por Caio César Santos Gomes
Sobre o autor[*]
Introdução
Este trabalho
focaliza as memórias dos atores sociais, ou seja, as pessoas que testemunharam
a passagem de Lampião e seu grupo de cangaceiros em Nossa Senhora da Glória,
cidade do sertão sergipano, em 1929, e aquelas que conviveram com estas
testemunhas. Embasado na história oral e na análise do universo mental, este
artigo analisa o imaginário social acerca da passagem dos cangaceiros no
município. O foco do estudo é as diversas manifestações das lembranças dos
indivíduos, em uma época que o sertão do nordeste brasileiro enfrentava além
dos problemas naturais, a ação dos grupos de cangaceiros, tidos como facínoras
e bandidos sanguinários.
Os estudos
sobre o cangaço estão presentes nas diversas áreas da pesquisa histórica, por
ser um assunto que continua oferecendo vários questionamentos para a pesquisa
acadêmica. A historiografia registra muitos estudos sobre o cangaço, que em
geral, se debruçam sobre a história do movimento e sobre o resultado material
das ações dos cangaceiros pelos sertões do Nordeste brasileiro.[1] Porém,
ainda cabem algumas considerações, principalmente no que se refere à relação do
cangaço com as memórias dos indivíduos que vivenciaram a época.
Desta forma,
este trabalho contribui para o enriquecimento das informações referentes ao
cangaço, uma vez que trabalha com a análise da memória social, individual e
coletiva, sobre o movimento. Por se tratar de um campo privilegiado da
historiografia, devido às diversas possibilidades de abordagens, uma análise
sobre as memórias do cangaço em Nossa Senhora da Glória, apresenta-se como um
viés pouco explorado da história dos municípios sergipanos. O mérito deste
trabalho é sugerir questões sobre o cangaço para serem investigadas através da
história oral, explorar as memórias e colaborar para a escrita da história do
município.
O recorte
temático é a passagem de Lampião e dos cangaceiros em Nossa Senhora da Glória,
em abril de 1929. Foram coletadas algumas notícias dos jornais sergipanos da
época e os depoimentos de moradores do município, priorizando os indivíduos que
viveram a época e, em alguns casos, pessoas que ouviram falar sobre a passagem
do cangaço pela localidade.
Lampião na
cidade de Nossa Senhora da Glória – SE
A visita de
Lampião e seu bando a cidade de Nossa Senhora da Glória ocorreu no dia 20 de
abril de 1929, um sábado, dia da feira local. Apesar da fama de facínora, em
Glória, Lampião não praticou nenhum crime, contrariando o pensamento das pessoas
que temiam um derramamento de sangue. [2] O então
jornal Gazeta de Sergipe noticiou o fato em 22 de abril de 1929. A notícia
trazida à tona pelo periódico afirmava que depois de entrar em Sergipe pela
área do atual município de Canindé de São Francisco, Lampião e seu bando
passaram em Poço Redondo, logo depois seguiram em direção a Nossa Senhora da
Glória “onde se demorou alguns minutos, desaparecendo com direção ignorada, em
direção a caatinga.” [3]
Além da
passagem dos cangaceiros, Nossa Senhora da Glória registra nas páginas da sua
história a marcha da volante (termo pelo qual era conhecida a força policial)
baiana de Zé Rufino em direção à Poço Redondo para buscar informações sobre o
paradeiro de Lampião. A caçada ao cangaceiro fez com que Zé Rufino e sua
volante se tornassem alvos de coiteiros (expressão que designava os protetores
de Lampião) e espiões. Por isso, em sua caminhada rumo a Poço Redondo sabendo
do risco que corria, mudou seu rumo e seguiu para Nossa Senhora da Glória,
acampando na Fazenda Malhada. Ali foi informado que a volante sergipana de Zé
Luís tinha estado na região à procura dos cangaceiros. [4]
A passagem de
Lampião e seu bando e da volante de Zé Rufino em Nossa Senhora da Glória,
descrita pelas fontes e pela historiografia mostra que a área do município era
propícia a invasões pelo fato de estar localizada numa região estratégica do
sertão e por ser caminho natural para Poço Redondo. Neste lugar o cangaço
encontrou forte apoio da população, oferecendo vários indivíduos para integrar
o grupo. Por isso, é provável que outras passagens tenham ocorrido e cabe aos
pesquisadores descortinar esses fatos.
