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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Alguns argumentos em prol do envenenamento

Por: Nertan Macedo
"Não deixe de ler este artigo. É excelente!"

Depoimento espontâneo e corajoso do coronel JOSÉ ALEN­CAR DE CARVALHO (Senhorzinho Alencar), oficial reformado da Polícia Militar de Pernambuco, que durante dez anos enfren­tou Lampião em combates memoráveis:

— "Essa questão de envenenar Lampião era velha. Vendo, dia a dia, agravar-se o problema do cangaço, os chefes de volantes queriam acabar com o terrível bandoleiro de qualquer ma­neira. A ordem que vinha de cima (Getúlio) era para liquidar com ele. Desconfiado, ligeiro, ágil como cabrito novo, Lampião escapava sempre dos cercos da polícia. Daí a solução rápida, embora ilegal: a morte pelo envenenamento. E muitos chefes de volantes pensaram assim:

-    MANUEL NETO, dos mais herói­cos combatentes contra o cangaceirismo, procurou comprar coiteiros para envenenar Lampião. “Eu mesmo, certa vez, prometi vultosa fortuna a uma velha, da inteira confiança de Virgulino, se ela fizesse o Rei do Cangaço beber de um vinho que eu lhe dera ".
- Dois episódios em que o coronel Alencar, provando que ninguém jamais pegou Lampião desprevenido, corrobora o pro­pósito geral de matá-lo com veneno:

a) "Sabendo que ele (Lampião) tinha desejos de pegar um seu inimigo, fiz do mesmo uma espécie de cobaia. Coloquei-o na fazenda de certo parente de onde ele passou a mandar insul­tos e recados a Lampião, convidando-o a brigar. A resposta do bandoleiro foi esta: — "Você está muito fácil. Aguardo uma oportunidade mais difícil". Como se adivinhasse que ali perto eu me achava, pronto para atacá-lo pela retaguarda.

b) "De outra vez, no. encalço de Lampião encontrei-me com um vaqueiro que disse saber onde ele estava escondido. Numa casa abandonada, a dez léguas dali, ele tratava de Antônio Rosa, um de seus cabras de confiança, atacado de febre. Guiados pelo vaqueiro, andamos toda a noite. Ao amanhecer, estávamos diante da casa. Mas, que surpresa! As árvores próximas estavam cri­vadas de balas. Xique-xiques e mandacarus decepados por forte tiroteio. Soube, tempos depois, que a sentinela de Lampião, despertada alta noite por um barulho que vinha do mato, aler­tou o bando. Abriram tiroteio cerrado e terminaram por fugir. A causa do barulho: um bode que pastava nas proximidades. Foi um simples bode, mas podia ser a volante. Lampião não facilitava nunca".

2. Em PARIPIRANGA, BA, a polícia envenenara toda a comida que Lampião, acampado perto dali, mandara comprar. Somente no dia seguinte iria ele mandar dividir esses mantimentos com os cabras. De manhã, porém, a polícia, em erro de tática, vexou-se em atacá-lo, travando-se tiroteio. Descoberto que a co­mida estava envenenada, Lampião bateu em retirada deixando-a aos soldados...

3. Pouco tempo antes de Angico havia João Bezerra afirmado a Mane Neto que iria exterminar Lampião a veneno. Pondo de lado o despeito de Mane Neto em não ter podido jamais matar nenhum dos irmãos Ferreiras, os quais, ao contrário, lhe mata­ram quinze nazarenos, sendo nove familiares, o certo é que, na polêmica mantida na imprensa entre esses dois oficiais, termi­nou João Bezerra confirmando que "nenhum governo estipulou a espécie de morte que seria aplicada a Lampião". Depois veio ele querendo escamotear dizendo: — "Envenenar Lampião teria sido um prazer, se tivesse tido essa grande oportunidade!"

