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terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

NOSSA SENHORA DA GLÓRIA E AS MEMÓRIAS DA PASSAGEM DE LAMPIÃO NA CIDADE

por Caio César Santos Gomes

Sobre o autor[*]
Introdução

Este trabalho focaliza as memórias dos atores sociais, ou seja, as pessoas que testemunharam a passagem de Lampião e seu grupo de cangaceiros em Nossa Senhora da Glória, cidade do sertão sergipano, em 1929, e aquelas que conviveram com estas testemunhas. Embasado na história oral e na análise do universo mental, este artigo analisa o imaginário social acerca da passagem dos cangaceiros no município. O foco do estudo é as diversas manifestações das lembranças dos indivíduos, em uma época que o sertão do nordeste brasileiro enfrentava além dos problemas naturais, a ação dos grupos de cangaceiros, tidos como facínoras e bandidos sanguinários.

Os estudos sobre o cangaço estão presentes nas diversas áreas da pesquisa histórica, por ser um assunto que continua oferecendo vários questionamentos para a pesquisa acadêmica. A historiografia registra muitos estudos sobre o cangaço, que em geral, se debruçam sobre a história do movimento e sobre o resultado material das ações dos cangaceiros pelos sertões do Nordeste brasileiro.[1] Porém, ainda cabem algumas considerações, principalmente no que se refere à relação do cangaço com as memórias dos indivíduos que vivenciaram a época.

Desta forma, este trabalho contribui para o enriquecimento das informações referentes ao cangaço, uma vez que trabalha com a análise da memória social, individual e coletiva, sobre o movimento. Por se tratar de um campo privilegiado da historiografia, devido às diversas possibilidades de abordagens, uma análise sobre as memórias do cangaço em Nossa Senhora da Glória, apresenta-se como um viés pouco explorado da história dos municípios sergipanos. O mérito deste trabalho é sugerir questões sobre o cangaço para serem investigadas através da história oral, explorar as memórias e colaborar para a escrita da história do município.

O recorte temático é a passagem de Lampião e dos cangaceiros em Nossa Senhora da Glória, em abril de 1929. Foram coletadas algumas notícias dos jornais sergipanos da época e os depoimentos de moradores do município, priorizando os indivíduos que viveram a época e, em alguns casos, pessoas que ouviram falar sobre a passagem do cangaço pela localidade.

Lampião na cidade de Nossa Senhora da Glória – SE

A visita de Lampião e seu bando a cidade de Nossa Senhora da Glória ocorreu no dia 20 de abril de 1929, um sábado, dia da feira local. Apesar da fama de facínora, em Glória, Lampião não praticou nenhum crime, contrariando o pensamento das pessoas que temiam um derramamento de sangue. [2] O então jornal Gazeta de Sergipe noticiou o fato em 22 de abril de 1929. A notícia trazida à tona pelo periódico afirmava que depois de entrar em Sergipe pela área do atual município de Canindé de São Francisco, Lampião e seu bando passaram em Poço Redondo, logo depois seguiram em direção a Nossa Senhora da Glória “onde se demorou alguns minutos, desaparecendo com direção ignorada, em direção a caatinga.” [3]

Além da passagem dos cangaceiros, Nossa Senhora da Glória registra nas páginas da sua história a marcha da volante (termo pelo qual era conhecida a força policial) baiana de Zé Rufino em direção à Poço Redondo para buscar informações sobre o paradeiro de Lampião. A caçada ao cangaceiro fez com que Zé Rufino e sua volante se tornassem alvos de coiteiros (expressão que designava os protetores de Lampião) e espiões. Por isso, em sua caminhada rumo a Poço Redondo sabendo do risco que corria, mudou seu rumo e seguiu para Nossa Senhora da Glória, acampando na Fazenda Malhada. Ali foi informado que a volante sergipana de Zé Luís tinha estado na região à procura dos cangaceiros. [4]

A passagem de Lampião e seu bando e da volante de Zé Rufino em Nossa Senhora da Glória, descrita pelas fontes e pela historiografia mostra que a área do município era propícia a invasões pelo fato de estar localizada numa região estratégica do sertão e por ser caminho natural para Poço Redondo. Neste lugar o cangaço encontrou forte apoio da população, oferecendo vários indivíduos para integrar o grupo. Por isso, é provável que outras passagens tenham ocorrido e cabe aos pesquisadores descortinar esses fatos.