Memórias do
cangaço nas vozes dos protagonistas
As memórias do
cangaço em Nossa Senhora da Glória representam um conjunto de lendas,
tradições, mitos e medos, tudo isso aliado ao fato ocorrido em 20 de abril de
1929. A narrativa na voz dos protagonistas não retrata o fato ocorrido de
maneira singular, uma vez que cada indivíduo expressa a experiência particular
que vivenciou, tornando o discurso muito mais rico do que a simples referência
ao fato. Fica evidente a importância da oralidade para expressar as memórias,
contribuindo para a construção de uma história mais rica. [5]
Sobre a
passagem dos cangaceiros em Nossa Senhora da Glória, Maria Nila de Almeida relata:
Era um dia de
feira, lembro-me como hoje, eu estava olhando a matança de bode, que naquele
tempo era feita debaixo das árvores, de onde o animal era levado para o talho,
quando por volta de dez horas se deu a notícia: Lampião invadiu Glória. Tudo
aconteceu tão ligeiro, que o povo não teve nem tempo de se apavorar. [6]
A presença de
Lampião e seu bando de cangaceiros na região era sinônimo de alvoroço e
correria. O medo da população estava ligado à imagem que se tinha de Lampião:
facínora, criminoso, bandido, entre outras. Esta negatividade da imagem de
Lampião está associada a vários fatores, como por exemplo, ao papel da imprensa
escrita, uma vez que esta tem um poder de construir um discurso eficaz na
medida em que o receptor ou leitor constrói uma imagem a partir do que está
sendo dito pelo emissor ou jornal. [7]Porém, para
Maria Nila, a imagem negativa de Lampião pode ter sido desconstruída a partir
do momento em que a mesma afirma: “Deu muitas esmolas, agradou crianças e até
mesmo a mim – que na época já era uma franguinha de moça – dando-me dois
tostões”. [8]
A ansiedade
das pessoas quando ouviam dizer que Lampião estava próximo da região diminuiu
bastante depois da visita à cidade. Ao que parece, toda aquela imagem que se
tinha do cangaceiro foi desconstruída, principalmente pelo fato de o mesmo não
ter cometido nenhum delito grave. É o que demonstra Maria Nila ao dizer: “Sabe
de uma coisa, com a vinda do Capitão Virgulino, mais conhecido mesmo por
Lampião, o povo até que se acalmou mais. Deixou de fugir e dormir nos matos
quando os boatos corriam.” [9] Veremos
adiante que dormir no mato era uma prática comum, segundo relato dos
entrevistados. Também com base em outras memórias percebemos que a notícia de
que Lampião iria invadir a cidade de Nossa Senhora da Glória era algo difundido
constantemente, o que levava a população ao estado de medo.
Durante a sua
permanência na cidade, Lampião despertou a curiosidade de muitas pessoas que
queriam ver de perto o Rei do Cangaço. Parece que a oportunidade ideal foi
quando ele resolveu fazer uso dos serviços disponíveis na cidade, indo fazer a
barba com Zé Bisonho. Sabendo que poderia ser alvo de algum atentado, e também
numa tentativa de controlar a multidão que queria vê-lo de perto, Lampião
deixou dois cangaceiros servindo de sentinelas na porta da barbearia, como afirma
Manoel Messias, um dos que estava no local:
Lampião foi
fazer a barba com o barbeiro Zé Bisonho. Deixou dois cabras de sentinela na
porta. Nunca vi bichos tão feios, imundos e carregados de coisas. O povo todo
estava assombrado e ao mesmo tempo morrendo de curiosidade para conhecer,
principalmente, o Capitão Virgulino. Eu era um dos que estavam mais perto e
ouvi bem quando ele disse, já saindo da barbearia: - vão fazer a feira de vocês
pessoá. [10]
Mesmo não
tendo praticado nenhum crime hediondo, Lampião não deixou de lado seu tom
ameaçador, uma característica que possuía. Segundo Maria Nila de Almeida, ele “[...]
