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quarta-feira, 14 de junho de 2017

O DIA EM QUE LAMPIÃO ENFRENTOU JOHN WAYNE


Amanhecia. Um belo dia de céu azul sem nenhuma nuvem. Daqui a pouco o sol estará totalmente fora da serra. A noite fora fria, mas o dia prometia muito calor na pequenina Coité da Serra, perdida no Sertão seco e árido de Pernambuco.

Hora para os cangaceiros, à frente Virgulino Ferreira, tomarem de surpresa a cidade. Nenhum aviso nem de um lado de do outro. Naquele momento Coité dormia depois de uma noite de absoluta tranquilidade.

Mas em cada esquina, a cabeça, depois o corpo todo suado e carregado de coisas, os cangaceiros. Eles iam surgindo de três em três caminhando com cautela e de arma na mão.

Os moradores dormiam a sono solto. Ninguém para testemunhar a invasão dos cabras de alparcatas comandados por Lampião. Pisavam de mansinho, olhos arregalados e ouvidos atentos. Pelo jeito de seus rostos vinham de longe. Cada passo era medido e todos em silêncio. Falar só o gestual. Em cada mão o rifle e o dedo no gatilho pronto para qualquer emergência. Na outra rua, o grupo que caminhava com Lampião permanecia atento cobrindo o chefe como se fosse uma criança. Mesmo assim Lampião, que vinha mais atrás, não largava o parabelum engatilhado.

No pátio coberto de relva já amarelecida pastavam alguns animais domésticos. Bois magros e bodes espertos.

De repente, um cachorro vira-lata atravessa aos pinotes no meio da rua, latindo. Talvez assustado com a presença dos homens estranhos e silenciosos.

Os cabras quando viram o cachorro cada vez mais afoito puseram o dedo no gatilho pronto para abrir fogo. O animal ficou só rosnando e se defendeu correndo ladeira abaixo. Bastou um dos homens de Lampião bater o pé. Passado o susto continuaram a marcha lenta e cautelosa. No fim da primeira rua descobriram o bar. A porta estava ainda fechada. No alto uma placa desbotada indicava: "bar Ponto Alegre". Na frente, o salão com as mesas e lá atrás as de bilhar. Os homens se encontravam ali com as mulheres. Era o baixo meretrício da cidade, depois ficaram sabendo.

Lampião deu o sinal verde e todos de uma só vez estavam na rua principal, em cima do "Ponto Alegre". Na outra rua, a barbearia do seu Nozinho. Adiante, a farmácia de Odilon, também proprietário da "Funerária Adeus Amigos".

A esta altura os bandidos se juntaram no pátio aguardando a abertura do bar. A sede e a fome amoleciam aqueles corpos fortes e rudes carregando armas e apetrechos comuns a eles. Mas de cinqüenta quilos no lombo. Alguns exaustos se sentaram no chão. Outros ficaram de pé seguindo o chefe.

No céu azul algumas aves à procura dos alimentos. O sol estava alto. As primeiras janelas foram abertas timidamente. As pessoas quase apareciam ao mesmo tempo, mas recuavam ao ver o movimento inusitado de cangaceiros na rua. Há anos passaram por Coité da Serra alguns cabras de Lampião. Mas de passagem apenas.

No ar, os sons dos sinos da Matriz chamando os fiéis às orações. Porém poucos se atreviam diante do pessoal armado.

O bar, finalmente, abriu. Os cangaceiros se movimentaram rápidos. Quem estava sentado pulou de pé. Sempre com o fuzil na mão. Todos se dirigiram ao "Ponto Alegre". Água e comida, a primeira ação dos forasteiros. O bar rapidamente se encheu de homens mal cheirosos e famintos.

Seu Cardoso, dono do estabelecimento, recebeu os cangaceiros com muita gentileza. Chamou Tiãozinho e ordenou alimento e água para o pessoal de Lampião. Pão, queijo de coalho, ovos, salame, conhaque e muita água da jarra, recomendou. A algazarra era grande. Coité da Serra jamais ouviu tanta gritaria. A Cidade agora pertencia aos cabras de Lampião. "E tiro só se houver precisão!" - Avisou o Capitão.

