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sexta-feira, 1 de setembro de 2023

SÍLVIO HERMANO

Por Antônio Corrêa Sobrinho

SALVO MELHOR INFORMAÇÃO, ESTA FOI A PRIMEIRA MENÇÃO FEITA NA IMPRENSA NACIONAL, AO FILHO DO CANGACEIRO CRISTINO GOMES DA SILVA CLETO (CORISCO), SILVIO HERMANO E AO PAI ADOTIVO DE SILVIO, O PADRE BULHÕES. REFIRO-ME À MATÉRIA DO JORNALISTA TEÓFILO DE BARROS FILHO, DOS DIÁRIOS ASSOCIADOS E REDATOR DO DIÁRIO DA NOITE, DO RIO DE JANEIRO, QUE COLHO NO DIÁRIO DE PERNAMBUCO, DE 24/07/1940, DOIS MESES PASSADOS DA MORTE DO CÉLEBRE "DIABO LOURO".

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O FILHO DE “CORISCO” QUER SER AVIADOR

SILVIO HERMANO, COM QUATRO ANOS DE IDADE, FOI ENCONTRADO NO INTERIOR DE ALAGOAS – MARIA CELESTE, A OUTRA FILHA DO BANDOLEIRO – “DADÁ” QUER VER AS CRIANÇAS ANTES DE MORRER

MACEIÓ – Via aérea – o vento zumbia nas frestas das janelas. A noite chuvosa era uma fria ameaça de gripe contra o repórter. Estava eu em Santana do Ipanema, no interior do Estado. Tinha de me transportar a Pão de Açúcar, nas margens do São Francisco. Naquela zona só há um transporte regular: o caminhão. Aderi ao caminhão, mas cheguei tarde.

- Não há lugar vago na boleia, seu douto – me disse o proprietário do carro... – Só se o senhor quiser viajar em cima...

- Com a carga? – perguntei espantando, e – e com essa chuva fria?

A situação era má. Além do mais, o caminhão viajaria superlotado. O homem explicou: só se algum dos passageiros desistisse em meu favor, o que seria muito difícil uma vez que reservavam lugares com 15 dias de antecedência. Todavia, eu necessitava seguir. Fosse lá como fosse. Enfrentaria a garoa navalhante da madrugada, pois não havia outro jeito. Olhei para a iluminação da cidade. Os postes pareciam flocos brancos dentro da névoa gelada do sertão.

- Quais são os passageiros da boleia? – perguntei.

- Um major da Força Pública e o padre Bulhões.

A dona do hotel que ouvia o diálogo, falou sentenciosa:

- O melhor é o senhor deixar pra viajar na outra semana. Indo em cima é capaz do senhor se resfriar ou apanhar uma pneumonia...

Foi a perspectiva de ficar uma semana paralisado em Santana do Ipanema que determinou minha resolução. Iria de qualquer jeito. Com a carga no meio da caboclada que ia fazer feira em Pão de Açúcar, afrontando a friagem da madrugada, mas iria. Vinha eu de uma visita à famosa cachoeira de Paulo Afonso. Deliberei conhecer o sertão de Alagoas para depois retornar a Penedo donde me transportaria a Maceió.

Até o local viajara de ônibus. Daí em diante pelo rumo que desejava não havia outra condução além do caminhão cujos lugares eram disputadíssimos. Não imaginava me deparar com um problema assim, mas afinal a resolução já estava tomada. Repórter é soldado. Não tem luxo. Mas o vento que zumbia navalhante pela fresta das janelas, me enchia de receio.

MÃE AFLITA

Comuniquei ao homem que estava disposto a ir assim mesmo e voltei ao meu quarto, no hotel. Enquanto esperava o jantar, peguei uns jornais velhos e pus-me a ler. “A morte de Corisco”. O noticiário localizava detalhes. O tiroteio. Os feridos. A luta. Os bandidos presos. Entre os bandidos presos caíra nas mãos da polícia a famosa Dadá, mulher de Corisco. Contava o jornal que Dadá gravemente ferida, falava constantemente nos filhinhos que deixara longe. Um dos jornalistas chegou a ouvi-la. Dadá só queria morrer depois de vê-los.

Manifestava-se naquela hora aguda de sua vida, uma eclosão de instinto materno.

Naquele transe de sua vida manchada pelo crime, surgiam lampejos dignificantes “Raio de luar por sobre um pântano”. Fenômeno complexos da emoção humana.

- O jantar está na mesa – avisou-me Ercilia, a empregada do hotel, por sinal bem jeitosa de corpo.

Jantei. Depois do jantar, faminto por notícias da guerra indaguei de Ercilia quem tinha rádio na terra.

- O padre Bulhões tem um rádio que é uma beleza...

- E onde mora?

Ipanema.

Apontou a casa que na escuridão eu mal distinguia. Toquei para lá, de guarda-chuva aberto. Nas proximidades do Ipanema subi uma rampa de pedras. Adiante, a casa. Pela porta aberta, um quadro de Cristo no Horto de Getsemani. Devia ser ali a residência do reverendo. Bati. Era mesmo.