deixou com um velho chamado Marciano uma boa esmola e um recado desaforado: -
ói, se os macacos aparecerem por aqui diga a eles que se quiserem ir atrás de
nós, botem as esporas e montem na mãe”. Isso também se confirma no
depoimento de Manoel Messias no momento em que diz que quando Lampião foi embora
e soube depois que a volante havia chegado à cidade após a sua saída desconfiou
que o intendente João Francisco tivesse armado uma emboscada na cidade e
mandou-lhe um recado desaforado:“Diga ao Chico, que quando eu for lá em Glória
vou deixar a Glorinha filha dele pregadinha na porta.” [11]
A ameaça à
filha do Intendente João Francisco ocorreu pelo fato de Lampião ter solicitado
ao mesmo dez burros de transporte para que ele e seu bando pudessem fugir da
cidade. A solicitação dos animais de montaria foi atendida, com o Intendente
mandando alguém de sua confiança ir arrumar os animais. O problema é que no
bolso deste rapaz havia um bilhete para o caso de encontrar com alguma volante.
O conteúdo do bilhete era a informação que Lampião estava em Nossa Senhora da
Glória à espera dos animais.
Desconfiado,
Lampião foi embora sem esperar pelos animais, mas deixou um cangaceiro
escondido próximo a casa do Intendente, que confirmou em conversa com o
delegado Antonio Francisco de Lima, que no bolso do rapaz havia um bilhete
informando o caso. O cangaceiro foi ao encontro do capitão Lampião, que já
estava nas imediações de onde funcionou durante décadas o Colégio Nossa Senhora
da Glória e informou o acontecido. Decidido a não voltar com receio de que a
volante já estivesse próximo, Lampião deixou o recado acima citado, com o rapaz
que tinha ido conseguir os burros que eles encontraram no caminho. Não mataram
o rapaz, mas cotaram as patas de todos os burros que o moço havia conseguido. [12]
Quem também
teve uma experiência marcante na época que Lampião rondava o sertão sergipano
foi Gerino Tavares de Lima, nascido em 30 de novembro de 1905. Na época que
Lampião esteve em Nossa Senhora da Glória, Gerino Lima estava no auge da
juventude, com 24 anos de idade. Ainda lembra como foi a experiência de ver de
perto Lampião: “Eu tava sentado numa esquina, meu pai tinha uma loja e eu
tava sentado (...) o soldado entregou a arma a Lampião e ele ficou assim na
minha frente, e depois ele baixou na casa do prefeito.” [13]
A reação de
Gerino Lima quando viu Lampião frente a frente foi de intenso medo: “eu tive
medo porque falei com ele, só que falei com medo”. O medo sentido pela
testemunha não foi um caso isolado, pelo contrário, toda população do lugarejo
ficava apreensiva quando ouvia falar que Lampião rondava a região. O medo era o
de ser vítima de alguma atrocidade e até mesmo morrer. Para Jean Delumeau o medo
é algo natural, que compõe a experiência humana e que “inerente a nossa
natureza, é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo
indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente à morte”. [14]
Depois que
Lampião esteve em Nossa Senhora da Glória, em 1929, a vida de Gerino Lima não
foi mais a mesma. Por conhecer alguns coiteiros de Lampião na região, foi
convidado várias vezes para compor o quadro de protetores e defensores dos
foragidos da lei, dos desterrados da justiça como definiu Alcino Alves da
Costa. [15] Mas,
Gerino Lima recusou a proposta por várias vezes: “Essas pessoas pelejavam
pra eu ir onde tava Lampião, mas eu agradecia e dizia: não, deixa, deixa”. Mesmo
não aceitando o convite para compor o quadro de coiteiros, Gerino Lima não
deixou de contribuir de alguma forma com Lampião, mesmo não sendo do bando.