4. PEDRO CÂNDIDO esteve badalando que botou veneno (Cf. Adendo II).
5. O cangaceiro Zé Sereno, em entrevista ao Correio da manhã, do Rio de Janeiro, a 28 de julho de 1971, caderno Anexo, recor­dando a tragédia de Angico, assim se exprime: — "O, coiteiro (Pedro Cândido) chegou com os alimentos envenenados a man­do da volante, menos três litros de pinga que, normalmente, ele próprio, o coiteiro, deveria ingerir em pequenas doses para pro­var sua confiança (...) minha suspeita com Pedro de Cândido confirmou-se depois que ele se foi (...). Apanhei um LITRO DE VERMUTE Cinzano e notei um pequeno buraco na rolha, pro­vavelmente feito por uma seringa. Chamei Lampião e disse-lhe:

— “O SENHOR É CEGO DE UM OLHO, MAS PODE VER QUE ESTA BEBIDA ESTÁ ENVENENADA"'.

6. Padre José Kehrle ouviu o SOLDADO VICENTE, integrante da volante de Angico, afirmar — "Até com juramento!" — que Lampião fora envenenado.


7. José Francisco do Nascimento, vulgo ZEZINHO BARBA AZUL, casado em Catende, PE, donde é natural, atualmente re­sidindo em Caruaru. Origem curiosa de seu apelido: deixou a mulher que prevaricara e foi arranjando outras até completar o número de seis, incluindo a esposa. Com o caso da perda da esposa, perdera também o medo do que quer que seja e adqui­riu a tal coragem motivada pelo estado de desespero em que ficara. Em certas ocasiões, chegou a brigar com Lampião perto, enquanto seus "colegas de farda se mijavam de medo"! Afirman­do enfim, "com toda a certeza", que Lampião não foi morto a bala.

8. O coronel SENHORZINHO ALENCAR, após ouvir minucioso relato de um ex-volante de Angico e de examinar cuidadosa­mente o fato, declarou de público: — "Acredito firmemente na hipótese do envenenamento de Lampião".

9. O tenente ANICETO RODRIGUES, um dos principais com­ponentes da Tragédia de Angico, igualmente levantou suspeição (daí por que João Bezerra omite seu nome no livro Como dei cabo de Lampião).

10. O coronel LUCENA, fugindo a um inquérito, que seria contundente, para decidir a questão, saiu-se com esta: — "É tar­de demais!" (cf. mais adiante, Adendo II b).

11. Os onze cadáveres foram encontrados numa área apenas de vinte e cinco metros quadrados, não havendo sinal de terem sido arrastados por ali. Indício de que, reunidos para o café, foram ao menos mais da metade dos cangaceiros, caindo enve­nenados dentro desse reduzido espaço. Em luta teriam sido mortos sim, mas dispersos. Por isso o coronel MANUEL NETO em carta aberta na imprensa: — "Não acreditei e continuo de­sacreditando, porém, na possibilidade de haver sido Lampião e seu grupo, abatidos como porcos, num único combate e no mesmo chiqueiro, registrando-se, apenas, uma baixa na tropa que o enfrentou". E concluía: "Lampião não era um covarde, um inexperiente para se deixar abater tão facilmente...“

12. Assim, também, o historiador sertanejo ULISSES LINS, tão escrupuloso da verdade: "... para que todos fossem mortos a bala, fora necessários todos juntos... como passarinhos na bebida...

13. Outro historiador, RODRIGUES DE CARVALHO, no seu livro Serrote preto, é pelo envenenamento.

14. ANTÔNIO SILVINO, velho cangaceiro muito experimen­tado, não acreditou em combate e até pilheriou dizendo que Lampião e seus homens estavam "dormindo"...

15. URUBUS MORTOS. Sob a orientação dos professores Drs. José Joaquim de Almeida e Aníbal Firmo Bruno, formou-se, na Faculdade de Direito do Recife, uma comissão de estudantes segundanistas do curso de bacharelado, a qual, para conseguir facilidades em Alagoas, tomou o nome de Comissão Acadêmica Coronel Lucena, com a finalidade de visitar e estudar os resul­tados da Tragédia de Angico in loco. Compunha-se a caravana de seis acadêmicos: Edson Cantarelli Caribe (presidente), Wan-denkolk Wanderley, Plínio Inácio de Sousa, Haroldo de Melo, Décio de Sousa Valença e Alfredo Pessoa de Lima. A este in­cumbia apresentar ao interventor de Pernambuco o relatório da missão. Agamenon Magalhães arranjou as passagens, ida e volta, de trem, a Maceió. Edson voltou de Quipapá, alegando não poder fazer face a certas despesas, enquanto os outros prosse­guiram, chegando, no mesmo dia 3, a Maceió, onde entraram, de imediato, em entendimento com as autoridades.

