Acervo do
pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
ASSIM FALOU
VOLTA-SECA... - COMO SE FORJA
UM CANGACEIRO
A FERA HUMANA
Lampião Era
Mau e Perverso Como Ninguém. Mas Demonstrava Possuir Sentimentos Humanos –
Espírito Profundamente Religioso – Ascendência Dos Capuchinhos Sobre o Rei do
Cangaço – O Caso de Sabiá
CHAMAVA-SE
Virgulino Ferreira o homem que foi por muito tempo o “rei do cangaço”. Era um
homem alto, muito alto mesmo, talvez o maior do bando, do qual o menor era eu.
Magro, mas de compleição forte, e de raça branca, apesar de queimadíssimo pelo
sol. Sua pele era muito escura, mas os cabelos negros e lisos atestavam sua
origem racial. Era cego de um olho, e depois de muito matutar para descobrir
qual dos dois seria, cheguei á conclusão que devia ser o direito, pois ele
dizia sempre que “sua pontaria já estava feita eternamente”. Como era canhoto,
devia ser mesmo o direito. Notava-se que ele não enxergava desse olho, porque
lhe encobria a pupila uma pele branca, uma belida. Às vezes usava óculos, e aí
está um detalhe curioso. É que em todas as fotografias ele aparece de óculos,
mas na realidade, poucas vezes o vi assim. Seus óculos não tinham grau, eram
usados para “descansar a vista”, coisa muito comum no bando. Era mesmo elegante
o uso deles, razão pela qual, na hora das fotografias, ninguém aparecia sem
óculos. A rigor, mesmo, ninguém no bando usava óculos de grau. Lampião, apesar
de só ter um olho, dizia sempre: “Eu só tenho um olho, mas enxergo por dez” ...
VALENTE COMO
FERA
ERA homem de
uma resistência espantosa, capaz de andar um mês sem parar, alimentando-se mal
e bebendo pouca água, o que lhe valeu a alcunha de “alpercata mais ligeira do
sertão”. Era esquisitíssimo e vaidoso, gostando de usar muitos anéis (aliás,
como todos nós), e seu equipamento era todo enfeitado de libras. Era
mal-humorado, mas às vezes ria para nós e até contava casos engraçados. Tinha a
noção do que era ser chefe, e tanto estava alegre como ficava furioso um
segundo após. Quando estava zangado, era o diabo em figura de gente, pois era
mau até onde a maldade pode ir. Era homem valente e posso afirmar que nunca vi outro
igual. Não tinha medo de nada, nem de ninguém.
Na sua esquisitice, às vezes gostava de ser caridoso e proteger infelizes, sem contar que se julgava justiceiro. “O homem mais justo do mundo”. Essa parte de bondade, eu penso ser remanescente de sua antiga vida, quando ainda nem sonhava em ser cangaceiro. Ele mesmo se cansou de contar a sua vida, e quando o fazia não podia esconder o ódio de que ficava possuído. Pelo que ele contava, seus dados biográficos são os que passo a narrar.
O MÓVEL
NASCEU em Vila
Bela ou Matinha de Água Branca, no estado de Pernambuco. Desde pouca idade era
tropeiro, e carregava peles de cabra e criações, transportando-as de Matinha de
Água Branca para Delmiro Gouveia, em Alagoas. Seu pai possuía umas terras e,
quando ele tinha dezesseis anos de idade, soldados comandados pelo então
sargento Lucena, mataram-no o pai. Havia uma briga em torno de terras e esse
militar decidiu resolver o caso pelo caminho da força.
Ao saber da morte do pai, Virgulino enfureceu-se, pois gênio ruim a gente traz do berço. Os parentes, porém, aconselharam-no a dar parte às autoridades, e ele, julgando ser a medida mais certa, assim fez. Mas a volante retornou á fazenda e, tal qual da primeira vez que Lampião lá não estava, destruiu tudo e matou-lhe a mãe. Os soldados ainda dessa vez foram comandados pelo sargento Lucena.
Um homem do gênio de Lampião não podia conformar-se com o assassínio do pai e da mãe. Calculo o que não passou pela sua cabeça quando se consumou o segundo crime. Mas Lampião de uma coisa se convenceu: não era mais possível ficar naquelas terras, pois os soldados voltariam e então seria a sua vez de morrer. Esses pensamentos, juntamente com o ódio que passou a ter do mundo, foram os incentivos para que ingressasse no cangaço.