Memórias do cangaço nas vozes dos protagonistas

As memórias do cangaço em Nossa Senhora da Glória representam um conjunto de lendas, tradições, mitos e medos, tudo isso aliado ao fato ocorrido em 20 de abril de 1929. A narrativa na voz dos protagonistas não retrata o fato ocorrido de maneira singular, uma vez que cada indivíduo expressa a experiência particular que vivenciou, tornando o discurso muito mais rico do que a simples referência ao fato. Fica evidente a importância da oralidade para expressar as memórias, contribuindo para a construção de uma história mais rica. [5]

Sobre a passagem dos cangaceiros em Nossa Senhora da Glória, Maria Nila de Almeida relata:

Era um dia de feira, lembro-me como hoje, eu estava olhando a matança de bode, que naquele tempo era feita debaixo das árvores, de onde o animal era levado para o talho, quando por volta de dez horas se deu a notícia: Lampião invadiu Glória. Tudo aconteceu tão ligeiro, que o povo não teve nem tempo de se apavorar. [6]

A presença de Lampião e seu bando de cangaceiros na região era sinônimo de alvoroço e correria. O medo da população estava ligado à imagem que se tinha de Lampião: facínora, criminoso, bandido, entre outras. Esta negatividade da imagem de Lampião está associada a vários fatores, como por exemplo, ao papel da imprensa escrita, uma vez que esta tem um poder de construir um discurso eficaz na medida em que o receptor ou leitor constrói uma imagem a partir do que está sendo dito pelo emissor ou jornal. [7]Porém, para Maria Nila, a imagem negativa de Lampião pode ter sido desconstruída a partir do momento em que a mesma afirma: “Deu muitas esmolas, agradou crianças e até mesmo a mim – que na época já era uma franguinha de moça – dando-me dois tostões”. [8]

A ansiedade das pessoas quando ouviam dizer que Lampião estava próximo da região diminuiu bastante depois da visita à cidade. Ao que parece, toda aquela imagem que se tinha do cangaceiro foi desconstruída, principalmente pelo fato de o mesmo não ter cometido nenhum delito grave. É o que demonstra Maria Nila ao dizer: “Sabe de uma coisa, com a vinda do Capitão Virgulino, mais conhecido mesmo por Lampião, o povo até que se acalmou mais. Deixou de fugir e dormir nos matos quando os boatos corriam.” [9] Veremos adiante que dormir no mato era uma prática comum, segundo relato dos entrevistados. Também com base em outras memórias percebemos que a notícia de que Lampião iria invadir a cidade de Nossa Senhora da Glória era algo difundido constantemente, o que levava a população ao estado de medo.

Durante a sua permanência na cidade, Lampião despertou a curiosidade de muitas pessoas que queriam ver de perto o Rei do Cangaço. Parece que a oportunidade ideal foi quando ele resolveu fazer uso dos serviços disponíveis na cidade, indo fazer a barba com Zé Bisonho. Sabendo que poderia ser alvo de algum atentado, e também numa tentativa de controlar a multidão que queria vê-lo de perto, Lampião deixou dois cangaceiros servindo de sentinelas na porta da barbearia, como afirma Manoel Messias, um dos que estava no local:

Lampião foi fazer a barba com o barbeiro Zé Bisonho. Deixou dois cabras de sentinela na porta. Nunca vi bichos tão feios, imundos e carregados de coisas. O povo todo estava assombrado e ao mesmo tempo morrendo de curiosidade para conhecer, principalmente, o Capitão Virgulino. Eu era um dos que estavam mais perto e ouvi bem quando ele disse, já saindo da barbearia: - vão fazer a feira de vocês pessoá. [10]