Partiram dali em caminhão que levava tropa. Viagem sacrificosa e mo­rosa por estradas carroçáveis, em péssimas condições de con­servação, no itinerário de Santana de Ipanema, Pão de Açúcar (onde dormiram na casa do delegado Tenório) e Entremontes, e daí para Angico, em canoa e a pé, como ainda hoje. Nove dias fazia que os cadáveres estavam insepultos! Não se contendo de indignação o ardoroso Alfredo Pessoa de Lima improvisou ali mesmo uma espécie de discurso-libelo muito comovente censu­rando aquele "crime da polícia". Deixando de lado o Relatório desse acadêmico (trechos publicados no Caderno acadêmico, setembro de 1942, p. 97-111), vazado em rebuscada linguagem eivada de pruridos das teorias lombrosianas tão em moda na época, o que mais importa é seu depoimento pessoal como tes­temunha ocular: — "Lampião e seus sequazes foram envenena­dos. A prova peremptória está nos urubus mortos junto aos corpos putre jactos". Outro acadêmico que, junto com Décio Valença, vencendo a repugnância, se aproximou mais do local para observar melhor. Wandenkolk Wanderley, chegou à mesma conclusão. Mais de vinte anos depois, esse destemeroso advoga­do criminalista, provocado em debate, declarava:

— "Eu vi com meus próprios olhos, visitando o local, alguns urubus mortos, cinco ou seis, caídos junto aos corpos dos cangaceiros. Devo­rando as víceras dos bandoleiros (ou os alimentos envenena­dos), eles também se envenenaram pelo arsênico". E, concluin­do: — "A versão dada pela polícia do então tenente João Be­zerra não passaria de conversa preparada para iludir crianças. O tal combate não se teria registrado, uma vez que os canga­ceiros não podiam mais resistir. Chegando ao esconderijo de Lampião, os soldados teriam encontrado homens moribundos, morrendo sob o efeito do arsênico. Tiveram apenas o trabalho de acabar de matá-los, degolando-os em seguida".

16. Mas, antes dessa comissão de acadêmicos, quem primeiro esteve no coito de Angico foram o repórter Melquiades da Ro­cha e o fotógrafo Maurício Moura, enviados do jornal A noite, do Rio, os quais encontraram os corpos decepados e os urubus mortos. Mais interessante ainda é que encontraram um vidro contendo pó amarelo. O médico do 2º Batalhão de Policia de Alagoas, Dr. Arsênio Moreira, verificou que era estricnina. Re­metido para o Rio, o chefe do gabinete de Investigações e pes­quisas científicas da Polícia, Antônio Carlos Vila Nova (atual diretor da Polícia Técnica de Brasília, ano de 1962), confirmou o veneno — estricnina! O frasco, talvez, caído inadvertidamente do bolso de Pedro Cândido. Daí sua grande preocupação se o plano falhasse.

17. "VOX POPULI"... O autor deste trabalho, nomeado vigá­rio de Tacaratu de 1942 a 1945, percorrendo aquela região toda — de Itacuruba ao vale do Ipanema, das catingas do Navio e Moxotó às ribeirinhas cidades de Piranhas, Pão de Açúcar, Traipu e Própria, dos vastos sertões baianos, a começar de Juazeiro, passando por Curaçá, Chorrochó, Jeremoabo e Glória, ao pequeno sertão sergipano — não encontrou outra opinião senão esta: — Lampião morreu envenenado!

18. O prefeito de Pão de Açúcar, AL, Joaquim Rezende, afir­mou ao cantor Sílvio Caldas que Lampião fora envenenado em Angico, antes do tiroteio.
19. Ainda está vivo o ex-cangaceiro Chá Preto, Eldi Antônio de Oliveira, co-partícipe da Tragédia, para afirmar que Lampião foi envenenado.

20. O celebrado historiador-polemista, Otacílio Anselmo, autor de Padre Cícero — mito e realidade está escrevendo um livro, fundamentado em longo e cuidadoso trabalho de pesquisa e cen­tenas de depoimentos fidedignos, provando que Lampião foi en­venenado. Revelando ainda que o laudo médico da morte de Lampião — inicialmente — atestou a presença de veneno e deu como causa mortis o envenenamento! O resultado desse exame, no entanto, foi mantido em sigilo! (Supondo o autor que para não prejudicar o Turismo). Não teria havido, porém, outro motivo mais forte? Não teria sido por razão política — de exaltação das autoridades e da polícia?

