por José Romero
Araújo Cardoso (1) e Marcela
Ferreira Lopes (2)
Dia cinco de outubro de 1897, sertão baiano, margens do vaza-barris circundado
pela serra do Cocorobó. Explosões, detonações e todas as espécies torpes de
destruição assinalavam o fim iminente da extraordinária sociedade alternativa
marcada pelo emblema do messianismo alicerçada pelo beato Antônio Conselheiro e
por milhares de sertanejos pobres e humildes que fugiam das secas, da
prepotência do latifúndio e da arrogante inércia do Estado em negar melhor
qualidade de vida a um povo desvalido, sofredor e historicamente desassistido.
Todo poder repressivo dos Estados da federação foi mobilizado a fim de destruir
Canudos, ou arraial do Belo Monte, como fora batizado pelo próprio Conselheiro,
pois Canudos era, na verdade, anterior à chegada do Conselheiro e sua gente, um
antro de perdição na forma mais dilacerante possível à dignidade humana.
A localidade ficou conhecida por Canudos em razão que a população, composta de
bandidos da pior espécie, gente perdida na expressão literal do termo, passava
a maior parte do tempo pitando extensos canudos que vicejavam às margens secas
do rio Vaza-Barris com uma espécie de cânhamo muito comum na região. Em
seguida, planejavam atos criminosos que fariam Cesare Lombroso e seu discípulo
brasileiro Estácio de Lima clamarem pela validação de suas teorias da
criminalidade nata.
Conselheiro com sua postura moral e prédicas conseguiu reverter àquela situação
periclitante, transformando radicalmente o lugar e as pessoas. Incisivo em suas
inflamadas palavras sobre o pecado, sobressaíram-se gloriosamente a fé, a
verdade e novos pontos de vista sobre a existência humana na terra.
Até um potente canhão Withworth 32 de fabricação inglesa foi trazido para o
cenário das batalhas, visando imprimir maiores danos possíveis, ficando
conhecido entre os seguidores do conselheiro como a terrível matadeira,
responsável pela destruição em massa, tanta humana como material, na mística
cidadela de barro e palha erguida em adustos carrascais das caatingas
nordestinas no Estado da Bahia.
Pajeú, célebre chefe da guarda católica conselheirista, tentou na companhia de
dez audaciosos e corajosos companheiros de lutas guerrilheiras, destruir o
abominável artefato da morte, pagando caro, com suas vidas, à exceção de apenas
um que escapou, pois a absurda e poderosa arma de guerra era bem guarnecida,
ordem direta tanto de Machado Bittencourt, Ministro da Guerra de Prudente de
Morais, como do comandante-em-chefe das forças em operação na guerra de Canudos,
General Arthur Oscar de Andrade Guimarães, facínora gaúcho de primeira linha,
cuja ênfase às degolas tornou a guerra de Canudos mais brutal e desumana, sendo
ele um incondicional seguidor da política assassina de Floriano Peixoto.
A morte de Pajeú foi um rude golpe na forma como a guerra de guerrilhas em
Canudos era implementada, pois, estrategista nato, o valente pernambucano,
ex-escravo que encontrou a verdadeira liberdade no sertão baiano, organizava
magistralmente as emboscadas que tanto atormentavam a soldadesca que lutava sem
saber a razão, pois a maioria pertencia a mesma classe, a mesma condição
social, aos mesmos grupos étnicos que encontraram em Canudos do Conselheiro
razões materiais e espirituais para desfrutar vida digna e honrada, livres da
extorsão do Estado, das imposições europeizantes clássicas da religião
predominante, dos arbítrios dos senhores de baraço, entre outras incontáveis
mazelas que atormentava os sertanejos, muitas ainda presentes na atualidade.
O processo de construção coletiva levado avante no arraial do Belo Monte provou
que o homem tem condições de conviver com as secas, pois localizado em área
extremamente castigada pelas condições mesológicas do semiárido, em leito de
rio caracterizado pela intermitência, como a maioria no sertão nordestino,
tornou-se extremamente produtiva graças ao trabalho incansável dos milhares de
seres humanos que atenderam ao chamado do inconteste líder religioso que sonhou
e conseguiu estruturar com seus seguidores uma das mais fascinante experiência
libertária da história brasileira.
Famintos e estropiados, os soldados eram facilmente atraídos para tocaias
armadas com irresistíveis banquetes que os seguidores do Conselheiro preparavam
com o que era retirado da terra trabalhada por eles, bem como ainda com pratos
deliciosos contendo animais domésticos criados e abatidos na comunidade.
Desde o dia 21 de setembro de 1897 que a brava gente do Belo Monte não contava
com a presença física de Antônio Conselheiro, mas a determinação em defender
Canudos não diminuía, apesar da desvantagem, tanto numérica como bélica.
Exemplo disso efetivou-se quando da chegada do
contingente Paraense ao cenário das batalhas, pois inexperiente no que tange
aos acontecimentos o comandante ordenou que suas tropas avançassem
inopinadamente sobre a cidadela em escombros. Verdadeira saraivada de balas
saída de tudo que é local que pensavam não existir mais vida causou celeuma
inenarrável aos militares do norte do Brasil. Estavam “batizados” no que diz
respeito à dureza dos combates em Canudos.
Túneis foram escavados, interligando cada casa, de onde os guerrilheiros faziam
a defesa do território. Os militares há mais tempo na guerra sabiam da
determinação daquela gente fortemente armada com o arsenal tomado da expedição
Moreira César.
A resposta dos militares veio na intensificação desumana dos canhonaços e
explosões de dinamites em direção aos defensores entrincheirados no verdadeiro
labirinto que escavaram no subsolo do heroico arraial do Belo Monte.
A crueldade foi tomando proporções inimagináveis. Beatinho e dezenas de
seguidores resolveram se entregar, obtendo garantias do comando militar que
suas vidas seriam poupadas. Ledo engano. Infantil confiança em notórios
criminosos fardados, gente sem pudor, sem ética e sem moral. Portanto, sem o
menor amor ao próximo. Todos foram degolados.
Os Canudenses resistiram galhardamente até ao entardecer do dia cinco de
outubro de 1897, quando caíram os últimos defensores, cinco apenas, um velho,
uma criança e três homens feitos que enfrentaram com coragem ímpar a fúria
avassaladora de mais de cinco mil soldados que à frente desses heróis anônimos
rugiam raivosamente, semeando a morte e completando a destruição que tanto
nortearam as ações nefandas que caracterizaram um dos mais abomináveis crimes
cometidos pelo Estado e pela elite dirigente contra o valente povo brasileiro,
infelizmente ainda visto, Araguaia comprova, como inimigo número um a ser
combatido pelas Forças Armadas e demais formas de repressão adotadas e
instituídas no Brasil.
[1] José
Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Escritor. Professor-Adjunto IV do Departamento
de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.
[2] Marcela Ferreira
Lopes. Geógrafa/ UFCG/CFP. Graduanda em Pedagogia/UFCG/CFP. Especialista em
Educação de Jovens e Adultos com ênfase em Economia Solidária do Semiárido
/UFCG/CCJS. Membro de Grupo de Pesquisa FORPECS na mesma Instituição.
Enviado pelo professor, escritor e pesquisador do cngaço José Romero de Araújo Cardoso.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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