Comeram e beberam fartamente. Uns pegaram cigarro e inundaram o salão de fumaça e cheiro de álcool. A cachaça foi servida em abundância.

A delegacia de polícia não abriu as portas. Os dois únicos soldados que passaram a noite de plantão foram embora - informaram. O Capitão não gostou dessa história e mandou que cinco de seus cabras fossem buscar os soldados fujões. Custasse o que custasse. E justificou a ordem: "macaco sorto não pode ficar. É armadia!" E saíram os cangaceiros atrás dos soldados. Outros ficaram ainda no bar comendo e bebendo à vontade.

Lá fora, os comentários no pé do ouvido não eram poucos. Quase ninguém na rua. Os moradores cedo devem ter saído pelos fundos de suas casas com medo de violência.

Só depois do meio dia chegaram os cabras com os dois soldados amarrados, na presença do Capitão. Depois de ouví-los, ordenou: "Bota esses dois frouxos no xadrez, sem roupa, e traga a chave pra gente!" E falou mais uma vez: "Macaco sorto é causo de baruio. E como tamo aqui sem fazê baruio deixa os home no xilindró."

Os cangaceiros saíram com os presos. Lampião e seu bando deixaram o bar prometendo retornar à noitinha pra conhecer as mulheres e os homens valentes do lugar.

Anoitecia quando Lampião e seus homens retornaram para o "Ponto Alegre". Antes, Virgulino passou pelo velho cinema que só funcionava duas vezes por semana, e era a alegria de boa parte da população. Quando chegou ao Cine Rex despertou a curiosidade o filme anunciado. Um faroeste com John Wayne. Não resistiu e avisou para seu lugar-tenente: "De noite vô vê esse caubói!".

E saiu com seus cabras em direção ao bar. Sentaram-se, pediram conhaque e ficaram ali conversando enquanto planejavam a viagem de madrugada que iam fazer aos sertões de Alagoas.

Bem em frente ao Cine Rex Lampião parou. Muitas pessoas, inclusive meninos entravam tranquilamente sem pensar nos cangaceiros que invadiram a cidade. Lampião entrou com alguns dos seus cabras. O filme começou com John Wayne brigando, dando tiros, quebrando tudo para prender os bandidos. O público vibra. Chegam a bater palmas. Lampião e os cangaceiros não desviam a atenção da tela.

De repente, a cena se transforma. É Lampião e John Wayne se enfrentando num duelo de vida e morte. Lampião de punhal na mão não teme a pistola. Um avança contra o outro. Tiros. Cavalo correndo. Tumulto. Lampião derruba o caubói. A poeira sobe. Os cavalos relincham. Um inferno dantesco.

Nesse exato momento, um cangaceiro que estava sentado ao lado de Lampião percebendo que o chefe dormia, bate no seu ombro e fala: "Capitão, capitão, acorda. O filme acabou. Tá na hora de agente preparar a viaje".

O chefe acorda assustado, já com a mão no parabelum, ainda sob o efeito do sonho que tivera com John Wayne, o mais famoso mocinho do cinema, matador de índios e bandidos, mas não de cangaceiros. O pessoal que estava no cinema saía comentando as façanhas de John Wayne com os fora-da-lei de Tombstone. Perdera o bonito cavalo branco, mas ganhara o amor de Mary, a garota mais bonita filha caçula do xerife Tom Bolling.

Antes do amanhecer Lampião deixa Cuité da Serra, com seus companheiros para nova caminhada em direção do sertão alagoano, mas ainda pensando no sonho que tivera no cinema.

Coité da Serra ficou para trás. Calma e sonolenta à espera de outro dia sem cangaceiros.

NOTA I: Texto de Fernando Spencer, cineasta, crítico de cinema e escritor pernambucano. A charge é de Gilvan Lira. Publicados no Jornal Cultural "O Galo", da Fundação José Augusto, Natal/RN., em fevereiro de 1997)
NOTA II: republicado no blog de Chico Potengy, no dia 08 de Janeiro de 2016.

Fonte: facebook
Página: Chico Potengy
Grupo: Historiografia do Cangaço
Link: https://www.facebook.com/groups/1617000688612436/permalink/1785058291806674/

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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