Mesmo não tendo praticado nenhum crime hediondo, Lampião não deixou de lado seu tom ameaçador, uma característica que possuía. Segundo Maria Nila de Almeida, ele “[...] deixou com um velho chamado Marciano uma boa esmola e um recado desaforado: - ói, se os macacos aparecerem por aqui diga a eles que se quiserem ir atrás de nós, botem as esporas e montem na mãe”. Isso também se confirma no depoimento de Manoel Messias no momento em que diz que quando Lampião foi embora e soube depois que a volante havia chegado à cidade após a sua saída desconfiou que o intendente João Francisco tivesse armado uma emboscada na cidade e mandou-lhe um recado desaforado:“Diga ao Chico, que quando eu for lá em Glória vou deixar a Glorinha filha dele pregadinha na porta.” [11]

A ameaça à filha do Intendente João Francisco ocorreu pelo fato de Lampião ter solicitado ao mesmo dez burros de transporte para que ele e seu bando pudessem fugir da cidade. A solicitação dos animais de montaria foi atendida, com o Intendente mandando alguém de sua confiança ir arrumar os animais. O problema é que no bolso deste rapaz havia um bilhete para o caso de encontrar com alguma volante. O conteúdo do bilhete era a informação que Lampião estava em Nossa Senhora da Glória à espera dos animais.

Desconfiado, Lampião foi embora sem esperar pelos animais, mas deixou um cangaceiro escondido próximo a casa do Intendente, que confirmou em conversa com o delegado Antonio Francisco de Lima, que no bolso do rapaz havia um bilhete informando o caso. O cangaceiro foi ao encontro do capitão Lampião, que já estava nas imediações de onde funcionou durante décadas o Colégio Nossa Senhora da Glória e informou o acontecido. Decidido a não voltar com receio de que a volante já estivesse próximo, Lampião deixou o recado acima citado, com o rapaz que tinha ido conseguir os burros que eles encontraram no caminho. Não mataram o rapaz, mas cotaram as patas de todos os burros que o moço havia conseguido. [12]

Quem também teve uma experiência marcante na época que Lampião rondava o sertão sergipano foi Gerino Tavares de Lima, nascido em 30 de novembro de 1905. Na época que Lampião esteve em Nossa Senhora da Glória, Gerino Lima estava no auge da juventude, com 24 anos de idade. Ainda lembra como foi a experiência de ver de perto Lampião: “Eu tava sentado numa esquina, meu pai tinha uma loja e eu tava sentado (...) o soldado entregou a arma a Lampião e ele ficou assim na minha frente, e depois ele baixou na casa do prefeito.” [13]

A reação de Gerino Lima quando viu Lampião frente a frente foi de intenso medo: “eu tive medo porque falei com ele, só que falei com medo”. O medo sentido pela testemunha não foi um caso isolado, pelo contrário, toda população do lugarejo ficava apreensiva quando ouvia falar que Lampião rondava a região. O medo era o de ser vítima de alguma atrocidade e até mesmo morrer. Para Jean Delumeau o medo é algo natural, que compõe a experiência humana e que “inerente a nossa natureza, é uma defesa essencial, uma garantia contra os perigos, um reflexo indispensável que permite ao organismo escapar provisoriamente à morte”. [14]

Depois que Lampião esteve em Nossa Senhora da Glória, em 1929, a vida de Gerino Lima não foi mais a mesma. Por conhecer alguns coiteiros de Lampião na região, foi convidado várias vezes para compor o quadro de protetores e defensores dos foragidos da lei, dos desterrados da justiça como definiu Alcino Alves da Costa. [15] Mas, Gerino Lima recusou a proposta por várias vezes: “Essas pessoas pelejavam pra eu ir onde tava Lampião, mas eu agradecia e dizia: não, deixa, deixa”. Mesmo não aceitando o convite para compor o quadro de coiteiros, Gerino Lima não deixou de contribuir de alguma forma com Lampião, mesmo não sendo do bando. Afirma que Lampião mandava dinheiro pelos coiteiros para ele ir trocar em Aracaju. [16]