Afirma que Lampião mandava dinheiro pelos coiteiros para ele ir trocar em
Aracaju. [16]
Por causa dos
favores prestados a Lampião, Gerino Lima se tornou o seu homem de confiança em
Nossa Senhora da Glória. Não integrou o grupo de coiteiros, mas por ser um homem
de extrema honestidade e confiança, não só de Lampião, mas também de homens do
poder como o Governador Eronildes de Carvalho, sempre tinha informações de onde
estava Lampião e dos locais que seriam invadidos. [17]
Outra
gloriense que teve contato com Lampião foi Maria Gerovina Aragão. O contato
próximo com o cangaceiro se explica pelo fato dela ser afilhada de João
Francisco de Souza, o intendente da cidade. Antes de ficar frente a frente com
Lampião, Maria Gerovina relata que quando era criança, ouvia dizer que Lampião
avisava que ia entrar na cidade, mas acabava não cumprindo a promessa. Isso era
motivo para que ela, sua família e outras pessoas da cidade corressem para
outras localidades. “A gente saia da cidade para o interior, pro mato, com
medo e passava o dia todo lá. Dormia nos matos e levava esteira. Era muito
sacrifício na vida”. [18]
Segundo Maria
Gerovina, durante várias vezes circularam rumores de que Lampião iria entrar em
Nossa Senhora da Glória. Isso gerava um clima de alvoroço e correria. Mas,
assim como diz a historiografia, a entrevistada confirma que Lampião e seu
bando só estiveram na cidade uma vez, em abril de 1929:
Eles vieram
num sábado. Eu ainda assisti tudo. Eles vieram para casa do meu padrinho João
Francisco que era intendente, prefeito chamava-se intendente. Ainda fiquei com
Meire. Ela, Meire, me mandou preparar o almoço. Uma mesa enorme que eles
ficaram, eles ficaram e almoçaram e depois que almoçaram saíram né. Saíram e
ficaram na rua olhando isso e aquilo outro, mas não mataram nem nada, só
fizeram medo e acabou. [19]
Maria Gerovina
Aragão comenta o que aconteceu com Dona Belila, uma conhecida sua. Segundo ela,
Lampião entrou na casa dela a procura de uma moça grávida, que segundo ele
havia entrado em sua casa. Não houve um motivo evidente para Lampião declarar
caçada a jovem. Ele só queria encontrar a moça para saber por que ela tinha
corrido para se esconder. A busca só teve fim quando outro cangaceiro do bando
sugeriu: “Lampião, deixe isso pra lá, venha pra cá”. Para Maria
Gerovina a sua conhecida foi uma vítima de Lampião, uma vez que foi ameaçada de
morte, porque como ela era dona da casa onde a garota grávida entrou, tinha que
dar conta da jovem e entregá-la ao chefe dos cangaceiros. [20]
A passagem
pelos povoados da zona rural
Em Nossa
Senhora da Glória, a passagem de Lampião e dos cangaceiros não ficou restrita
apenas a sede do município. Alguns povoados também receberam a visita do
capitão do sertão e seus comparsas, como é o caso dos povoados Panelas e Lagoa
Grande. Em ambos os casos a passagem do cangaço deixou marcas profundas na
memória dos indivíduos, como é o caso de Ermínia Cecília Santos e Maria Eurides
Santos. Ambas ainda trazem na memória as lembranças das experiências vividas.
Para Ermínia
Cecília Santos, Lampião era uma “assombração” e todo mundo tinha medo dele. A
imagem de assombração construída por Ermínia Cecília está intimamente associada
aos atos de violência praticados por Lampião, fosse contra a volante ou contra
pessoas que traíam a sua confiança ou lhe negavam algo. Um fato peculiar é que
mesmo associando a imagem de Lampião a uma assombração, Ermínia Cecília diz: “hoje
tem tanta assombração né, que hoje a gente acha que eles não eram tanta coisa
assim.” [21]Ou
seja, nas lembranças da entrevistada, a violência hoje é tamanha que não se
compara aos atos praticados por Lampião e seus homens.
Sobre suas
experiências com o cangaço, Ermínia Cecília relata: “nós chegamos a dormir no
mato com medo dele. Em vez de correr pra dentro de casa, corremos para o mato
(risos) com medo dele sim”. A prática de dormir no mato era comum entre as
pessoas que temiam qualquer contato com Lampião. Essa era uma forma de se
prevenir de um possível ato de violência. O contato mais próximo que a
entrevistada teve com Lampião e os cangaceiros, foi quando estes passaram no
povoado Panelas e almoçaram em sua casa. Mesmo sendo criança na época, ela
ainda recorda bem o fato: “Ele, esteve dentro de casa com nós, almoçaram em
casa, fizeram matar criação. Mas quem quisesse que não fizesse isso não, que
era pra morrer.” Negar alguma coisa era algo que poderia custar à vida.