21. O sargento Manuel Bento declarou que "foi a maior co­vardia do tenente Bezerra fazer o que fez com Lampião, que era homem para morrer brigando no campo e não envenenado".
 
Depoimento básico sobre o envenenamento

Um testemunho de máxima importância no ato supremo da Tragédia de Angico. Suficiente por si só, caso não bastasse os outros, que urdiram o texto deste capítulo — o mais intrincado e difícil de escrever — e os vinte e um argumentos anteriores em prol do envenenamento (Adendo II).

Os cangaceiros do coito sobreviventes, distantes do local onde tombaram as vítimas, na surpresa e confusão do momento, quase nada sabem dizer.

Conseguiu o autor anotar o depoimento, abaixo fielmente tras­ladado, mediante compromisso de não comprometer o declarante. Agora, trinta anos depois, com a prescrição legal, quase tudo pode ser revelado.

Do padre Magalhães, vigário de Geremoabo, esta declaração pessoal ao autor: — "Posso afirmar ex-fide que Lampião morreu envenenado". Ex-fide, expressão jurídico-canônica ajuramentária, como se dissesse: "Juro diante de Deus", diferente do sentido jurídico-civil, que é apenas atestatório.

O mesmo pode dizer o autor a respeito do presente depoimento.
 
As circunstâncias de ordem psicológica e sacramentai confe­rem ao depoimento valor incontestável, dir-se-ia absoluto, e in­validam o princípio jurídico do testis unius.

Tão impressionante depoimento tornou-se o ponto de partida determinante do interesse das pesquisas do autor sobre Lampião.
O sono de Lampião

Lampião nunca dormia com o grupo. Desconfiado por natureza, ficava separado, sozinho. Um dos cabras de sua inteira confiança, muitas vezes escolhido na hora, chamado por ele de "sentinela-do-sono", lhe montava guarda. Perigos de fora e, pior ainda, de dentro havia, se oferecesse fácil ocasião. Espreitavam-lhe a ambição de lhe tomar a chefia geral do cangaço, a glória de ser seu matador, o prêmio de cem contos de réis oferecido por sua cabeça... Numa comunidade humana tudo pode acontecer. A vigilância teria de ser "eterna".

Aliás, o bando não dormia todo junto, não. Por ordem tática de Lampião, formavam-se grupos de dois ou três, espalhados, não longe uns dos outros. Assim, difícil o aniquilamento sob um ataque de surpresa. Em desde Maria Bonita, quando o can­gaço foi aberto às mulheres, essas normas se tornaram mais severas, principalmente quanto aos casais. Nenhuma promiscui­dade. A moral era rigorosíssima

 O começo 

Quando ele se apresentou era moço ainda, mas de cenho fechado no apardavasco da pele e com ar de espanto. No antes, porém, era "menino saído". De família humilde, mas honrada, vivendo dos roçados e de umas poucas de criações, além da vaquinha amojada com bezerrinho, e do cavalo de fazer feira. Os irmãos, antes e depois dele, não vingaram sequer um mês. Apenas lhe fazia par a irmãzinha, mais nova do que ele, então na adolescência. Um dia, desses que surgem repe­tindo a mesma história, um triste acontecido virou o juízo e a pacatez do moço. Na ocasião em que a menina se achava so­zinha em casa, veio sorrateiro, um tarado soldado da polícia e boliu com ela, à força. Acobertado pela farda e pela justiça, nem um padre-nosso teve de penitência, continuando nas suas funções e maldades. Pouco depois, o irmão vingava a honra da família, esfaqueando o miserável cujo nos braços de u'a mulher separada. Agora sim, a justiça enxergou e descobriu o crimi­noso — ele! E dos piores, porque matara uma "autoridade"! Caçado pela polícia, foi recebido por Lampião, que lhe trocou o nome por um de guerra — Paturi, a fim de evitar persegui­ções à sua família e forjou-o cangaceiro de sua confiança.