Por causa dos favores prestados a Lampião, Gerino Lima se tornou o seu homem de confiança em Nossa Senhora da Glória. Não integrou o grupo de coiteiros, mas por ser um homem de extrema honestidade e confiança, não só de Lampião, mas também de homens do poder como o Governador Eronildes de Carvalho, sempre tinha informações de onde estava Lampião e dos locais que seriam invadidos. [17]

Outra gloriense que teve contato com Lampião foi Maria Gerovina Aragão. O contato próximo com o cangaceiro se explica pelo fato dela ser afilhada de João Francisco de Souza, o intendente da cidade. Antes de ficar frente a frente com Lampião, Maria Gerovina relata que quando era criança, ouvia dizer que Lampião avisava que ia entrar na cidade, mas acabava não cumprindo a promessa. Isso era motivo para que ela, sua família e outras pessoas da cidade corressem para outras localidades. “A gente saia da cidade para o interior, pro mato, com medo e passava o dia todo lá. Dormia nos matos e levava esteira. Era muito sacrifício na vida”. [18]

Segundo Maria Gerovina, durante várias vezes circularam rumores de que Lampião iria entrar em Nossa Senhora da Glória. Isso gerava um clima de alvoroço e correria. Mas, assim como diz a historiografia, a entrevistada confirma que Lampião e seu bando só estiveram na cidade uma vez, em abril de 1929:

Eles vieram num sábado. Eu ainda assisti tudo. Eles vieram para casa do meu padrinho João Francisco que era intendente, prefeito chamava-se intendente. Ainda fiquei com Meire. Ela, Meire, me mandou preparar o almoço. Uma mesa enorme que eles ficaram, eles ficaram e almoçaram e depois que almoçaram saíram né. Saíram e ficaram na rua olhando isso e aquilo outro, mas não mataram nem nada, só fizeram medo e acabou. [19]

Maria Gerovina Aragão comenta o que aconteceu com Dona Belila, uma conhecida sua. Segundo ela, Lampião entrou na casa dela a procura de uma moça grávida, que segundo ele havia entrado em sua casa. Não houve um motivo evidente para Lampião declarar caçada a jovem. Ele só queria encontrar a moça para saber por que ela tinha corrido para se esconder. A busca só teve fim quando outro cangaceiro do bando sugeriu: “Lampião, deixe isso pra lá, venha pra cá”. Para Maria Gerovina a sua conhecida foi uma vítima de Lampião, uma vez que foi ameaçada de morte, porque como ela era dona da casa onde a garota grávida entrou, tinha que dar conta da jovem e entregá-la ao chefe dos cangaceiros. [20]

A passagem pelos povoados da zona rural

Em Nossa Senhora da Glória, a passagem de Lampião e dos cangaceiros não ficou restrita apenas a sede do município. Alguns povoados também receberam a visita do capitão do sertão e seus comparsas, como é o caso dos povoados Panelas e Lagoa Grande. Em ambos os casos a passagem do cangaço deixou marcas profundas na memória dos indivíduos, como é o caso de Ermínia Cecília Santos e Maria Eurides Santos. Ambas ainda trazem na memória as lembranças das experiências vividas.

Para Ermínia Cecília Santos, Lampião era uma “assombração” e todo mundo tinha medo dele. A imagem de assombração construída por Ermínia Cecília está intimamente associada aos atos de violência praticados por Lampião, fosse contra a volante ou contra pessoas que traíam a sua confiança ou lhe negavam algo. Um fato peculiar é que mesmo associando a imagem de Lampião a uma assombração, Ermínia Cecília diz: “hoje tem tanta assombração né, que hoje a gente acha que eles não eram tanta coisa assim.” [21]Ou seja, nas lembranças da entrevistada, a violência hoje é tamanha que não se compara aos atos praticados por Lampião e seus homens.

