras velhas, as mães-pretas, que noutros idos recebiam
filhos e filhas de santo, convidados e curiosos para a batida dos tambores e
dos mistérios africanos. Santos negros, divindades do além-mar, entidades
trazidas das crenças e dos cultos negros e ali guiando a vida de tantos.
Na Rua das
Pretas chegava a madama endinheirada para os feitiços, as mandingas, as
proteções. Procurava esconder as traições, os adultérios, as safadezas tantas.
Também para acorrentar moço novo ao seu coração carcomido. Uma pagava quanto
fosse preciso para que o amante ficasse invisível aos olhos do esposo corneado.
E a preta dizia: O guerreiro diz que sua situação é fácil de ser resolvida. Ao
invés de usar a própria cama do casal para os encontros raparigueiros, que vá
chafurdar nos escondidos. E assim seu marido será o último a saber.
Ali chegavam
candidatos, políticos, autoridades importantes e até governantes. Todos em
busca de auxílio dos deuses negros e de proteção. Mas o que mais queriam saber
era sobre seus destinos políticos e eleitorais: E a preta dizia: Joguei mucunã,
concha de mar, pedra d’água e porção de vento, e tudo diz que tudo está em suas
mãos, que depende somente de você. Cumpra ao menos uma promessa, pague ao menos
uma dívida, aja com seriedade e honestidade ao menos uma vez na vida. Ninguém
tem tudo o que quer sem fazer sua parte na vida. A continuar assim, enganando a
tudo e a todos, a água da bacia não mostra outra coisa senão o esquecimento.
Por isso mesmo
que a maioria das pessoas saía de lá entristecida ou chorando. Lá chegava na
esperança que a preta-velha floreasse sua esperança e dissesse tudo aquilo que
desejava ouvir. Mas a negra não mentia, não traía seus conhecimentos antigos.
Falava pela voz dos caboclos, dos orixás, das entidades e deuses negros e, por
isso mesmo, apenas o que permitiam que falasse. A não ser que a própria pessoa
quisesse ser enganada e entendesse de uma forma aquilo que era dito de outra.
Hoje não há
mais mãe-de-santo, preta-velha ou mãe-negra na Rua das Pretas. Seus filhos e
filhas são apenas filhos do mundo, de uma vida dura e sacrificante. Ali impera
a pobreza, a carência, o esquecimento das autoridades, a desvalia da vida.
Pelos vastos quintais ainda existentes, apenas algumas plantas utilizadas
antigamente nos afazeres misteriosos. Uma galinha cisca num canto, um cachorro
adormece num canto, enquanto a mão negra enxagua a roupa para estender no
varal. Canta uma canção antiga, triste, como num banzo dolente de um povo ainda
saudoso de felicidade.
As portas e
janelas se abrem e as amigas se dão bom dia. Uma varre a calçada, a outra
reclama da imundície da rua. Um cheiro forte de café se espalha pelo ar, também
o cheiro forte de toucinho assando na brasa. Lá dentro, pelos quintais, uma
velha mão ainda bate milho no pilão. Um fogo de chão é aceso, uma vasilha
d’água começa a ferver. O menino grita pedindo pão. Ainda não tem, e nem sei se
hoje vai ter, uma voz responde. Um choro de criança irrompe no ar, as contas de
um velho rosário passam rapidamente nos dedos. Há a fé católica, mas os deuses
negros ainda não foram esquecidos.
E dizem que há
uma igreja dos deuses negros em cada quintal. Nos fundos das casas os
santuários, os ídolos, as crenças, a fé de um povo, não em imagens, mas em cada
folha de hortelã, de malva, de boldo, de qualquer planta ali nascida e presente
de geração a geração. Estas as entidades e os cultos de agora na Rua das
Pretas.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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