O relato

Eis o seu depoimento, aliás, muito cru, tomado na­queles idos de 1942, quatro anos da morte de Lampião fazendo. Foram eliminadas repetições inúteis e digressões supérfluas. O linguajar, fonético e sintático, corrigido, deixa, entretanto, transparecer, raramente entre aspas, palavras e expressões co­muns no sertão.

Pausadamente e, por vezes, angustiado, assim falou:
"Naquela derradeira noite do Capitão, eu fui escolhido para sentinela-do-sono.
Tarde da noite, o Capitão e Maria Bonita, que estavam nas melodias, assopraram o candeeiro para dormir.

Noite fria, serenando, estiando, serenando, assim...

Quando foi de madrugada, ainda escuro, Maria Bonita saiu da barraca, acendeu o fogo para ferver água na panela de barro. Botou dentro pó de café e pequenos tacos de rapadura.

Logo o Capitão apareceu de manga de camisa, escovando os dentes, de junto de uma pedra grande defronte da barraca. Alguns cangaceiros foram se achegando, sem armas, caneco na mão, para o café ali fumaçando. Devia começar primeiro pelo Capitão, era o chefe. Ele encheu o caneco e bebeu ligeiro, sem carne assada e farinha, sem nada, puro. Adespois os outros foram fazendo o mesmo. A gente tinha de viajar logo. 

A hora do café...

De repente, o Capitão soltou o caneco no chão. Parece que sentiu gastura, porque passou a mão rodando pela barriga. Deu uns passos largos, sem prumo e caiu na rede ainda armada na barraca. Deitou só o corpo, as pernas caídas do lado de fora. Eu ajutorando Maria Bonita a juntar os troços, que a gente ia sair cedo, vi tudo. Ela se queixava de dor de cabeça e os beiços queimando. Dizia que foi adepois que 'exprementou' o café para ver se estava bom de doce, um tiquinho de nada mo­lhado e 'ponido' na palma da mão para lamber. Aí, eu avisei a Maria Bonita. Ela, deixando a bacia, correu para ver. Eu corri também. Chegou logo Luís Pedro e Vila Nova. Num instante, o Capitão virou a bola do olho para riba, ficando só o branco, e abriu a boca. Uma gosma suja, com escuma, saía escorrendo do canto da boca. Luís Pedro olhou o pulso e o coração e disse: — 'Tá morto!' Chorando, ele tapou com as mãos os olhos do Capitão e apanhou o chapéu dele. Aí eu disse: — 'É veneno!' Maria Bonita, aperriada, sacudiu a cabeça dele e os ombros. E ele sem ação, morto de mesmo. Tive, na hora, o maior des­gosto de minha vida, os olhos chorando. Maria Bonita, coitadinha!, Toda agitada e desesperada gritou: — 'Virgulino morreu!' Eu gritei repetido: — 'O Capitão morreu! O Capitão morreu!'

