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domingo, 7 de agosto de 2016

EU E A VELHA SENHORA

*Rangel Alves da Costa

Eu tinha cerca de dez anos quando começou a acontecer comigo uma experiência única na vida. E a mesma provoca consequências até os dias de hoje. Meninote, eis que uma senhora já idosa sempre me encontrava nos dias de feira e pedia para que eu a ajudasse na compra de um quilinho disso e daquilo outro. Um tanto de farinha, um pouco de açúcar, e assim por diante.

Fiz chegar tais pedidos à minha mãe Dona Peta e ela me disse que dali em diante aquela senhora poderia ir, todo dia de feira, buscar alguns alimentos na minha moradia. E assim, naquele dia certo aquela velha batia à porta de casa e perguntava por mim. Recebia a pequena feira, agradecia de derramar lágrimas, e retornava com feição de máximo contentamento. Não morava na cidade, mas um pouco afastada, sozinha numa casinha, pelos arredores de onde hoje se tem a parte final do Conjunto Lídia.

Pois bem. Aos onze anos tive de deixar Poço Redondo para estudar na capital. Prontamente avisei àquela velha senhora que a minha partida em nada impediria que ela continuasse recebendo seu auxílio semanal. Ela entristeceu, ficou silenciosa por instantes, para depois me pedir, com a voz embargada: Quando eu morrer você me dá o caixão? Não tive como responder. Toda a aflição agora estava em mim. Mas ela sentiu a resposta no meu olhar.

Eu estava em Aracaju quando recebi a notícia do falecimento daquela senhora. Em tempos de estradas e transportes difíceis, não pude comparecer para o adeus à velha e bondosa amiga. Contudo, já tendo conhecimento daquele inusitado pedido, minha mãe logo providenciou para que o seu desejo fosse atendido. Adquiriu o caixão e neste ela foi levada ao destino último na terra. Jamais me esquecerei desse fato. Até hoje relembro aquela feição e aquelas palavras. Seu nome: Dona Constância. A mesma Constância Nascimento, mãe de Zé de Julião.


Outrora de família rica, ao lado do esposo possuidora de muitas terras e bens, já na velhice se recolheu sozinha aos arredores da cidade. Morava numa casinha de barro, talvez fazendo das relembranças seu contentamento na vida. Com família grande, de muitos parentes, certamente que não faltava quem lhe acolhesse nas necessidades, mas preferia viver no recolhimento e na clausura dos dias. E também preferiu lançar palavras a um menino de dez anos, como se neste estivesse um destino que os unisse. Até hoje reconheço essa força do destino, essas linhas escritas pelos mistérios divinos.

Toda vez que vou atravessando o Lídia e adentro na estradinha que leva ao Poço de Cima, eis que ressurge um reencontro com esse passado tão marcante em minha vida. Por ali a casinha dela, recordo bem. E fico imaginando o seu fechar a porta e ir seguindo até a cidade, em dia de feira. E na rua o menino. O menino e um destino.

Nada me faz acreditar que o acaso consiga tecer tão significante acontecimento de vida. Ela, Dona Constância, bem poderia deixar que qualquer um arranjasse um caixão para sua última viagem, mas preferiu, ainda em vida, que um menino tivesse aquela incumbência. E pelas mãos de minha mãe o destino se cumpriu, pois nas mãos de minha mãe também o destino do filho, do meu destino.

Poucos conhecem essa história. Muitos anos depois de Dona Constância minha mãe também partiu. Hoje são poucas testemunhas desse fato comovente. Uns poucos familiares, eu e Deus. E agora vocês. E para que acreditem que nossas vidas são muito além do simples viver. São semeadas por tão grandiosos mistérios que somente crendo nos poderes sagrados para se acreditar nos nossos outros destinos.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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