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domingo, 29 de maio de 2016

DEUS E DIABO NA TERRA DO SOL A NOITE EM QUE PADRE CÍCERO CONVERSOU COM LAMPIÃO


Foto raríssima da família Ferreira (Lampião) registrada na década de 1920, em Juazeiro do Norte no Estado do Ceará.

Ali estavam, frente a frente, pela primeira e única vez, Lampião e Padre Cícero, os dois maiores mitos de toda a história nordestina. Uma terceira figura mitológica era indiretamente responsável por aquele encontro inusitado: Luís Carlos Prestes, o comandante da Coluna Prestes, movimento militar guerrilheiro que desde o ano anterior serpenteava pelo interior do país, enfrentando as tropas do presidente Artur Bernardes. Quando a marcha da coluna revolucionária rumou para o Nordeste, o governo federal não teve dúvidas: convocou os chefes políticos locais para formarem exércitos próprios e combater os rebeldes. No livro O General Góes Depõe, da década de 1950, o próprio general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior das operações contra a Coluna, assume que partiu dele a idéia de convocar jagunços e cangaceiros para fazer frente ao avanço de Prestes. No Ceará, coube ao deputado Floro Bartolomeu, médico e aliado político do Padre Cícero, fazer o convite oficial ao bando de Lampião para se engajar no “Batalhão Patriótico”. Em fevereiro de 1926, Padre Cícero ainda tentou uma solução pacífica. Enviou aos revolucionários uma carta em que os incitava a depor armas. Em troca, prometia-lhes abrigo em Juazeiro do Norte (CE), onde teriam garantias legais de que seriam submetidos a um tratamento justo. De acordo com o relato de Lourenço Moreira Lima, secretário da Coluna revolucionária, a mensagem foi recebida. “Tivemos a oportunidade de ler essa carta, escrita com uma grande ingenuidade, mas da qual ressaltava o desejo íntimo e sincero do padre no sentido de conseguir fazer a paz”, escreveu Moreira Lima em seu diário de campanha, publicado em 1934. O pedido, como se sabe, foi ignorado. 

Quando Lampião chegou no dia 4 de março à cidade de Juazeiro do Norte, atendendo ao chamado de Floro, este não se encontrava mais por lá. Doente, o deputado federal viajara para o Rio de Janeiro, onde acabaria morrendo. Padre Cícero se viu então com um problema nas mãos: recepcionar o famoso bandido e seus cabras na cidade e, mais ainda, cumprir o que havia sido combinado entre Lampião e o deputado, com a devida aprovação do governo federal: o cangaceiro deveria receber dinheiro, armas e a patente de capitão do “Batalhão Patriótico”. Lampião e outros 49 cangaceiros ocuparam uma casa próxima à fazenda de Floro, nas imediações da cidade, e, em seguida, alojaram-se em Juazeiro do Norte, no sobrado onde residia João Mendes de Oliveira, conhecido poeta popular da região. Foi lá que, da janela, Virgulino atirou moedas ao povo e onde, durante a madrugada, Padre Cícero encontrou o bando. Os bandidos, ajoelhados em deferência ao sacerdote, teriam ouvido o padre tentar convencer seu líder a largar o cangaço logo após voltasse da campanha contra Prestes. Mandou-se então chamar o único funcionário federal disponível na cidade, o agrônomo Pedro de Albuquerque Uchoa, para redigir um documento que, supostamente, garantiria salvo-conduto ao bando pelos sertões e, principalmente, concedia a prometida patente. O papel, como Lampião viria a descobrir tão logo saiu da cidade, não tinha qualquer valor legal, o que não o impediu de assinar, daí por diante, “Capitão Virgulino”. Ciente da desfeita, o cangaceiro não se preocupou mais em dar combate à Coluna Prestes. Já obtivera dinheiro e armas em número suficiente para seguir seu caminho de bandoleiro, agora ostentando orgulhoso a falsa patente militar. Mais tarde, o agrônomo Uchoa justificou seu papel no episódio: diante de Lampião, assinaria qualquer coisa. “Até a destituição do presidente da República”, disse.

