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segunda-feira, 17 de julho de 2017

A MENINA DOS OLHOS TRISTES

*Rangel Alves da Costa

Vi num retrato uma menina de olhos tristes. Aliás, eu conheço essa menina de olhos tristes. Eu a fotografei no domingo passado, enquanto partilhava um bolo de aniversário com outras crianças. Fotografei aqueles meninos e somente depois, com mais atenção e cuidado, foi que percebi a diferença daquele olhar para os outros olhares da mesma infância.
Em todas as demais crianças retratadas, sempre o sorriso no olhar, na boca, nas feições alegres. Mas não naquela menina. Nos retratos, as outras meninas e o menino olham para a câmera em pose, desejando realmente mostrar suas alegrias naquele momento. Mas aquela menina não. Ainda que estivesse bem ao lado dos demais, seu olhar parece distante, vago, apenas entristecido. O que avistará de tão diferente aquele olhar sem sorrisos?
Naquele momento, ouvi alguém pronunciando o nome daquela menina, tendo nove ou dez anos. De agora em diante a chamaria apenas de K., e uma inicial que bem poderia ser a palavra de qualquer nome: Maria, Zefinha, Lúcia, Gabriela, Joana, Filó, Clotilde... Mas apenas K. E esta menina, com seu jeito um tanto distante de tudo, quase como alheia àquela realidade, ainda que todas as demais crianças ali fossem suas amigas, fez lembrar o outro lado da meninice, ou primeira adolescência, ainda oculta para muitos.
K. é uma menina linda. De cabelos negros, lisos, longos, porém presos na altura do pescoço, de pele clara e olhos negros, a única diferença para as demais crianças estava mesmo no olhar, e que olhar mais continuamente entristecido o dessa menina. Mas nessa menina algo que a tornava diferente de suas amiguinhas: a roupa. Enquanto as outras estavam prontinhas, arrumadinhas, com roupas apropriadas para um aniversário de um amiguinho, a menina usava uma blusinha envelhecida e uma saia de mesma idade. Será que por isso seu olhar tão entristecido?
Não. Creio que não. O olhar entristecido da menina é o mesmo olhar tristonho de muitas outras meninas que existem por aí. Por diversas razões, são meninas que nascem com sóis no olhar e depois os brilhos alegres vão mudando de cor. Luas e arco-íris no olhar, mas depois as réstias sombrias de vidas sofridas. K. é de família pobre, não tem sempre comida à mesa, não tem roupa nova de festa, não tem lanche na geladeira e nem tem qualquer coisa que toda que toda criança deseja ter.
K. tem muitos irmãos. Sua mãe é nova, mas já parecendo envelhecida das durezas da vida, mas também por que todo ano engravida e todo ano mais um filho sai de suas entranhas. Logo depois de K. há uma irmã, logo antes há um irmão, e assim numa escadinha de filhos que se juntam na pobreza e em todas as dificuldades de sobrevivência. Daí que conhecendo a família da menina, já sabendo das carências tantas que passam no dia a dia, eu não poderia esperar sorrisos e gestos de contentamento, ainda que apenas de uma criança.
K. quase não aceitou acompanhar os demais coleguinhas na festa de aniversário. Os outros estavam prontinhos, bem vestidinhos, e ela não. Quando eu a avistei, logo senti a diferença. Queria se manter afastada, nada falava, não esboçava um sorriso, não compartilhava em nada daquele momento de felicidade para os demais. Na hora da fotografia, por mais que insistissem para que ela sorrisse nada adiantou. Ela se manteve triste e com olhar entristecido. Bebeu refrigerante, comeu bolo e salgadinho, mas como se estivesse num meio totalmente desconhecido. E os demais coleguinhas são todos moradores dos arredores de sua casa.
Por que K. não sorriu? Ainda hoje, já passados mais de um mês, continuo me perguntando por que a menina não sorriu. E depois disso, olhando fotografias de crianças pelo mundo, eis que avistei muitas K. por todo lugar. Meninas e adolescentes expulsos da pátria e lançadas ao mar como refugiadas, crianças famintas por diversas regiões do planeta, adolescentes estupradas e feridas na alma bem aqui e acolá, vidas em flor sofrendo desmerecidas agruras. Crianças, adolescentes, meninos e meninas, vivendo em palafitas, no dia a dia ao lado de lixões, amanhecendo e anoitecendo em meios sangrentos, tendo que suportar navalhas na carne e açoites no corpo. Qual sorriso que tais crianças podem ter?
Não será uma boneca que fará a menina K. sorrir. Certamente ela tem uma boneca de pano. Não será um vestido novo, bonito, que fará a menina sorrir. Ela poderá ficar contente por uma instante, por receber aquilo que sempre foi tão distante de si. Mas depois voltará a ter o olhar entristecido novamente. Sentirá a mesma fome que seus irmãos, sentirá as mesmas carências que sua família. Ora, se seu mundo é triste, se seu mundo é melancólico e aflitivo, como espera que viva sorrindo?
Juro que tudo eu faria para afastar a tristeza dos olhos daquela menina. Mas meu presente, meu pão ou minha presença, pouca valia terá quando os olhos entristecidos de todas as crianças do mundo possuem dolorosas razões para continuarem assim.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com 

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