Por Rangel Alves
da Costa*
Talvez os
vivos mereçam uma missa, um pranto de saudade, um buquê de flores e um
emocionado discurso louvando sua memória e suas virtudes. Seria um tipo de
Réquiem para os vivos, um rogo pela purificação das almas que se alastram
perdidas nos desvãos da existência. Assim, ao invés de o celebrante dizer
“dai-lhes o repouso eterno”, diria “dai-lhes o renascimento do que de mais puro
ainda existe nas suas almas”.
Somente na
louvação e na memória é possível lustrar as feições humanas com os bálsamos
inexistentes perante a realidade. Mas o que os viventes, os que continuam vivos
e perambulando por aí, fizeram para que sua memória precisasse ser reverenciada
antes do desaparecimento terreno? Não seria mau augúrio nem antecipação dos
fatos, mas apenas um forma de reconhecimento agora daquilo que certamente o
homem esconde em si. E também uma maneira de despertar as tais virtudes que
parecem enclausuradas e sufocadas pelo lado frio e arrogante do ser.
Não há de se
duvidar que o homem que anda por aí é um ser transformado pela realidade que
vivencia no seu dia a dia. A bem dizer, é apenas um ser revestido de outra
roupagem que não aquela inicialmente concedida. Despido de sua natureza
intrínseca, e esta nascida boa pelo próprio desígnio humano sobre a terra, aos
poucos foi convergindo para si os males do mundo e assim se deixado levar no
convívio e nas suas relações. É como se a sua bondosa natureza tivesse sido
tomada pelos fluídos negativos da Caixa de Pandora.
Envolvido e
transformado sem ser esse o seu destino, é preciso que se diga. Nenhum homem
nasceu com a sina da maldade, da violência, da desonestidade consigo mesmo e
com o próximo. Nenhum ser humano nasceu carregando a cruz da miséria, da
discórdia e do sofrimento. Nenhum ser humano veio ao mundo para expurgar de si
seus relevos espirituais e se transformar em algo medonho e temido. Logo se tem
que a roupagem adquirida nada lembra aquela vinda no corpo, na alma e no
coração do homem.
Quer dizer, o
homem não é assim tão desumano, egoísta, soberbo, falso, mentiroso,
aproveitador, que só pensa nele mesmo e depois em si mesmo. Não, o homem não
pode ser assim, e certamente não é, mas algo o impulsiona a assim ser e se
comportar. E uma missa em sua memória, ou à memória de suas virtudes, talvez
possa fraquejar o lado insidioso e fazer renascer aquilo que se espera
ressurgindo. As palavras de glorificação e reconhecimento de suas capacidades
servirão como remição para os tantos erros e ressurgimento das boas virtudes
que acabaram nas sombras.
A verdade é
que o homem não pode continuar aprisionado por aquilo que não deseja. Assim
porque se presume não desejar ser, viver e agir sendo comandado pela sua feição
mais desumana e insensível. Em muitos há uma verdadeira luta íntima para não se
deixar conduzir pelas ações que lhe retiram o que tem de mais virtuoso. E
porque seu lado bom continua prisioneiro das exigências e influências negativas
do mundo, o homem espiritual precisa ser urgentemente libertado destes
tormentosos grilhões.
O homem é um
ser essencialmente esquecido das lições primordiais da vida. Basta que algo
brilhe como ouro, e já larga as preciosidades duramente alcançadas. E na
ganância, na ambição desmedida, acaba rejeitando princípios éticos, morais e de
bondade, para se alimentar somente da acumulação daquilo que nenhuma serventia
traz à alma. E neste afã de conquista, todo aquele que se puser à sua frente
tenderá a ser visto como empecilho e pisado como verme asqueroso.
E num mundo de
disputas, ambições e injustiças, a medida da ação será aquela que lhe garanta
não só a sobrevivência, mas principalmente ter sempre mais do que necessita, e
custe o que custar. Nesse estágio, a violência não comove, a arrogância não é
sentida, a desonestidade não provoca revolta, o medo não provoca qualquer
espanto. E nada disso faz sofrer ou causa reflexão porque também é agente dessa
situação. É como se aprendesse no erro a também errar. É como se escolhesse
negligenciar as condutas positivas da vida porque pressente e se guia pelos
desacertos de seus semelhantes.
Lamentável que
seja assim. Ora, o homem, enquanto dádiva da criação, é um ser bondoso, digno,
virtuoso, nascido para o companheirismo e o agradável convívio. Que se tome
como exemplo a criança brincalhona, feliz, cheia de satisfação, ainda que
nascida em leito empobrecido. Tome-se como exemplo o jovem sonhador, lutador,
que vai abrindo caminho e enfrentando os espinhos sem perder a candura nem
afrontar o destino. Mas parece que tais qualidades acabam depois da curva da
estrada. Após isso, já não mais será avistado como antes.
Diferentemente
do que se possam imaginar, tais palavras não são pessimistas nem carregadas de
descrenças no ser humano e generalizando de modo negativo as feições existentes
em cada indivíduo. Pelo contrário, surgem como reconhecimento de sua capacidade
para agir positivamente diante do que lhe foi confiado na existência. E
reconhecimento também que os malefícios acaso surgidos, e proliferados de modo
tão danosos, não são fruto de escolha pessoal, mas do meio que impõe a sujeição
a todos os tipos de indignidades.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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