Sobre suas experiências com o cangaço, Ermínia Cecília relata: “nós chegamos a dormir no mato com medo dele. Em vez de correr pra dentro de casa, corremos para o mato (risos) com medo dele sim”. A prática de dormir no mato era comum entre as pessoas que temiam qualquer contato com Lampião. Essa era uma forma de se prevenir de um possível ato de violência. O contato mais próximo que a entrevistada teve com Lampião e os cangaceiros, foi quando estes passaram no povoado Panelas e almoçaram em sua casa. Mesmo sendo criança na época, ela ainda recorda bem o fato: “Ele, esteve dentro de casa com nós, almoçaram em casa, fizeram matar criação. Mas quem quisesse que não fizesse isso não, que era pra morrer.” Negar alguma coisa era algo que poderia custar à vida. Questionamos Ermínia Cecília a respeito de sua opinião sobre o cangaço e ela afirmou achar que Lampião era “um inimigo do povo, e que ficou muito satisfeita quando soube de sua morte, uma vez que não só ela, mas todo o povo estava livre da assombração”. [22]

Entre os moradores da zona rural, entrevistamos Maria Eurides Santos, nascida no povoado Lagoa Grande. Apesar dos dois contatos que teve com Lampião e os cangaceiros, sendo um destes de forma indireta, Maria Eurides não tinha uma visão de um Lampião tão violento e cruel assim como tinham outras pessoas. Quando perguntamos o que ela achava de Lampião e os cangaceiros sua resposta foi:

Eu não achava tanta coisa não porque se a gente soubesse tratar, eles não faziam mal. Agora se a gente pisasse na bola era capaz de morrer mesmo, mas se a gente tinha medo, tinha que ficar naquele jeitinho e ficar calado sem dizer nada. Mas agora a gente hoje vê tanta miséria pior do que Lampião, essa folia do povo matar, roubar, viver entrando nas casas, matar o povo e carregar as coisas do povo isso é pior do que Lampião viu, é muito pior mesmo. [23]

Assim como no caso de Ermínia Cecília, para Maria Eurides Santos a experiência com o cangaço e a realidade atual da violência leva ela a formular uma opinião que aponta a realidade de hoje em dia como sendo muito mais violenta do que na época do movimento social que assolou o sertão.

Segundo a entrevistada, os cangaceiros estiveram duas vezes em sua casa, diz: “Primeiro ele passou e não tinha ninguém, aí eles esbagaçaram tudo, comeram tudo e foram embora.” Já na segunda visita houve um contato direto dos cangaceiros com ela e sua família, além de uma senhora vizinha sua, que só foi vista por que pegava água em uma fonte que ficava próxima à casa da entrevistada. “Na segunda vez nós já tava dentro de casa. Papai tinha casado sabe, aí nós tava dentro de casa, de manhãzinha. Eles chegaram na porta, aí mandaram minha madrasta encher uns bornais, aí ela tava enchendo na cozinha”. De acordo com Maria Eurides após encherem os bornais, Lampião e seu bando iriam seguir caminho, com destino por ela e sua família desconhecido. Mas, para não deixar rastro de sua passagem pela casa, ordenou que a velha senhora que lhe tinha provido de água apagasse as pegadas do chão com um ramo de folhas. Só depois disso eles foram embora. As marcas no chão foram apagadas, mas as marcas na memória de Maria Eurides Santos permanecem até hoje. [24]

Ao analisar as informações transmitidas pelos protagonistas da passagem do cangaço em Nossa Senhora da Glória, percebemos um consenso quanto às suas reações ao tomarem conhecimento da morte de Lampião. Poderíamos apresentar aqui detalhes das respostas proferidas, porém há uma palavra que resume de maneira adequada o sentimento dos atores sociais: alívio. Alguns jornais noticiaram o fato para satisfação da população como um todo. O jornal Correio de Aracaju noticiou: “O extermínio de “Lampião” pela polícia alagoana assignala o desapparecimento do maior e mais perverso dos bandoleiros nordestinos de todos os tempos”. [25]

Os relatos sobre a passagem de Lampião em Nossa Senhora da Glória estão presentes não só na memória dos indivíduos que viveram a época, mas também na memória daqueles que ouviram e ainda ouvem as histórias sobre Lampião. Cícero Alves, conhecido por Véio, artesão e conhecedor exímio da história gloriense, contribuiu com preciosas informações acerca da passagem de lampião e seu bando pela cidade. Segundo ele, com base nas histórias que ouvia desde criança, Lampião esteve em Nossa Senhora da Glória no dia 20 de abril de 1929, um sábado, dia da feira local, acompanhado por um grupo composto por dez cangaceiros: Lampião, Luiz Pedro, Corisco, Zé Baiano, Ângelo Roque, Arvoredo, Amoroso, Ponto Fino, Moderno e Volta Seca. [26]