Quando comunicou o fato a família, encontrou quem o quisesse seguir: Ezequiel, Antônio Ferreira e Virgínio, este mais conhecido como “Esperança”. Ezequiel era o seu irmão mais novo, Antônio, o mais velho, e Virgínio, seu cunhado, casado com uma de suas irmãs. O cangaço começou com os três e aos poucos foi aumentando, até que se tornou o mais poderoso bando que já cruzou as caatingas nordestinas. Como veremos adiante, os dois irmãos morreram antes de Lampião, em combate, e, Virgínio foi dos últimos a ser trucidado pela volante. Quando Antônio morreu, eu ainda não era do bando, mas me contaram que Lampião não chorou, só deixou crescer o cavanhaque, por um ano, em sinal de protesto. Foi assim que eu o vi pela primeira vez. Já quando Ezequiel morreu, o choque que ele teve foi fortíssimo. Desse dia em diante Lampião ordenou que não se poupasse mais a vida de “macaco” algum. Se fosse soldado, tinha que morrer, e creio que, com raríssimas exceções, soldado que não fugiu, morreu mesmo... Pouco depois da morte de Ezequiel, o bando dizimou a tropa inteira de um tal tenente Alceno, sendo que este não morreu porque fugiu. Dizem que quando ele chegou à primeira cidade, estava abobalhado e dizia: “Acabaram com a minha força... Não deixaram um homem vivo...” Só restou mesmo ele para contar a história.
O CORONEL
MORREU NA CAMA
A TÍTULO de
curiosidade, vale a pena dizer que Lampião jamais conseguiu pegar o sargento
Lucena. Nem quero pensar o que faria se conseguisse... Lucena morreu coronel e
chegou a ser prefeito de Maceió. Sua morte, por incrível que pareça, foi numa
cama macia... O castigo do céu parece não ter funcionado desta vez. E dizer que
esse homem contribuiu com a sua maldade para que tanto crime fosse praticado!
Sem o sargento Lucena, talvez não existisse Lampião, e sem este, eu ainda era
capaz de estar em Goloso com minha roça e a família de seu Danilo. Não teria
levado a vida que levei, sem contar a que vivo agora. Mas, apesar de tudo, por
minha parte, já perdoei o coronel Lucena...
UM OU MIL
PELO que mais
tarde pude deduzir, Lampião teve várias fases em sua vida. É possível que, de
início, quando não era ainda cangaceiro, fosse um homem pacato e bom. Eu não o
conheci nessa época, e os que o conheceram, como seus irmãos e o cunhado, não
comentavam essa fato, que, aliás, para eles, não tinha muita importância, pois
se modificação houve, atingiu-os também. O fato é que, dando crédito ao que se
diz de Lampião, ele foi ficando pior com o correr do tempo, e à medida que
aconteciam coisas em sua vida. Um fato, porém, posso garantir: já o encontrei
mau e perverso como poucos. Era a maldade tranquila, sem alarde, aliada a uma
audácia surpreendente. Gostava muito de dizer: “Se tem que matar, mata logo.
Pra mim tanto faz matar um como mil. É a mesma coisa”.
De fato, ele era assim. Também não era muito de mandar matar, só o fazendo quando estava indisposto. Regra geral, ele mesmo eliminava a pessoa que devia morrer.
Era esquisitíssimo, como já disse. Nas sextas-feiras não falava com ninguém, nem mesmo com Maria Bonita. Ficava solitário, com o cano do fuzil voltado para o chão, afastado de tudo e de todos, meditando, ora balbuciando, ora olhando o céu... Ai de quem falasse com ele nessa hora... Não comia, nem bebia nesse dia da semana. Nunca pude saber a razão dessa solidão, mas tenho cá minhas desconfianças que devia teu um fundo religioso.
Sim, pois Lampião era muito religioso... Peço aos leitores que não se riam, mas Lampião, apesar de sua crueldade, estava sempre pensando na religião. Não admitia que se falasse mal dos padres, pois, para ele, os sacerdotes eram santos. Os frades capuchinhos que viviam pelo sertão tinham grande ascendência moral sobre ele, e eu, até hoje, tenho a impressão de que, se não o tivessem matado, ele se teria regenerado e apresentado às autoridades pela mão de um padre qualquer, pois os “cabras” que o acompanharam até o fim me contavam que dia a dia mais se afervorava o seu espírito religioso. Aliás, existe um ditado em minha terra que diz: “Quanto mais religioso, mais perigoso...”
MANIAS DE
LAMPIÃO
FORA das
sextas-feiras, porém, ele gostava de se dirigir aos seus comandados, e até
pilheriava. Quando nos ouvia falar mal da vida (é claro que comedidamente), ele
dizia: “Meus filhos, vocês estão num tempo mole. Um combate hoje, um amanhã...