Questionamos Ermínia Cecília a respeito de sua opinião sobre o cangaço e ela afirmou
achar que Lampião era “um inimigo do povo, e que ficou muito satisfeita quando
soube de sua morte, uma vez que não só ela, mas todo o povo estava livre da
assombração”. [22]
Entre os
moradores da zona rural, entrevistamos Maria Eurides Santos, nascida no povoado
Lagoa Grande. Apesar dos dois contatos que teve com Lampião e os cangaceiros,
sendo um destes de forma indireta, Maria Eurides não tinha uma visão de um
Lampião tão violento e cruel assim como tinham outras pessoas. Quando
perguntamos o que ela achava de Lampião e os cangaceiros sua resposta foi:
Eu não achava
tanta coisa não porque se a gente soubesse tratar, eles não faziam mal. Agora
se a gente pisasse na bola era capaz de morrer mesmo, mas se a gente tinha
medo, tinha que ficar naquele jeitinho e ficar calado sem dizer nada. Mas agora
a gente hoje vê tanta miséria pior do que Lampião, essa folia do povo matar,
roubar, viver entrando nas casas, matar o povo e carregar as coisas do povo
isso é pior do que Lampião viu, é muito pior mesmo. [23]
Assim como no
caso de Ermínia Cecília, para Maria Eurides Santos a experiência com o cangaço
e a realidade atual da violência leva ela a formular uma opinião que aponta a
realidade de hoje em dia como sendo muito mais violenta do que na época do
movimento social que assolou o sertão.
Segundo a
entrevistada, os cangaceiros estiveram duas vezes em sua casa, diz: “Primeiro
ele passou e não tinha ninguém, aí eles esbagaçaram tudo, comeram tudo e foram
embora.” Já na segunda visita houve um contato direto dos cangaceiros com
ela e sua família, além de uma senhora vizinha sua, que só foi vista por que
pegava água em uma fonte que ficava próxima à casa da entrevistada. “Na segunda
vez nós já tava dentro de casa. Papai tinha casado sabe, aí nós tava dentro de
casa, de manhãzinha. Eles chegaram na porta, aí mandaram minha madrasta encher
uns bornais, aí ela tava enchendo na cozinha”. De acordo com Maria Eurides após
encherem os bornais, Lampião e seu bando iriam seguir caminho, com destino por
ela e sua família desconhecido. Mas, para não deixar rastro de sua passagem
pela casa, ordenou que a velha senhora que lhe tinha provido de água apagasse
as pegadas do chão com um ramo de folhas. Só depois disso eles foram embora. As
marcas no chão foram apagadas, mas as marcas na memória de Maria Eurides Santos
permanecem até hoje. [24]
Ao analisar as
informações transmitidas pelos protagonistas da passagem do cangaço em Nossa
Senhora da Glória, percebemos um consenso quanto às suas reações ao tomarem
conhecimento da morte de Lampião. Poderíamos apresentar aqui detalhes das
respostas proferidas, porém há uma palavra que resume de maneira adequada o
sentimento dos atores sociais: alívio. Alguns jornais noticiaram o fato para
satisfação da população como um todo. O jornal Correio de Aracaju noticiou: “O
extermínio de “Lampião” pela polícia alagoana assignala o desapparecimento do
maior e mais perverso dos bandoleiros nordestinos de todos os tempos”. [25]
Os relatos
sobre a passagem de Lampião em Nossa Senhora da Glória estão presentes não só na
memória dos indivíduos que viveram a época, mas também na memória daqueles que
ouviram e ainda ouvem as histórias sobre Lampião. Cícero Alves, conhecido por
Véio, artesão e conhecedor exímio da história gloriense, contribuiu com
preciosas informações acerca da passagem de lampião e seu bando pela cidade.
