*Rangel Alves
da Costa
Todas as
saudades do mundo possuem as suas razões, ainda que incompreendidas e
chacoteadas. Ninguém abre baús sem desejar encontrar o passado. Ninguém folheia
velhos álbuns de fotografias para não se sentir comovido. Ninguém lê cartas
antigas, desbotadas de tempo, para não se sentir tomado de emoções. Ninguém se
põe no umbral da janela, em noites de lua e estrelas, para não chamar à memória
um retrato amado ou uma recordação de fazer doer e chorar.
As saudades
surgem assim, do nada e do tudo, por nada e por tudo. Do nada porque qualquer
coisa pode motivar sua chegada. As cores do entardecer, uma folha seca que
esvoaça, uma canção antiga, uma feição parecida, um olhar, qualquer coisa e
tudo podem despertar a chama do reviver. E por tudo porque tudo na vida acaba
se ajustando ao vazio de alguém. Assim, as ausências, as distâncias, os lutos,
os adeuses, as despedidas e as melancolias, vão sendo preenchidas segundo os
inesperados saudosos de cada ser humano.
A velha Sinhá
tinha razão ao afirmar que a saudade é o sofrimento mais triste e doloroso da
vida. Não há remédio que cure no instante da chegada, não há o que fazer senão
recordar e sofrer, não há sequer como fingir que não existe e que não vai traz
aflição, pois impossível negar o mais profundo da alma e dos sentimentos. Assim
porque a saudade independe do querer da pessoa saudosa, apenas surge, apenas
desponta como se quisesse afirmar: não adianta me esquecer, em você sempre
estarei!
E quem bem
conhece de saudade é a velha Sinhá. Já se diz um mar ressecado de lágrimas.
Também se distancia dos lenços que encharcavam a cada entardecer. Depois que
seu esposo partiu, e já passados mais de dez anos, nunca mais ficou um só dia
sem ter a sua presença em memória. A saudade se fez tamanha, a qualquer hora do
dia, que ela resolveu escolher a tarde, sentada na cadeira de balanço ao lado
da janela, como seu momento de relembrar e reviver. Sentava, começava a mirar
os horizontes, depois ia fechando lentamente os olhos. Por trás das pálpebras
cerradas todo um percurso de vida ao lado de quem tanto amou. Às vezes
adormecia e sonhava, e no sonho o mistério da eterna presença: um afago nos
cabelos esbranquiçados, um beijo na face enrugada, um sorriso triste. Era ele
que sempre retornava.
Com a
solteirona Carmita de repente irrompia uma saudade diferente, mas igualmente
profunda a ponto de transtorná-la. Diz-se saudade diferente porque não era
sofrimento por alguém ausente ou distante, mas ilusões que iam surgindo na
mente e acabavam ganhando vida e a transtornando inteira. Tinha saudade de
homem, de qualquer um, como se fosse um amor que a qualquer momento voltaria
para preencher os seus dias de solidão e tristeza. Guardava, ano após ano, um
baby-doll rendado para quando ele voltasse, um vinho para servir à luz de vela.
O pior é que de vez em quando se via fazendo compotas, preparando comidas,
assando bolinhos, para quando ele retornasse. Mas quem, e quando? E assim ia
vivendo os seus dias de saudades e tormentosos desejosos, mas um justo querer a
quem tanta falta sentia.
Existem saudades
tão tormentosas que parecem querer prostrar ou sucumbir de vez a pessoa. Não
adianta, pois toda vez que passa diante do velho retrato na parede começa a se
atormentar. Ali o seu pai, sua mãe ou em ente querido já chorado e enlutado,
mas ainda presente como necessidade da alma. Irrompe em choro, lamúrias,
mortificações, ainda que muitos anos já passados do último adeus. Não muito
diferente ao reencontrar recortes do passado. Cartas, adornos, rascunhos,
bilhetes, roupas, pequenos objetos, relicários e imagens, tudo para aproximar
daquele que não mais existe para compartilhar. Com o cheiro do café a
lembrança, porque bem forte era sua preferência. O rádio ecoa uma canção que se
transmuda em verdadeira presença. E quanto dói sofrer assim.
Outras saudades
inusitadas, mas sempre saudades. O saudoso vaqueiro aboiando plangência de dor
e lamento ao relembrar seus tempos de pega-de-boi, seus galopes entre
garranchos e tocos de paus, os laços de longe lançados sobre boi valente e
novilha arredia. O entristecido sertanejo ao relembrar passados de chuvaradas e
farturas, de terra molhada, sementes jogadas e colheitas da sobrevivência. As
saudades ocultas e tão presentes naqueles sentados em cadeiras sobre as
calçadas, sempre distanciados da realidade ao redor e trazendo à memória outros
caminhos e paisagens. E é como se ainda avistassem os viajantes de outrora, os
caminhantes rumos aos desconhecidos, os animais de carga e seus cestos de
rapadura, farinha, carne seca, pedaços de pano.
A saudade
entristece, aflige, mas também se torna em coisa boa, essencial ao ser humano.
Através dela se mantém contato com o de impossível presença e com o que se
deseja conviver novamente. Saudade do beijo de ontem ao da bola de gude da
infância, tudo é saudade que vai sendo guardada para um dia dizer: sim, não
morri, eu estou aqui!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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