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quarta-feira, 2 de novembro de 2016

ANTONIO CORRÊA SOBRINHO NOS PRESENTEA COM A ENTREVISTA DE FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELO

Antônio Corrêa Sobrinho‎Lampião, Cangaço e Nordeste

Compartilho com os amigos o texto que acabo de ler: a entrevista concedida pelo pesquisador e escritor Frederico Pernambucano ao jornal O GLOBO, de 04 de setembro de 2004. Nela, o notável estudioso do cangaço, honesta e humildemente, revê seu conceito sobre o cangaceiro Virgulino Lampião.

NEM BANDIDO, NEM MOCINHO

Historiador diz que o cangaço não deve ser visto como monstruosidade, e sim como resistência.

Há mais de 30 anos pesquisando o cangaço, o historiador Frederico Pernambucano de Mello acaba de lançar “Guerreiros do sol” em Paris, o que motivou a produção de um documentário por um canal franco-alemão sobre a vida de Lampião. Publicado pela primeira vez há duas décadas o livro ganhou edição revista ampliada e cheia de novidades, graças a um esforço conjunto das editoras Massangana e A Girafa. “Guerreiros do sol” foge da cômoda e clássica explicação pela ótica marxista, segundo a qual o cangaço seria apenas uma reação ao coronelismo vigente no sertão nordestino e à concentração de terras. Em entrevista ao GLOBO, o autor revê seu conceito sobre Lampião, a quem não considera mais um “rebelde sem causa”.

Letícia Lins

O GLOBO: Lampião, o rei do cangaço, suscita sempre discussões maniqueístas e apaixonadas. Para uns é um herói, para outros um bandido. O senhor ainda o define como um rebelde sem causa com fazia há 20 anos?


FREDERICO PERNAMBUCANO: Eu estava errado. Sou um cientista social que foi salvo no momento em que foi assaltado pela arte. Foi a estética do cangaço que me revelou que eu não poderia trabalhar um tema a partir somente de um conceito jurídico ou sociológico. Mas sim a partir de alguma coisa muito mais profunda que sintonizava com a alma do brasileiro, com sua formação colonial. Posso dizer que como cientista social fui assaltado pela estética. Não diria mais que Lampião foi um rebelde sem causa. Nesse momento isso fica resolvido dentro do conceito irredentismo.

- Por que irredentismo?

FREDERICO: Porque eram grupos que pretendiam manter a todo custo, até pelas armas, seus padrões de existência e não queriam trocá-los pelos do invasor ou pelos do colonizador. O cangaço é apenas uma das muitas rebeldias brasileiras, e é importante que não seja mostrado simplesmente como uma monstruosidade, de uma teratologia, porque não foi. O cangaço é um fenômeno tão digno de estudo na História do Brasil quanto o levante indígena, o quilombo negro, a revolução social profana ou religiosa, como a Pedra do Reino, Caldeirão, Serra do Rodeador, Canudos e outras.

- Então, nem herói, nem bandido, mas um resistente?

FREDERICO: Era um resistente a favor dos valores arcaicos da sociedade sertaneja, a exemplo dos que agiram no litoral em defesa dos valores tradicionais da sociedade brasileira, que é extremamente violenta na sua formação por todos os lados que você possa se valer para defini-la.

- Como a estética do cangaço mudou seu conceito sobre Lampião?

FREDERICO: O que caracteriza alguma nobreza por parte do cangaceiro é que enquanto o criminoso comum tende à ocultação, o cangaceiro é fascinantemente o oposto disso. O cangaceiro tinha indumentária tão especial que se compara em elaboração apenas à usada por algumas tribos indígenas em dia de festa. Não conheço outro grupo social no Brasil cujos trajes se comparem à imponência do cangaceiro Corisco, de Lampião. O traje era ostensivo, imponente, declarador da condição de cangaceiro. Por essa estética chega-se à conclusão de que eles não eram simplesmente criminosos que tendem à ocultação. Os cangaceiros estavam imbuídos de valores maiores do que a simples ideia da prática do crime.

- Por que os cangaceiros evitavam a ocultação?

FREDERICO: Eles se sentiam investidos de um mandato mais antigo e mais profundo do que a lei litorânea queria brandir contra eles no sertão. Esse mandato vai sintonizar com a ideia do mito primordial do brasileiro de que aqui era possível viver sem lei nem rei e ser feliz.

- Enxergar o cangaço pelo ângulo do materialismo histórico é um equívoco?