Segundo ele, com base nas histórias que ouvia desde criança, Lampião esteve em
Nossa Senhora da Glória no dia 20 de abril de 1929, um sábado, dia da feira
local, acompanhado por um grupo composto por dez cangaceiros: Lampião, Luiz
Pedro, Corisco, Zé Baiano, Ângelo Roque, Arvoredo, Amoroso, Ponto Fino, Moderno
e Volta Seca. [26]
Quanto a essa
informação, em discurso proferido na Câmara de Vereadores de Nossa Senhora da
Glória, José Carlos de Sousa confirma que: “o novo município teve sua sede
invadida pelo bando de Lampião, constituído de dez cangaceiros o próprio
Lampião, Luiz Pedro, Ângelo Roque, Corisco, Zé Baiano, Alvoredo, Moderno, Ponto
Fino, Amoroso e Volta Seca”. [27]Sobre
o grupo de cangaceiros que esteve em Glória naquele dia, há uma controvérsia
quanto aos nomes dos integrantes do bando. José Anderson Nascimento menciona
como invasores: Lampião, Quinta-Feira, Arvoredo, Luiz Pedro, Delicado, Volta
Seca, Nevoeiro e Labareda. [28]Também
é controvertido o número de cangaceiros que estiveram na cidade, uma vez que o
autor afirma que estiveram aqui oito e não dez cangaceiros como dizem outras
fontes. O mais provável é que tenha ocorrido um desencontro de informações,
ocasionada pelo fato de José Carlos de Sousa não mencionar as fontes
consultadas, se é que consultou alguma, sobre a ocorrência.
Fato curioso
sobre a passagem de Lampião por Nossa Senhora da Glória foi o caso do barbeiro
que ficou conhecido como o homem que tirou sangue de Lampião. Segundo Cícero
Alves: “o barbeiro ficou muito nervoso quando Lampião e outro cangaceiro
chegaram a sua barbearia. Quando começou a fazer seu trabalho, o senhor
Clemêncio cortou uma espinha do rosto de Lampião e disse: capitão, tá merejando
sangue aqui”. [29]A
ação do barbeiro foi involuntária, uma vez que o nervosismo era comum entre
aqueles que de alguma forma tiveram contato com os cangaceiros.
Algumas
considerações finais
Na tentativa
de reconstruir historicamente as memórias de alguns moradores mais antigos do
município de Nossa Senhora da Glória sobre a passagem de Lampião e o seu grupo
de cangaceiros pela região, com o auxílio de algumas fontes escritas,
comprovamos que esta ocorreu uma única vez na cidade e mais de uma vez em
alguns povoados do município. Mesmo tendo deixado marcas de crueldade em vários
lugares por onde passou, em Nossa Senhora da Glória Lampião agiu diferente, e
por conta da passagem tranqüila as maiores marcas deixadas na memória da
população local foram o medo e também o alívio, este comprovado com o fato das
pessoas pararem de fugir da cidade quando os boatos da sua presença na região
se espalhavam.
Não era
objetivo deste trabalho, construir mais uma história do cangaço, trabalho este
já realizado por vários estudiosos, mas sim relembrar e analisar a atuação do
cangaço em Nossa Senhora da Glória, para assim percebermos as particularidades
do caso, em relação a um contexto historicamente conhecido.
Referências
Bibliográficas
COSTA, Alcino
Alves da. Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angicos.
Aracaju, SE: Sociedade Editorial de Sergipe, 1996.
DELUMEAU,
Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
NASCIMENTO,
José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. Aracaju: Academia
Sergipana de Letras, 1996.
THOMPSON,
Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
SANTOS, Ana
Lúcia Rodrigues dos. O registro trágico de um fim: a imprensa sergipana e
a morte de Lampião (1938 -1948). São Cristóvão: UFS, 1998. (Monografia de
graduação).
SOUZA,
Anildomá Willans de. Nas pegadas de Lampião. Serra Talhada: Gráfica Folha
do Interior, 2004.
FONTES
Impressas:
Depoimento de
Maria Nila de Almeida. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL. Nossa senhora da
Glória. Fortaleza, CE, Agosto de 1982. p. 27.
Depoimento de
Manoel Messias. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL.Nossa senhora da Glória. Fortaleza
– CE, Agosto de 1982. p. 27.
Jornal Correio
de Aracaju. Aracaju, 04 de agosto de 1938.