Antigamente é que era duro. Vocês calcular que em Serra Grandes, Serra do Nã e
Serrote Pelado a coisa foi feia de lascar. Em Serra Grande, então, basta dizer
que eram seiscentos soldados bem contados e só regressaram cinquenta... Mas
hoje a coisa está mole...”
Nessas “fases boas”, o capitão Virgulino era até alegre. Gostava de cantar e tocava bem sanfona, aliás, tocava melhor do que cantava.
Lampião tinha também suas manias. Não gostava de mulher com cabelo curto e punia “o crime” com uma dúzia de bolos. Vestido curto também era punido com uma dúzia de bolos, sem contar que ainda era chamada de “sem-vergonha”. E ele fez escola com isso, pois um dos “cabras”, José Baiano, preferia marcar com um ferro em brasa que trazia as suas iniciais, as mulheres que estivessem na “infração”. Se era cabelo curto, José Baiano marcava o rosto da infeliz; se era vestido curto, a marca era feita na barriga da perna. Contarei adiante como José Baiano fazia as mulheres de gado e as marcava com o seu ferro em brasa, especialmente confeccionado para essas ocasiões. Aliás, Lampião achou tão eficiente o “sistema” de José Baiano , que acabou com os bolos e passou a entregar todos os casos ao JB.
CAÇA AO SABIÁ
ALÉM de
religioso, Lampião tinha-se na conta de homem decente. Gostava de mostrar isso
quando se tratava de mulheres violentadas. Ele podia admitir as crueldades de
José Baiano, mas nunca admitiu que um “cabra” violasse uma mulher e continuasse
vivo. O amor era livre, mas o amor correspondido, nunca o amor forçado, amor de
violência...
Vou, aliás, encerrar este capítulo contando um fato desses, que se deu com o bando em Lagoa do Rancho, no interior da Bahia. O bando estava acampado nesse local, quando, após alguns dias, estourou um escândalo: o dono da fazenda onde estávamos queixou-se a Lampião de que um de seus “cabras” havia estuprado sua filha. Lampião, seguido pelo bando, foi ver a filha do fazendeiro, e o quadro a que assistimos era triste: a mocinha (pouco mais de treze anos), horrorizada, chorava e estava num estado lamentável. O autor do ato bárbaro fora Sabiá, um rapaz forte, com seus dezoito anos, mais ou menos, e novo no bando.
Praticado o atentado, Sabiá, provavelmente caindo em si, fugira para o mato a uns quinhentos metros da fazenda, quando muito. Lampião, depois de ver o estado em que ficou a filha do fazendeiro, falou secamente: “Volta-Seca e Gavião... Vão buscar Sabiá!”
Eu e Gavião saímos à procura de Sabiá, e fomos encontra-lo entrincheirado atrás de uma pedra grande. Não quis fugir para longe, e estava apavorado. Quando nos aproximamos, ele gritou: “Não avencem mais um passo que abro a cabeça dos dois a bala!” Olhei para Gavião e certifiquei-me de que faria mesmo o que prometera, mas felei-lhe: “Sabiá... O capitão quer lhe falar, e nos mandou buscar você”. A resposta não tardou: “pois eu não vou e vocês não se aproximem. Se o capitão quer falar comigo, que venha ele mesmo me buscar.”
Achei muita ousadia, mas não tentei captura-lo. Seria loucura, pois estando num ponto ideal para defender-se, matar-nos-ia facilmente. Olhei para Gavião e retornamos à fazenda. Lampião, quando nos viu sozinhos, perguntou intrigado: “Cadê ele? Fugiu? – Não, senhor, respondi. “Sabiá está entrincheirado ali embaixo, atrás de uma pedra”. – “Por que não trouxeram ele”? Retornou Lampião. – “Porque ele nos mata. Nós dissemos pra ele se entregar porque o capitão queria falar com ele. Mas ele disse que o senhor vá buscar ele, se quiser”.
Foi a conta! A testa de Lampião franziu-se, os lábios se comprimiram e, trilhando os dentes, falou: - “Cachorro, pois vou buscar essa cão...” E mandou que eu e Gavião o guiássemos até o local onde Sabiá se encontrava.
Sabiá estava ainda no mesmo lugar, como se nos esperasse. Quando já estávamos a uma boa distância, distância esta aconselhada pela prudência, eu e Gavião paramos, mas Lampião continuou andando no mesmo passo, sem se abalar e sem dar a menor importância a nós dois. Sabiá, ao vê-lo cada vez mais próximo, berrou: “Pare, capitão, que eu atiro... Pare! Pare!” Lampião só parou a uns cinco metros da pedra. Segurava o fuzil com as duas mãos, na posição de soldado que se prepara para uma carga de baioneta. Eu e Gavião, à distância, estávamos admirados com o que víamos e, por mim, digo que julguei ter chegado o fim de Lampião, pois Sabiá era um rapaz valente.
