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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

VIRGULINO DO NORDESTE

Por Eleuda de Carvalho

Num pé de serra pernambucano, por mãos hábeis de parteira, que era assim que vinham ao mundo os meninos daquele tempo, nasceu aquele que se tornaria depois, para mal ou para bem, um líder. O rei do cangaço. Em 7 de junho de 1897, mesmo ano em que o sonho de Canudos seria desmantelado a bala e tiros de canhão, haveria de surgir um outro sonhador para o povo nordestino, ou mais um pesadelo para os senhores do baraço e do cutelo. Dividido entre a figura de bandido, e a efigia de herói, batizou-se na igreja como Virgulino Ferreira da Silva, mas foi crismado na guerra como Lampião. E com este nome se escreveu a história. 


O fenômeno do cangaço, consequência do contexto de opressão e desmandos das elites sertanejas, começa a preocupar o governo federal quando as ações dos bandos armados extrapolam os limites das fazendas, e perigam se instaurar nas cidades. Com o  fim da chamada velha república, em 30, o poder centralizador e patriarcal dos coronéis cede sem volta seu lugar a lideranças mais modernizantes. Mesmo sem a anistia parcial decretada por Getúlio Vargas, o cangaço estava com seus dias contados. A morte de Lampião e seu grupo em Angico, alto sertão de Sergipe, em 38, foi o sinal de que aquela página estava virada. Morto o homem, nascia a lenda. Em prosa e verso, imagem e movimento. 

Lampião é, ele mesmo, o paradoxo da região nordestina. Entre o arcaico e o moderno, o brutal e o generoso, o leal e o traiçoeiro, sua imagem caolha e cabocla transita de maneira tão natural, que não é estranho este sentimento mesclado de pavor e bem-querença com o qual traduzimos nossos sentimentos a respeito dele. Sem dúvida, a indumentária que ele criou, mistura de vaqueiro psicodélico com Napoleão, representa tão bem uma estética/ética guerreira do sertão, que o jovem Luiz Gonzaga, sabido como ele só, travestiu-se de cangaceiro para divulgar seus baiões, xotes e xaxados (ritmo e dança criados Jararaca, segundo alguns), e fez desse visual a marca do seu sucesso.


O sociólogo Daniel Lins no programa Rádio Debate da Universitária FM, critica seu par Gilberto Freyre, quando este sugeriu uma pulsão homossexual em Lampião, por seu gosto ostentatório. "O senhor Gilberto Freyre tinha dito, doi sou três anos antes de morrer, que Lampião, ao costurar - e costurava muito bem, ao bordar, bordava muito bem, ao ser artista, aquele artesão que era, ao se vestir e usar perfumes e usar anéis, aqueles lenços de seda bordados e tudo, daria impressão de um efeminado. O senhor Gilberto Freyre não entendeu nada". Assim como não quer compreender boa parte da comprometida intelectualidade brasileira, que geralmente olha atravessado para tudo que tenha a marca nordestina ou popular.

Ao se debruçar sobre o personagem, investigando a sua trajetória ambígua entre facínora e paladino. Daniel Lins chega a uma conclusão muito interessante: Lampião comprovou o mito. Ele explicou o mito com o próprio mito que era ele. E dentro do estudo herói, você encontra todas as características, Lampião não foge a regra. O problema de ser ou não ser herói para Lampião não depende mais do conceito da elite brasileira, que morre de vergonha da nossa identidade".


Outro ousado pesquisador das manifestações culturais desta região é o jornalista e escritor Gilmar de Carvalho. Há 20 anos ele publicava o romance Parabéllum, em que o herói é composto como um tríptico, apresentando três personalidades. Embalado no espírito da época, o herói, daí em diante, deveria ter não um rosto, mas representar uma face coletiva, evocando a utopia social. Uma das caras deste múltiplo herói trazia as características de Lampião. "Você é um escorpião pronto para o bote e que se insinua certeiro. Você não veio oferecer o outro lado da face, bate. Você veio para escarrar no rastro e derramar pólvora e sal e aceitar ser o contorno preto de uma figura o a mão que empunha o punhal e a boca que prescinde de Palavras".

Lampião começou seu reinado em 1922, mesmo ano da Semana de Arte Moderna. Embora isolado nos ermos pedregosos e ásperos da caatinga, ele estava vinculado ao seu tempo. Fez pose para o fotógrafo e cinegrafista amador Benjamim Abraão, que registrou alguns momentos lúdicos e despreocupados daqueles homens e mulheres, que mesmo perseguidos e com cabeça a prêmio não descuidavam do visual. Era com música que Lampião anunciava sua chegada em vilas e cidades. Ou então a descargas furiosas de fuzis. Para os amigos, festa; aos inimigos, a bala aguda e certeira no coração.

De todas as vilas e povoados por onde andou, um deles foi quase fatal. Velhos agricultores da região de Jaguaruana, ao pé da serra Dantas, que separa o Ceará do Rio Grande do Norte, ainda comentam a passagem de Lampião e seu grupo pela antiga Estrada do Fio (do tempo do telégrafo), em rumo de Mossoró. O revés quase desmantela o bando, além de ter ficado detido o valente Jararaca, jovem chefe cangaceiro de 20 e poucos anos, que embora ferido gravemente e exposto à perversa curiosidade pública, manteve-se tão altivo, impávido colosso, que ainda hoje a sepultura onde foi jogado ainda vivo é centro de romarias. Eis o rastro heroico do cangaço, cujo poder só pode ser comparado ao dos beatos que ainda apregoam o fim do mundo; dois ângulos diferentes de um mesmo cristal.

Todo o agreste solar era o caminho de Lampião, este andarilho. Se sabia sempre onde ele esteve, onde estava sabiam não. Para o produtor e radialista José Rômulo Mesquita Martins, que possui bom acervo sobre tema, "Lampião só nunca desmanchou o trato com o Padre, nunca atacou o Ceará. Diz que tinha feito um pacto co o Padre". Porque é sabido que ele não se submetia a ninguém, não temia tenente ou capitão. Teve a audácia de enfrentar os mais poderosos senhores do sertão nordestino, porém deixava seu arsenal entocado na Chapada do Araripe, quando descia para o Juazeiro, onde encontraria conforto nas palavras do Padrinho. Lampião nem foi ao inferno nem ao céu. Seu reino era deste mondo, era o sertão.

Eleuda de Carvalho

Fonte: "O Povo"
Fortaleza: 07 de julho de 1997
Ano: ?
Número: ?
Digitado e ilustrado por José Mendes Pereira - Perdoem-me alguns erros. Eu estou multo ruim da visão

Este jornal foi a mim presenteado pelo pesquisador do cangaço e membro da SBEC- Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço Francisco das Chagas do Nascimento (Chagas Nascimento).

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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