Mergulhão, que estava deitado no pé da caraibeira, levantou-se todo espantado e perguntou alto: — 'O Capitão morreu?' Aí eu vi logo cangaceiros cair ali, de todo jeito, para frente, para trás, para os lados, de dejunto da panela de café. Maginei comigo mesmo:    — 'O veneno era forte que era danado!'
Eu acho que algum macaco da volante emboscada, com os gritos e os mexidos no coito, passou fogo em Amoroso. Ele tinha ido ver água talvez para o Capitão banhar o rosto. E quaje igual, outro tiro, que pegou Mergulhão. Atrás veio logo uma trovoada de bala! Aquele despotismo que nem deu tempo mais de pensar! Aí era o causo de se salve quem puder, como diz o outro. Assim de surpresa, bala para todo lado e naquele cafus, como era que a gente podia tomar posição e brigar? Aí me so­quei dentro de um buraco comprido e baixo, que eu sabia.
Ficava no pé do morro, 'próchimo' da gruta e atrás da barraca do Capitão. O buraco só dava para caber o corpo pragatado, a barriga no chão, sem poder se virar mais, muito apertado. Na frente tinha moita de mato tapando. Fiquei aí, os braços inco­modados, não tinha posição para botar eles. Mesmo querendo, eu não podia sair dali. Do lado de fora era bala por todo canto zinindo. Adespois, as pernas ficaram 'drumentes', moles, bambas só mulambo. Fiquei sem mexer. Mexia só os olhos e o baticum do coração. O resto estava morto.
Vi a hora das balas me pegarem. Deixa que chegaram a açoi­tar a moita. Foi Deus e a Santíssima Virgem que me livraram. Dali de bem de riba, eu fiquei pombeando tudo pela brecha que fiz na moita.
O horror era grande! As balas vinham de magote. Foi torada de bala a rede do Capitão, que caiu com todo o peso no chão. O pano da coberta da barraca avoou, ficando só as varas. Vi Mergulhão cair. Adespois foi Maria Bonita caindo, as mãos cheias de sangue apertando a barriga. Luís Pedro deu uns tiros, mais arriou logo. Vila Nova correu. Não deu tempo de ninguém brigar. Não teve 'loita', não. Possa ser que mais algum cabra de lá de riba do riacho desse besteira de tiro, sem palpite, à-toa. A gente e o riacho todinho se acabando na bala. Não posso dizer nem o que foi. Era a confusão do inferno! Mas, não de­morou muito tempo, não. Foi ligeiro, ligeiro... coisa de meia hora.
 Os macacos, quinem urubus, deram em riba dos cangaceiros caídos, atrás do saqueio de dinheiro, ouros, jóias, outras coisas mais. Não tinham paciência de tirar os anéis dos dedos, corta­vam logo os dedos.
Sentado numa pedra, o comandante deu a ordem: — 'Cortem as cabeças dos cangaceiros!' Aí foi um alvoroço, todo o mundo gritando: — 'Cortar as cabeças!... Cortar as cabeças!...' Não sei como não morri vendo aquele horror! Parecia um bando de bicho do mato, de feras selvagens, dando gargalhadas e chaman­do toda nação de nome feio. Levantavam as cabeças dos mor­tos, segurando pelos cabelos, botavam o pescoço escanchado numa pedra — ficava uma coisa feia: a boca escancarada, os olhos arregalados! — e metiam o facão. Um macaco furando, furando, de pedacinho, com a ponta da faca no redor do pes­coço de um cabra até separar do corpo. Outro rolou o facão no pescoço e, quando puxou a cabeça, saiu a guela de dentro do corpo. Foi u'a mangação danada! Nenhuma cabeça era cor­tada de uma só vez. Davam mais de um golpe.
Vi uma coisa horrível, que nunca um cangaceiro fez e só bicho faz: os ma­cacos lamberem o sangue da folha do facão melado! A cabeça cortada era levantada pelo cabelo e mostrada, todos dando risa­da de gosto, mangando e dizendo nomes feios. Tinha cangaceiro meio vivo, mexendo os olhos e falando. Cortaram assim mesmo a cabeça deles com vida! A sangreira era medonha! Tudo mela­do: macaco, facão, pedra, chão, água, roupa, 'tudim'. Eu vi tudo, já era dia claro, de dia. Naquele meio, veio a ordem do coman­dante para acabar depressa. Ele estava sentado numa pedra, o pé amarrado, e muito zangado, acho que era de dor.
Eu tive dó quando um macaco levantou a cabeça de Maria Bonita, dependurada pelos cabelos compridos. O outro macaco, que tinha o facão na mão, perguntou meio espantado: — 'Inda tá viva, bandida? Cadê o dinheiro?' Ela respondeu bem fraquinho: — 'Não tenho, não'. — 'Então, lá vai...' E cortou o pescoço dela com duas 'facãozadas'. O corpo ficou batendo no chão como de galinha sangrada, e as pernas se descobrindo. Aí eles arregaçaram a saia dela para espiar o resto e começaram a bolir com as mãos, dizendo lérias.
Tive tanta raiva que veio vontade de sair e avançar naqueles dois sujeitos safados, desculpe a má palavra.
Chegou a vez do Capitão. Um macaco conheceu e disse: — 'É o peste do cego!' Danou uma coronhada de fuzil na cabeça e foi avisar o comandante. O outro ficou cortando o pescoço do Capitão em riba de uma pedra. Quando acabou, a cabeça escor­regou e rolou pela ladeira da pedra até o chão. Ele pegou ela e levou para mostrar ao comandante, que ficou cercado de ma­caco examinando e falando.
Tudo acabado botaram as cabeças em três sacos, as bocas amarradas num pau. Sim, botaram, também, um corpo com ca­beça dentro de uma rede dependurada noutro pau. Tudo mode ser carregado, nos ombros de dois. Adespois os macacos foram se lavar nas poças mais de riba, de água limpa.
Começaram a ir embora. O comandante numa cadeirinha feita dos braços de dois macacos. Levaram todo o saque. Foram su­bindo, um atrás do outro, feito formiga, pelo caminho do alto das Perdidas.
Fiquei ali deitado o dia todo. A cabeça zoava todinha, o corpo doía, quinem tinha apanhado uma pisa de cacete. Faltei cora­gem para sair dali. Eu via macaco pulando até pelos galhos mais altos dos pés-de-pau. Não tinha fome, não. Mas a sede era de matar, aperriando.
Senti uma agonia doida. Mas, esperei, esperei... O silêncio muito grande. Os passarinhos assustados não voltaram mais. Fechava os olhos e enterrava a cara no chão com medo de ver as almas daqueles defuntos aparecerem sem cabeça. Fiquei tão assombrado que sentia algumas vezes o gume do facão passar no meu pescoço. Rezei tanto a Nossa Senhora do Desterro que cheguei a suar de pingar.
Tardinha fui saindo com medo de assombração e de tudo. Caminhava de quatro pés, não podia ficar de pé causo das pernas feitas molambo e tremendo. Eu queria ficar fora da vista daquele açougue de carne de cristão. Subindo o riacho cheguei no dependo do alto, os joelhos esfolados. Me aprumei, fui an­dando, assim cambaleando, areado, até poder sair correndo, ligeiro ou devagar, a noite inteirinha, até chegar na casa de meus pais. Tava mais morto do que vivo.
Passei aquele dia dei­tado tomando tudo o que era de meizinha que minha mãe pre­parava e me dava. Comida de panela comi bem pouquinho. De noite, já no outro dia, meu pai me levou para casa de um tio meu, viúvo, que morava sozinho, lugar mais seguro, um esqui­sito. Estou lá este tempo todim, fazendo planta, dando limpa, xaxando terra nos pés, colhendo legume e capucho de algodão. Também no cuido das criações. Sem sair pra nenhum lugar. Somente agora saí praqui causo minha mãe mandou pedir per­dão a Deus. Adespois desta conversa eu quero que seu vigário escute meus pecados na confissão e me comungue na missa".