Quanto a essa informação, em discurso proferido na Câmara de Vereadores de Nossa Senhora da Glória, José Carlos de Sousa confirma que: “o novo município teve sua sede invadida pelo bando de Lampião, constituído de dez cangaceiros o próprio Lampião, Luiz Pedro, Ângelo Roque, Corisco, Zé Baiano, Alvoredo, Moderno, Ponto Fino, Amoroso e Volta Seca”. [27]Sobre o grupo de cangaceiros que esteve em Glória naquele dia, há uma controvérsia quanto aos nomes dos integrantes do bando. José Anderson Nascimento menciona como invasores: Lampião, Quinta-Feira, Arvoredo, Luiz Pedro, Delicado, Volta Seca, Nevoeiro e Labareda. [28]Também é controvertido o número de cangaceiros que estiveram na cidade, uma vez que o autor afirma que estiveram aqui oito e não dez cangaceiros como dizem outras fontes. O mais provável é que tenha ocorrido um desencontro de informações, ocasionada pelo fato de José Carlos de Sousa não mencionar as fontes consultadas, se é que consultou alguma, sobre a ocorrência.

Fato curioso sobre a passagem de Lampião por Nossa Senhora da Glória foi o caso do barbeiro que ficou conhecido como o homem que tirou sangue de Lampião. Segundo Cícero Alves: “o barbeiro ficou muito nervoso quando Lampião e outro cangaceiro chegaram a sua barbearia. Quando começou a fazer seu trabalho, o senhor Clemêncio cortou uma espinha do rosto de Lampião e disse: capitão, tá merejando sangue aqui”. [29]A ação do barbeiro foi involuntária, uma vez que o nervosismo era comum entre aqueles que de alguma forma tiveram contato com os cangaceiros.

Algumas considerações finais

Na tentativa de reconstruir historicamente as memórias de alguns moradores mais antigos do município de Nossa Senhora da Glória sobre a passagem de Lampião e o seu grupo de cangaceiros pela região, com o auxílio de algumas fontes escritas, comprovamos que esta ocorreu uma única vez na cidade e mais de uma vez em alguns povoados do município. Mesmo tendo deixado marcas de crueldade em vários lugares por onde passou, em Nossa Senhora da Glória Lampião agiu diferente, e por conta da passagem tranqüila as maiores marcas deixadas na memória da população local foram o medo e também o alívio, este comprovado com o fato das pessoas pararem de fugir da cidade quando os boatos da sua presença na região se espalhavam.

Não era objetivo deste trabalho, construir mais uma história do cangaço, trabalho este já realizado por vários estudiosos, mas sim relembrar e analisar a atuação do cangaço em Nossa Senhora da Glória, para assim percebermos as particularidades do caso, em relação a um contexto historicamente conhecido.

Referências Bibliográficas

COSTA, Alcino Alves da. Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angicos. Aracaju, SE: Sociedade Editorial de Sergipe, 1996.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. Aracaju: Academia Sergipana de Letras, 1996.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
SANTOS, Ana Lúcia Rodrigues dos. O registro trágico de um fim: a imprensa sergipana e a morte de Lampião (1938 -1948). São Cristóvão: UFS, 1998. (Monografia de graduação).
SOUZA, Anildomá Willans de. Nas pegadas de Lampião. Serra Talhada: Gráfica Folha do Interior, 2004.
FONTES
Impressas:
Depoimento de Maria Nila de Almeida. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL. Nossa senhora da Glória. Fortaleza, CE, Agosto de 1982. p. 27.
Depoimento de Manoel Messias. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL.Nossa senhora da Glória. Fortaleza – CE, Agosto de 1982. p. 27.
Jornal Correio de Aracaju. Aracaju, 04 de agosto de 1938.
Jornal Gazeta de Sergipe. Aracaju, 22 de Abril de 1929.
SOUZA, José Carlos de. Discurso proferido na sessão solene da Câmara Municipal de Nossa Senhora da Glória, em 30 de setembro de 2005.
Depoimentos:
Depoimento de Cícero Alves dos Santos. Nossa Senhora da Glória, 17/03/2007.
Depoimento de Ermínia Cecília Santos. Nossa Senhora da Glória. 26/03/2008.
Depoimento de Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
Depoimento de Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
Depoimento de Maria Eurides Santos. Nossa Senhora da Glória. 16/05/2008