FREDERICO: É. Quando escrevi o livro estava entre o referencial teórico acadêmico no curso de direito e a minha convivência de afilhado com o ex-cangaceiro Medalha, amigo de infância de Lampião. No sertão, havia uma realidade. No litoral onde eu me encontrava, o marxismo prêt-à-porter dominava o meio acadêmico. Para os marxistas, a montagem do fenômeno era simples: precisamos de um opressor, é o coronel; precisamos de um oprimido, é o cangaceiro. Já estava tudo metodologicamente resolvido. Medalha me fez ver que interpretar o cangaço pela metodologia do materialismo histórico não me conduziria a explicar o fenômeno em sua completude. Como toda concepção estrutural em História, a do cangaço sob a ótica marxista pode parecer empobrecedora.

- Como é que Medalha, um ex-cangaceiro sertanejo, pode mudar um conceito filosófico?

FREDERICO: Quando eu conversava com Medalha, ele me dizia que Lampião era louco por coronéis sertanejos, que os coronéis também eram loucos por ele e que muitas vezes agiam de conluio. Lampião tinha um trato urbano agradabilíssimo, era um sedutor de coronéis e seu braço era longo para muitas missões. O polo de conflito era entre os litorâneos e os sertanejos, mas não entre coronéis e cangaceiros sertanejos.

- Então, apesar de ser cangaceiro, Lampião sonhava mesmo era em ser um coronel?

FREDERICO: Ele quis e chegou a ser um cangaceiro dos mais bem-sucedidos, um coronel da caatinga. Não tendo na terra a sua fonte de poder, substituiu a terra pelo fuzil, e o fuzil é inexoravelmente uma fonte de poder em qualquer lugar. Os cangaceiros foram coronéis sem-terra e se relacionavam como eles de igual para igual. Havendo motivo pessoal, eles rompiam e aí se tratava uma espécie de guerra entre coronéis.

- Se o cangaço não foi uma reação ao coronelismo, teria sido uma forma de suprir a ausência do Estado?

FREDERICO: Essa travessia das formas de criminalidade grupal acontece realmente no momento em que não há presença do Estado no sertão. De certa forma, esses grupos armados protagonizavam um tipo de ordem. Nessa época os coronéis eram a lei onde não havia lei nenhuma. Quando o Estado aparecia, o grupo se tornava intolerável e passava a ser a expressão da criminalidade. Convém assinalar também que o cangaço aflorava nos momentos de maior desorganização social, como nas secas. Nos momentos de conflito político também aflorava.

- Como no caso da passagem da Coluna Prestes pelo sertão?

FREDERICO: Lampião recebeu um dramático chamado do Padre Cícero, porque o “revoltoso” (prestes) estava seguindo para o Ceará, onde poderia “arrancar a batina do padre velho e desmoralizá-lo”. Lampião compareceu a Juazeiro do Norte, mas o álter ego do padre, o deputado Floro Bartolomeu da Costa, adoeceu e viajou para o Rio de Janeiro. O funcionário mais graduado da cidade era o inspetor do Ministério da Agricultura, que dialogou com Lampião, que receberia a patente de capitão honorário das forças legais contra os revoltosos. A patente é assinada pela única autoridade federal presente à cidade, Pedro Albuquerque Uchôa, que estava em Juazeiro combatendo a praga da lagarta rosada. Lampião, portanto, passa a ser um legalista por alguns momentos. Chega a trocar o chapéu de cangaceiro – símbolo máximo do irredentismo – pelo chapéu de feltro dos batalhões patrióticos, e se investe na condição de representante do governo federal, já que Bartolomeu era amigo íntimo do então presidente Artur Bernardes.

- É incrível como Lampião valorizava a aparência. Ele era bom marqueteiro?

FREDERICO: Com certeza. Ele tinha muita consciência da importância da imagem. Era um homem inteligente. Defini-lo como vulgar é um erra clamoroso. Ele tinha consciência da importância da imagem e por isso nunca desdenhou de fotógrafos e cinegrafistas. O ciclo do cangaço é um dos mais bem documentados fotograficamente. Lampião produzia sua própria imagem não só do ponto de vista estético, mas também a partir do imaginário que se difundia sobre ele.

- Além de Lampião e seu bando, quantos outros grupos de cangaço atuaram no Nordeste?

FREDERICO: Descrevo 44 grupos de cangaceiros nessa edição, mas a próxima já sai com 54, todos devidamente documentados.

- O cangaço pode ressurgir no Brasil? A guerrilha urbana seria o cangaço do asfalto?

FREDERICO: Quando a lei oblitera, quando não há eficácia na ação do Estado, volta-se à ideia de que é rentável viver sem lei nem rei. Se o cangaço pode ter sio endêmico, a criminalidade hoje é epidêmica. O escudo ético utilizado pelos cangaceiros era a vingança, muitos alegavam ter sido essa a primeira motivação para ingressar nos bandos. Hoje também se vê o escudo ético, do tipo “estou nessa vida porque sofri aquilo”. 

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