*Rangel Alves
da Costa
Na parede,
avisto o retrato e sempre fico pensativo. A pessoa retratada, um velho por trás
de um espelho já amarelado de tempo e de uma moldura igualmente envelhecida,
possui traços instigantes numa feição que muito me diz.
É um retrato
triste, de um velho triste, numa tristeza profunda. Mas por que assim, por que
aquela feição num misto de aflição e sofrimento? Talvez seja isso que tanta
curiosidade me causa e me chama a desvendar sua face.
Não sei o seu
nome, não sei sua origem, nada sei sobre sua linhagem familiar. Contudo, o
reconheço demais. Nada me é estranho naquele retrato. Conheço olhos assim, de
tristeza profunda. Conheço traços assim, semblantes de encorajamento que não
escondem dolorosos percursos.
Conheci e
ainda conheço muita gente com aparência aproximada. Mas isso não quer dizer
muita coisa, pois olhos tristes são reconhecíveis em qualquer lugar e em
qualquer retrato, semblantes disfarçando outras realidades também são
desvendados sem muito pensar. É que a tristeza é de imediata identificação.
Meu avô
possuía olhos assim, talvez meu bisavô também. Os olhos de meu pai sequer
tentaram disfarçar algum dia. Os seus retratos também são tristes, ainda que
sorrisos apareçam em um ou outro instante. Depois de retratados em brilho,
novamente se distanciavam rumo aos desconhecidos da alma.
Aquele velho
retrato, porém, apareceu-me ao acaso. Ou pelo destino me levando diante aquela
parede, antes tão empoeirada e tomada dos ocres do tempo. Caminhando, defronte
à janela de um conhecido, eis que esta se abre para descortinar aquela moldura
envidraçada.
O retrato
parecia me chamar. Mesmo em meio às sombras do quarto, ainda assim o retrato se
mostrava tão visível como se ladeado de luz. E no mesmo instante fui
impulsionado ao seu encontro. Nunca mais consegui me afastar daquela imagem,
até que um dia a recebi em casa embrulhada em papel jornal. Era um presente.
Jamais
perguntei nem o amigo jamais me informou de quem se tratava. Talvez alguém do
passado familiar, um parente próximo ou ali deixado por outra pessoa.
Coloquei-o na parede da sala, defronte a uma cadeira de balanço, de modo que
sentado pudesse decifrá-lo com mais vagar.
Não havia,
contudo, nada a ser decifrado, ao menos na pessoa retratada, vez que eu sempre
avistava a tristeza emoldurada. Havia, contudo, uma familiaridade que me
intrigava cada vez mais. E, de vez em quando, mesmo no lume sombrio da retina,
aquele olhar parecia me olhar com impressionante profundidade. E toda a face
querendo me falar, me dizer qualquer coisa.
Então me pus a
imaginar como seria o meu retrato antigo, deixado numa parede qualquer, numa
idade de envelhecimento. Seria assim daquele jeito, triste e profundamente
triste? E fui desvendando-me aos poucos. Reconheci-me não muito diferente
daquele retrato, daquele velho ali dizendo muito de mim.
Já brinquei,
por alguns instantes já fui feliz, já amei, creio já ter sido amado, mas nada
que me caracterizasse como pessoa envolta em felicidade. Pelo contrário, a cada
passo na estrada pequenas tristezas e sofrimentos foram se acumulando. Ao lado
do meu constante silêncio, foi surgindo em mim um livro de história triste.
Tento a tudo
disfarçar com sorrisos, palavras boas, gestos alegres, convívios simpáticos.
Mas o que está na alma é o que delimita o ser. E somente sou o que meu ânimo
espiritual permite ser. E juro que não tenho encontrado motivos de felicidade.
Por isso triste
sou. Silencioso e solitário, com olhar distante e semblante acostumado a lenços
e aflições. E aquele retrato é o meu retrato. Sou eu retratado para a efêmera
eternidade.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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