O fim

Satisfazendo a curiosidade do leitor: Esse moço, que escapara da morte para contar a história, logo depois, feito embarcadiço de um vapor do rio São Fran­cisco, rumou para o Sul, sem documentos, de nome novamente trocado, para começar nova vida.
E desapareceu...
No local onde Lampião caiu morto, o capitão João Bezerra fez erguer uma gran­de cruz latina, de ferro, com três metros de tamanho, has­tes binadas, cravada em peanha natural, de pedra.
Seu autor teve uma concep­ção original, que tornou a cruz única no gênero.
Mandou colocar duas estrei­tas barras de ferro unindo as extremidades de cada braço ao topo da haste vertical, for­mando assim dois triângulos-retângulos, em cujas hipotenusas foram levantadas dez pequenas cruzes, também de ferro, com o nome dos com­panheiros de Lampião mor­tos com ele, e distribuídas, a começar do topo, na seguin­te ordem: do lado esquerdo — Maria Bonita, Elétrico, Mergulhão, Desconhecido (depois se descobriu tratar-se de Mangueira), Diferente (este fugiu; o morto era Moeda); do lado direito — Luís Pedro, Quinta-Feira, Cajarana, Caixa-de-Fósforo, Enedina.
Particularidades interessantes e coincidentes:
— a cruz de Maria Bonita fica à esquerda — o lado do coração!
— a de Luís Pedro, à direita — o lado da confiança!
A inscrição reza assim: — "Aqui jaz o Rei do Cangaço, Capi­tão Lampião, com dez companheiros. Combate a 28 de julho de 1938. Lembrança do capitão João Bezerra. Colocação da cruz em 30 de outubro de 1961". A essa inscrição poderia aquele oficial acrescentar as palavras suas, ditadas, anos mais tarde, pela análise sincera e pelo crité­rio sereno e honesto de seu espírito amadurecido a respeito do Rei do Cangaço:

Fonte

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