Apresentei-me ao padre Bulhões. Disse a que vinha, e o sacerdote, um sertanejo bom, de coração aberto, não escondeu nas suas feições morenas um cavalheirismo generoso. “Pois não”. O rádio estava às minhas ordens. Carregou-me para o interior da casa. Apresentou-me à irmã e ao cunhado. Mandou preparar café. Ligou o receptor para esquentar as válvulas. O rádio, porém, não estava de boa paz naquela noite. Encrencou e não houve meio de fazê-lo apanhar a N. B. C. ou mesmo as estações da Alemanha e Inglaterra. Só entrava a Tabajara da Paraíba e nada mais. Parecia que a tribo radiofônica da terra de meu amigo Aderbal Jurema estava senhora dos pagos celestes. Fechamos o rádio desiludidos quando entrou na sala um garoto dos seus quatro anos pedindo dinheiro ao padre para comprar fogos. O sacerdote bondosamente retirou do bolso o “porte-monale” e deu-lhe uma moeda. Quando o garoto se retirou e mergulhou na algazarra que a criançada fazia lá fora, no alpendre, ele me disse calmamente, como se não dissesse nada:

- Sabe quem é esse?

- Não... – respondi.

- É o filho de “Corisco”.

O repórter chegou a se engasgar com a notícia. Ali estava fresquinho, novinho em fino um furo magnífico. Alvoroço nas associações de ideias. Jornais que lera há pouco, Dadá. Filhos distantes. Hora da morte... etc.

A meu pedido, o padre Bulhões contou que certa vez lhe chegara a “encomenda”. “Corisco” enviou juntamente com a criança, um bilhete recomendando que eu criasse e desse a educação que pudesse. Insistiu: “Cuidado com a educação do meu filho. Sou mesmo o capitão Corisco, chefe dos cangaceiros. A mãe dele é Sergia Maria da Conceição (Dadá). O padrinho é o senhor e a madrinha é Nossa Senhora”.

O bilhete recomendava três vezes que educasse o garoto. Assinava: Cristiano Gomes da Silva Cleto, “Corsico”.

A criança veio com nove dias de nascido.

O padre escolheu um nome para batizá-lo: Silvio Hermano. Entregou-o aos cuidados de seus parentes.

Passaram-se quatro anos. Veio mais intenso o combate ao banditismo. “Lampião” foi morto em Angico. “Corisco”, sem o chefe, sentiu-se desamparado. Andou querendo se entregar à polícia. Acabou sendo morto na Bahia. “Dadá” ficou gravemente ferida. Amputara uma perna.

O padre Bulhões chamou Silvio Hermano. Observei-o melhor. É um garoto forte, sadio, olhos grandes, temperamento dócil, ares melancólicos. Não é um menino alegre, bem vivo como a maioria das crianças. Aparenta sentimentos morigerados e ignora seus antecedentes.

Perguntei-lhe a título de curiosidade:

- Você de quem é filho?

- De Eugenio Bulhões e Liquinha Bulhões.

- E seu padrinho? Quem é?

- É o padre Bulhões.

- Quando crescer o que é que você quer ser?

- Quero ser aviadô...

Mostrou-me um avião de folha de flandres todo colorido e saiu zumbindo, imitando o motor, com o brinquedo nas mãos.

TEM UMA IRMÃ

Fizemos fotografias. Silvio prestou-se pacificamente às poses.

Nessa ocasião o padre Bulhões me contou o resto da história. Chama-se Maria Celeste e está sendo educada pela família Sebastião Medeiros, residente em Poço das Trincheiras, lugarejo próximo de Santana do Ipanema. “Corisco” enviou a menina a essa família nas mesmas circunstâncias de Silvio Hermano e com as mesmas recomendações.

O padre Bulhões deu-me a fotografia de ambos. Pedi-lhe mais uma cópia. Essa cópia a mais estou remetendo-a aos nossos companheiros do Estado da Bahia a fim de que façam chgá-la às mãos da infeliz Dadá. Se não pode ver as crianças, ao menos veja a fotografia.

Quando me despedi do padre, ainda chovia.

- Até amanhã.

Ele consertou:

- Viajo muito cedo amanhã. Creio que não nos veremos mais...

- Viajo também amanhã, padre. Vou no mesmo caminhão.

- Conseguiu lugar na boleia? – indagou ele.

- Não. Vou em cima, com a carga.

O padre Bulhões teve então um gesto que deixou o repórter rendido ante a gentileza: cedeu o seu lugar para que viajasse até Pão de Açúcar.

Quando mais tarde adormeci, o vento ainda zumbia pelas frestas das janelas, mas a noite chuvosa não era mais uma fria ameaça para o repórter.

Diário de Pernambuco, 24 de julho de 1940

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Fotografia de Celso Arcoverde de Freitas.

Santana do Ipanema (AL) - 1942 -

Acervo da Fundação Oswaldo Cruz. Casa de Oswaldo Cruz

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