VOCÊ NÃO ATIRA
EM NINGUÉM
- “Não avance
nem mais um passo, capitão, que eu atiro! Ninguém vai me pegar!”, dizia Sabiá.
Lampião olhou-o por um momento e, de repente, falou: “Você não atira em ninguém, menino”. E avançou. Avançou resoluto, com Sabiá fazendo pontaria para ele. A todo instante eu esperava o estampido assassino do fuzil de Sabiá, mas o tiro não saiu. Frente a frente com Sabiá, Lampião gritou: “Atira, cachorro! Atira!” E Sabiá não atirou... Pelo contrário, arriou o fuzil. Foi seu fim, pois Lampião, rápido, deu a coronha de seu fuzil na cara do rapaz, que rolou pelo chão, ensanguentado.
Eu e Gavião aproximamo-nos depressa do local e Lampião mandou que o levássemos a fazenda. Desarmei Sabiá e, eu de um lado e Gavião do outro, levamo-lo de volta, enquanto Lampião ia a frente, a passos rápidos. Sabiá estava tonto, com a boca arrebentada e todos os dentes da frente quebrados. Sangrava muito e vinha amparado por mim e Gavião.
Na fazenda, todos se acercaram de nós. Eu sabia que a coisa ia ter um trágico, pois Lampião estava furioso. Foi feito um círculo de gente e, no meio dele, Sabiá, ladeado por mim e Gavião, com Lampião na frente, que olhava sem afastar por um segundo sequer os olhos de Sabiá. Olhava-o com ódio, sem dizer nada, e o silêncio era completo, pois ninguém ousava falar. Sabiá mal se aguentava em pé. Estava vencido. Vencido e convencido. Lampião, então, pôs-se a falar:
- Vais morrer porque não prestas, cão. É por causa dessas coisas que falam mal da gente por aí. Mas eu te dou um exemplo, pra todos saberem que o bando de Lampião tem vergonha.
FUZILADO
E, APONTANDO
para dois empregados da fazenda, ordenou: “Vocês dois aí, cavem um buraco para
enterrar esse cabra”. Os homens obedeceram e, de enxada em punho, puseram-se a
abrir a cova. Sabiá não falava, e tenho até a impressão de que não compreendia
o que se passava. Depois de alguns minutos, a cova pronta, isto é, dada como
pronta por Lampião, apesar de não ter mais de dois palmos de profundidade,
mandou ele, que os dois homens parassem e, apanhando uma “Berbere”, apontou
para a cara de Sabiá, que nem moveu a cabeça. Quem estava atrás de Sabiá correu
para se abrigar. Lampião fez a pontaria e gritou: “Vai-te pros infernos, cão!”
E deu no gatilho! Sabiá caiu morto, mas Lampião continuou a atirar. Houve quem
contasse quinze tiros... Aquela expressão: “Vai-te pros infernos!” era muito
comum a Lampião, quando matava alguém naquelas condições. Saciada sua fúria
assassina, Lampião ordenou aos dois empregados que abriram a cova: “Joga este
peste aí! Cachorro se enterra de qualquer jeito!”
Mas a coisa não acabara ainda. Lampião virou-se para mim e Gavião e disse: - Vocês dois são os culpados, pois eu mandei vocês vigiarem Sabiá. Eu sabia que esse rapaz era malucão”. Enquanto falava, segurava ameaçadoramente sua “Berbere”, e eu senti que ele pretendia matar-nos. Mas eu não morreria como Sabiá, pus logo a mão no parabélum e respondi: - “Nós estávamos tomando conta dele, mas ele fugiu. Que é que podíamos fazer? O fazendeiro, pai da moça, talvez horrorizado com o que assistiu, veio em nossa defesa dizendo que, de fato, ninguém deu pela coisa, pois Sabiá agira premeditadamente... “Todo mundo foi enganado, seu capitão... disse o fazendeiro.
Parecia que já tinha passado o ódio de Lampião, pois ele deu as coisas e afastou-se. Eu respirei aliviado. Sabia muito bem o que significava a sua frase: “Tanto faz matar um como mil”. Ele não parece ter ficado zangado comigo, pois no dia seguinte já me dava ordens. Aliás, a morte de Sabiá foi dramática, mas não foi a única motivada por estupro. Outros “cabras” encontraram o mesmo fim, uns nas mãos de Lampião diretamente, e outros nem essa chance tiveram, pois Virgulino mandou que outros os exterminassem.
Próximo
capítulo: A Justiça de Lampião.
Fonte: facebook
Página: Antônio
Corrêa Sobrinho
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