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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

O TRISTE RETRATO DA TERRA

*Rangel Alves da Costa

Não faz muito que escrevi um texto relatando sobre o retrato da terra sertaneja ao longo do tempo, acentuando suas transformações nos últimos anos. Cuidei de avistar um sertão de mata nativa, rica em fauna e flora, com a pujança de sua peculiar vegetação, até chegar aos tempos outros onde o próprio homem cuidou de ir transmudando sua riqueza em desértica nudez. E o que se tem hoje é mais desalentador ainda, visto que o olho sertanejo não consegue avistar senão a coivara aberta em terra nua: o sol descendo e abrasando tudo por falta de pá de pau.

A verdade é que pouco resta do verdadeiro sertão. Somente o conceito geográfico permanece, mas ainda assim sem aquelas características descritas nos livros. A catingueira vive seu desalento de solidão, as cactáceas não são mais avistadas como outrora. Com a devastação da mataria não restou bicho nem passarinho. Sem tufo de mato o bicho não tem moradia, sem galho de planta não há ninho de passarinho. Sem a vegetação a terra fica desprotegida, os riachos secam, o calor aumenta, a feição desértica torna em fornalha a aridez.

Em seu contexto maior, a terra em si não se modifica senão pelo desejo da própria natureza. Se o passado era de abastança de árvores e espécies nativas e hoje não existe, certamente que não foi a natureza que tirou o seu véu de abundância para se mostrar desnuda, magricela e feia. Tudo pela mão do homem, pela foice do homem, pela máquina do homem, pela insensibilidade do homem, pela sua imensa cobiça de usar e abusar até não restar mais nada.

Certamente alguém se lembrará da fruta do mato, como a quixaba e o araçá, que noutros tempos vingavam de encher bacia. Bastava a pessoa enveredar na mataria e não demorava muito para encontrar o doce negrume ou o saboroso pingo dourado. Hoje quase não existem mais. Bem assim ocorre com o bicho de caça. Nas vastidões secas e empobrecidas, sem o que colher pra comer, famílias inteiras sobreviviam unicamente da presa do mato. Preá, caititu, veado, nambu, perdiz, era presença constante no fogo de lenha de sertanejo. Hoje em dia nem adianta tocaiar que é tempo perdido. E não se deve esquecer que o sertão já foi paisagem até de onça pintada.


Impossível rebuscar o passado como presença, inimaginável seria ter a continuidade do ido no passo presente e futuro. Tudo nasce com a validade do seu tempo e depois o próprio tempo cuida de amarelar o retrato e fragilizar a moldura. Ao olhar o passado através do que restou na parede da memória, outra coisa não se encontrará senão o espanto de quase nada mais encontrar daquilo que tão belamente existiu.

O sertão possui muitos retratos na parede da memória, mas nenhum parecido com o que se tem agora. Difícil acreditar, mas o novo, sempre forjado com a promessa de não apagar o passado, nem de longe parece com os encantos singelos de antigamente. Enquanto o novo sertão se esmera e se maquia para fugir cada vez mais de sua real feição, aquele outro sertão encantava pela sua singeleza bucólica, humilde e verdadeira.

Ninguém haveria de esperar, contudo, que aquele sertão permanecesse inalterado pelas forças do tempo. Tudo muda, tudo se transforma. Num tempo distante houve um sertão intocado, de vegetação nativa se alastrando por todos os quadrantes. Com o desbravamento e povoamento, os espaços foram divididos entre o novo habitante, suas criações e o já existente. Entretanto, no processo histórico de desenvolvimento, coube ao homem reduzir os espaços naturais para ampliar seus meios de subsistência. Mas os objetivos de exploração econômica foram devastando a terra sertaneja e fazendo surgir no seu meio um sertão diferente a cada ciclo.

Tal processo se constituiu num desenvolvimento predatório. A cada passo de transformação também o da regressão. A pujança da natureza, das espécies nativas, dos bichos próprios do bioma caatinga, do homem no seu mundo próprio, tudo isso foi sendo afetado pelo progresso. Como aconteceu com o Velho Chico, um rio antes pujante e caudaloso, bastou a chegada da hidrelétrica e tudo afinou de fazer dó. O ribeirinho restou abandonado perante o seu rio igualmente maltratado, fino e feio pela sua essência sugada.

São muitos os exemplos. Até o século passado eram comuns os latifúndios com suas áreas imensas de terras, muitas vezes mantidos improdutivos, mas garantindo a preservação natural. E as terras de eréu num período mais longínquo, quando muitas léguas de terras se mantinham sem dono e estas acabaram sendo transcritas como de propriedade dos poderosos de então. O latifúndio foi também fruto das terras de eréu.

Hoje, em nome da reforma agrária e da distribuição de terras para os que desejam nela trabalhar, criou-se uma ilusão verdadeiramente depredatória. A rica vegetação encobrindo léguas e léguas aos pouco foi tombando pela foice e pelo machado, deixando em campo aberto o mundo da catingueira e do mandacaru, o mundo da baraúna e do juazeiro. E para nele nada produzir. A pobreza se alastra impiedosa, não há planta nem fruto, não há quintais nem criações, não há sequer esperança. O que se tem é um sertão desfigurado e transformado num deserto de sol e calor.

Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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