Bonnie e Clyde do sertão

O amor de Maria Bonita e Lampião provocou uma revolução no cotidiano dos cangaceiros

Uma sertaneja amoleceu o coração de pedra do Rei do Cangaço. Foi Maria Gomes de Oliveira, a Maria Déa, também conhecida como Maria Bonita. Separada do antigo marido, o sapateiro José Miguel da Silva, o Zé de Neném, foi a primeira mulher a entrar no cangaço. Antes dela, outros bandoleiros chegaram a ter mulher e filhos, mas nenhuma esposa até então havia ousado seguir o companheiro na vida errante no meio da caatinga. O primeiro encontro entre os dois foi em 1929, em Malhada de Caiçara (BA), na casa dos pais de Maria, então com 17 anos e sobrinha de um coiteiro de Virgulino. No ano seguinte, a moça largou a família e aderiu ao cangaço, para viver ao lado do homem amado. Quando soube da notícia, o velho mestre de Lampião, Sinhô Pereira, estranhou. Ele nunca permitira a presença de mulheres no bando. Imaginava que elas só trariam a discórdia e o ciúme entre seus “cabras”. Mas, depois da chegada de Maria Déa, em 1930, muitos outros cangaceiros seguiram o exemplo do chefe. Mulher cangaceira não cozinhava, não lavava roupa e, como ninguém no cangaço possuía casa, também não tinha outras obrigações domésticas. No acampamento, cozinhar e lavar era tarefa reservada aos homens. Elas também só faziam amor, não faziam a guerra: à exceção de Sila, mulher do cangaceiro Zé Sereno, não participavam dos combates – e com Maria Bonita não foi diferente. O papel que lhes cabia era o de fazer companhia a seus homens. Os filhos que iam nascendo eram entregues para ser criados por coiteiros. Lampião e Maria tiveram uma filha, Expedita, nascida em 1932. Dois anos antes, aquele que seria o primogênito do casal nascera morto, em 1930. Entre os casais, a infidelidade era punida dentro da noção de honra da caatinga: o cangaceiro Zé Baiano matou a mulher, Lídia, a golpes de cacete, quando descobriu que ela o traíra com o colega Bem-Te-Vi. Outro companheiro de bando, Moita Brava, pegou a companheira Lili em amores com o cabra Pó Corante. Assassinou-a com seis tiros à queima-roupa. A chegada das mulheres coincidiu com o período de decadência do cangaço. Desde que passou a ter Maria Bonita a seu lado, Lampião alterou a vida de eterno nômade por momentos cada vez mais alongados de repouso, especialmente em Sergipe. A influência de Maria Déa sobre o cangaceiro era visível. “Lampião mostrava-se bem mudado. Sua agressividade se diluía nos braços de Maria Déa”, afirma o pesquisador Pernambucano de Mello. Foi em um desses momentos de pausa e idílio no sertão sergipano que o Rei do Cangaço acabou sendo surpreendido e morto, na Grota do Angico, em 1938, depois da batalha contra as tropas do tenente José Bezerra. Conta-se que, quando lhe deceparam a cabeça, a mais célebre de todas as cangaceiras estava ferida, mas ainda viva.

Saiba mais

LIVROS

Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste Brasileiro, Frederico Pernambucano de Mello, Massangana/Girafa, 2004
Um dos melhores estudos sobre cangaço, desmitifica a idéia de Lampião como um “bandido social”.
Lampião: Senhor do Sertão, Élise Grunspan-Jasmin, Edusp, 2006
Compara as várias versões a respeito da vida de Virgulino Ferreira e analisa a permanência do mito Lampião.
A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão, Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros, Mauad, 2007
Analisa a violência que cercou o cangaço e Lampião.
Lampião: O Rei dos Cangaceiros, Billy Jaynes Chandler, Paz e Terra, 2003
Biografia de Virgulino Ferreira, baseada em jornais da época.
Foto: Lampião e família

Fonte: facebook
Link: https://www.facebook.com/pedro.r.pessoa.3?fref=pb&hc_location=profile_browser

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