Jornal Gazeta
de Sergipe. Aracaju, 22 de Abril de 1929.
SOUZA, José
Carlos de. Discurso proferido na sessão solene da Câmara Municipal de
Nossa Senhora da Glória, em 30 de setembro de 2005.
Depoimentos:
Depoimento de
Cícero Alves dos Santos. Nossa Senhora da Glória, 17/03/2007.
Depoimento de
Ermínia Cecília Santos. Nossa Senhora da Glória. 26/03/2008.
Depoimento de
Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
Depoimento de
Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
Depoimento de
Maria Eurides Santos. Nossa Senhora da Glória. 16/05/2008
[1]É o caso de: COSTA,
Alcino Alves da. Lampião além da versão: mentiras e mistérios de
Angicos. Aracaju, SE: Sociedade Editorial de Sergipe, 1996. DÓRIA, Carlos
Alberto. O cangaço. São Paulo: Brasiliense, 1981. SOUZA, Anildomá Willans
de. Lampião: nem bandido nem herói...a História. Serra Talhada: GDM
Gráfica, 2006. NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e
volantes. Aracaju: Academia Sergipana de Letras, 1996.
[2] NASCIMENTO,
José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. Aracaju: Academia
Sergipana de Letras, 1996. p. 193.
[3] Gazeta de
Sergipe – Aracaju: Edição de 22 de Abril de 1929.
[4] NASCIMENTO,
José Anderson. op. cit., p. 296.
[5] THOMPSON, Paul. A
voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 137.
[6] Depoimento de
Maria Nila de Almeida. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL. Nossa senhora da
Glória. Fortaleza, CE, Agosto de 1982. p. 27.
[7] SANTOS, Ana
Lúcia Rodrigues dos. “O registro trágico de um fim: a imprensa
sergipana e a morte de Lampião (1938 -1948). São Cristóvão: UFS, 1998.
(Monografia de graduação) p. 38-40.
[8] Depoimento de
Maria Nila de Almeida. op. cit.>, p. 27.
[9] Depoimento de
Maria Nila de Almeida. op. cit., p. 27.
[10] Depoimento de
Manoel Messias. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL. Nossa senhora da
Glória. Fortaleza – CE, Agosto de 1982. p. 27.
[11] Depoimento de
Maria Nila de Almeida. op. cit., . 27.
[12] Depoimento de
Cícero Alves. Nossa Senhora da Glória, 17/03/2007.
[13] Depoimento de
Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
[14] DELUMEAU,
Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. p 19.
[15] COSTA, Alcino
Alves da. Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angicos.
Aracaju, SE: Sociedade Editorial de Sergipe, 1996. p. 27.
[16] Depoimento de
Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
[17] Depoimento de
Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
[18] Depoimento de
Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
[19] Depoimento de
Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
[20] Depoimento de
Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
[21] Depoimento de
Ermínia Cecília Santos. Nossa Senhora da Glória. 26/03/2008.
[22] Depoimento de
Ermínia Cecília Santos. Nossa Senhora da Glória. 26/03/2008.
[23] Depoimento de
Maria Eurides Santos. Nossa Senhora da Glória. 16/05/2008.
[24] Depoimento de
Maria Eurides Santos. Nossa Senhora da Glória. 16/05/2008.
[25] Correio de
Aracaju. Aracaju, 04 de agosto de 1938.
[26] Depoimento de
Cícero Alves. Nossa Senhora da Glória. 17/03/2007.
[27] SOUZA, José
Carlos de. Discurso proferido na sessão solene da Câmara Municipal de Nossa
Senhora da Glória, em 30 de setembro de 2005. p. 23.
[28] NASCIMENTO,
José Anderson. op. cit., p. 194.
[29] Depoimento de
Cícero Alves. Nossa Senhora da Glória. 17/03/2007.
[*] Graduado em
História – Universidade Tiradentes – UNIT; Estudante de Especialização em
Ensino de História: novas abordagens – Faculdade São Luís de França – FSLF.
Tutor a distância do curso de História (modalidade a distância) da Universidade
Federal de Sergipe – UFS/UAB/CESAD. Email: caiocsg20@hotmail.com
http://www.historiahistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=178
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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