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quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

UMA NOITE ESPECIAL

Por: Piedade Farias
Fonte da imagem - Tia Ju - Ministério Infantil

Desde criança eu já trazia comigo a alma assim, volátil. Alma de soltar-se aos sonhos, de imaginar. Era esquisita, como diziam os mais velhos, vivendo mais no quintal de casa onde, bem à sombra do chuchuzeiro que se debruçava sobre os fios estendidos, eu tinha o meu cantinho, o lugar de me recolher toda vez que os pensamentos voltavam atropelando as brincadeiras, impondo-se a elas. Ali eu ficava cismando horas e horas até que o chamado de minha mãe me trazia de volta:
       
- Entra pra dentro, menina! Não tá vendo que já é quase de noite?
       
Lembro-me bem de um dia quando, ao ouvi-la me chamando, fechei o livro de Contos Infantis e deixei o meu refúgio ainda absorvida pela leitura do conto de Andersen A MENINA DOS FÓSFOROS. Empoeirada e com ar de quem acabou de fazer algo errado, entrei correndo em casa, na direção do quarto de costura onde minha mãe ainda estava na máquina, reformando o vestido da minha irmã mais velha para que eu tivesse o que vestir naquela noite. 
       
Era 24 de dezembro. Assustada, eu tentava prestar atenção ao vai-e-vem da agulha no pano, mas o olhar, embaçado pelas lágrimas e poeira, teimava em escapar pela janela na direção do céu onde brilhavam as estrelas vespertinas. 
       
A noite prenunciada descia fortalecendo o sentimento dolorido que viera, daquela leitura se aninhar em meu peito, embora eu procurasse afastá-lo, desviando o pensamento para todo o movimento que a antecedera. 
       
Reconstruí na lembrança o peru chegando da feira com os pés amarrados para cima, depois sendo cevado, engordando com o milho colocado bico adentro e a cachaça para a carne ficar macia; a árvore na sala, improvisada com um galho de goiabeira pintado com tinta prateada e decorado com tufos de algodão salpicados sobre as bolas coloridas; a figura do Menino Jesus quietinho, acomodado nas palhinhas desenhadas dos cartões trazidos pelo carteiro. 
       
Presente não haveria que éramos pobres e, quanto à roupa nova, tão comum nesta data, menino não tinha luxo. Tantas vezes ouvi minha mãe dizer isto que aprendi a não esperar uma coisa nem outra. Fato é que tal condição não me incomodava, absolutamente. Menos ainda naquele momento em que não adiantava pensar noutra coisa que não fosse aquela menininha do conto de Andersen, de pezinhos gelados acendendo, um a um, os fósforos que não conseguira vender, tentando se aquecer numa noite fria, escura e de natal.
       
Bastava olhar pela janela as nuvens que passeavam no céu, densas e brancas, que lá vinha a menina com seus pezinhos descalços sobre a neve... Sim, as nuvens viravam menina e neve, e somente a lua correndo no céu acompanhava os passos da menininha que tinha medo de voltar para casa sem ter vendido um fósforo sequer. Certamente seria castigada.
       
Minha angústia era a vastidão do céu já escuro com aquela menina tão só. O nariz gelado colado na vidraça de uma janela onde, do lado de dentro, uma mesa fartamente posta para a ceia ostentava um ganso assado. 
       
Eu tentava voltar a me interessar pela brincadeira com minhas irmãs quando senti o cheiro do peru torrando no alguidar sobre as brasas do fogão e me lembrei do ganso assado da estória, da menina com fome e com frio, observando os pratos e talheres alinhados, a chama do último fósforo iluminando o ganso sobre a mesa. No dia seguinte encontraram, junto aos fósforos queimados, um corpinho inerte.
       
Quando iriam acabar aquelas imagens que voltavam com tanta insistência? Era tirar os olhos da janela, acabar com a imaginação, parar de associar figuras aos formatos daquelas nuvens no céu, desenhando a mesma cena do livro, esquecer o cheiro que vinha da cozinha. Inútil, as cenas cresciam dentro da noite! Era tirar os olhos do céu...
       
De volta com o olhar na máquina de costura, fui surpreendida pela visão do paninho esgarçado da roupa daquela menininha e as lágrimas me vieram aos borbotões sob o protesto de minha mãe, gritando que não queria menino com luxo e aquele vestido estava bom demais, podia chorar se quisesse, mas outro não tinha, era aquele e pronto. Os gritos de mamãe se misturavam à música vinda do rádio, às vozes e algazarra dos meus irmãos. A casa estava cheia de gente e eu nunca me senti tão só nem tão incompreendida. 
       
Naquela noite eu não quis falar com mais ninguém. Corri de volta para debaixo da latada do chuchuzeiro. Sentada junto à cerca que separava o galinheiro do pé de chuchu fiquei por um tempo, algumas horas talvez... Pareceu uma eternidade. 
       
O luar prateava as folhas debruçadas sobre os fios alteados, bordando no chão uma renda de sombras que a brisa movia lentamente... Essa visão me aqueceu a alma como um fósforo aceso, até que o sono me venceu.

Piedade Farias

Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero Araújo Cardoso.

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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