[1]É o caso de: COSTA, Alcino Alves da. Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angicos. Aracaju, SE: Sociedade Editorial de Sergipe, 1996. DÓRIA, Carlos Alberto. O cangaço. São Paulo: Brasiliense, 1981. SOUZA, Anildomá Willans de. Lampião: nem bandido nem herói...a História. Serra Talhada: GDM Gráfica, 2006. NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. Aracaju: Academia Sergipana de Letras, 1996.
[2] NASCIMENTO, José Anderson. Cangaceiros, coiteiros e volantes. Aracaju: Academia Sergipana de Letras, 1996. p. 193.
[3] Gazeta de Sergipe – Aracaju: Edição de 22 de Abril de 1929.
[4] NASCIMENTO, José Anderson. op. cit., p. 296.
[5] THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 137.
[6] Depoimento de Maria Nila de Almeida. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL. Nossa senhora da Glória. Fortaleza, CE, Agosto de 1982. p. 27.
[7] SANTOS, Ana Lúcia Rodrigues dos. “O registro trágico de um fim: a imprensa sergipana e a morte de Lampião (1938 -1948). São Cristóvão: UFS, 1998. (Monografia de graduação) p. 38-40.
[8] Depoimento de Maria Nila de Almeida. op. cit.>, p. 27.
[9] Depoimento de Maria Nila de Almeida. op. cit., p. 27.
[10] Depoimento de Manoel Messias. Apud: BANCO DO NORDESTE DO BRASIL. Nossa senhora da Glória. Fortaleza – CE, Agosto de 1982. p. 27.
[11] Depoimento de Maria Nila de Almeida. op. cit., . 27.
[12] Depoimento de Cícero Alves. Nossa Senhora da Glória, 17/03/2007.
[13] Depoimento de Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
[14] DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p 19.
[15] COSTA, Alcino Alves da. Lampião além da versão: mentiras e mistérios de Angicos. Aracaju, SE: Sociedade Editorial de Sergipe, 1996. p. 27.
[16] Depoimento de Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
[17] Depoimento de Gerino Tavares de Lima. Nossa Senhora da Glória. 23/03/2008.
[18] Depoimento de Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
[19] Depoimento de Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
[20] Depoimento de Maria Gerovina Aragão. Nossa Senhora da Glória. 15/04/2008.
[21] Depoimento de Ermínia Cecília Santos. Nossa Senhora da Glória. 26/03/2008.
[22] Depoimento de Ermínia Cecília Santos. Nossa Senhora da Glória. 26/03/2008.
[23] Depoimento de Maria Eurides Santos. Nossa Senhora da Glória. 16/05/2008.
[24] Depoimento de Maria Eurides Santos. Nossa Senhora da Glória. 16/05/2008.
[25] Correio de Aracaju. Aracaju, 04 de agosto de 1938.
[26] Depoimento de Cícero Alves. Nossa Senhora da Glória. 17/03/2007.
[27] SOUZA, José Carlos de. Discurso proferido na sessão solene da Câmara Municipal de Nossa Senhora da Glória, em 30 de setembro de 2005. p. 23.
[28] NASCIMENTO, José Anderson. op. cit., p. 194.
[29] Depoimento de Cícero Alves. Nossa Senhora da Glória. 17/03/2007.
[*] Graduado em História – Universidade Tiradentes – UNIT; Estudante de Especialização em Ensino de História: novas abordagens – Faculdade São Luís de França – FSLF. Tutor a distância do curso de História (modalidade a distância) da Universidade Federal de Sergipe – UFS/UAB/CESAD. Email: caiocsg20@hotmail.com

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