Por José
Gonçalves do Nascimento*
Ao se deparar
pela primeira vez com a caatinga, espanta-se Euclides da Cunha com aquela
“flora inteiramente estranha e impressionadora capaz de assombrar ao mais
experimentado botânico”. Chega a ser contundente: “é uma flora agressiva”.
Depois emenda: “agressiva para os que a desconhecem — ela é providencial para o
sertanejo”.
A caatinga é
mais que uma vegetação, é um templo. E o sertanejo tem com ela uma relação mais
que amorosa: espiritual. Relação de devoção mesmo. Não há sertanejo que não
venere a caatinga como se fosse esta uma coisa sagrada. Ela é quase indizível,
imperscrutável. Somente os que com ela convivem são capazes de decifrá-la em
plenitude. Nela coexistem valores que só o sertanejo é capaz de captar. A caatinga
é uma questão de identidade. De espírito. De consciência. Não basta nela
conviver. É preciso vivê-la, senti-la, penetrar sua essência. Beber sua seiva
sagrada.
A caatinga
traz a marca da resistência; não se curva às intempéries; e o sertanejo é sua imagem
e semelhança; fez-se igual a ela: valente, forte e ousado; nada o detêm; nem
mesmo a indiferença governamental de que é vítima secular; tampouco a seca é
capaz de abatê-lo; com ela já aprendeu a conviver; sabe tratar-se de velha
companheira daquelas rústicas paragens.
A caatinga é
uma aliada inseparável do sertanejo; nela está sua vida e sua economia; nela
residem seus encantos e desencantos; conhece-a ele como a palma da mão; sabe
dos seus mistérios e segredos; não a ama: adora-a; jamais a deixará; dela
extrai o sertanejo a melhor das culinárias – manjares quase que sagrados, como
a refrescante umbuzada, a suculenta buchada de bode (regada à cana da boa), o
saborosíssimo cuscuz de milho (servido com café quente), sem falar dos
apetitosos beijus de tapioca (saboreados com manteiga da terra).
Com a caatinga
vive o sertanejo sua cultura e sua fé. Nela e com ela estão os deuses e
demônios que povoam o imaginário popular. Nela moram os lobisomens, as
mulas-sem-cabeça, a caipora. Por entre cipós e carrascais transitam os santos
do povo: São Cosme e Damião, São Lázaro, Santo Antônio, São João, Maria Virgem.
Do pico das colinas levanta-se a voz dos profetas do novo mundo: Conselheiro,
Romão Batista, Frei Caneca, Beato Lourenço, Eduvirgens, Irmã Dulce. Nas noites
enluaradas estão o aboio do vaqueiro, o verso de cordel, o repente da viola, a
fogueira de São João, o samba de roda, a banda de pífano, o bumba meu boi.
A caatinga é
sui generis; seus galhos finos e retorcidos contrastam ora com os robustos e
frondosos umbuzeiros, ora com as enormes e gorduchas barrigudas; os mandacarus,
sempre imponentes, erguem-se em direção aos céus, como que a suplicar a ajuda
do divino; do alecrim-do-tabuleiro rescende a melhor fragrância, enquanto a
canafístula acena com suas flores amarelas; exuberante, o araticunzeiro fornece
seus doces e saborosos frutos da polpa cor de gema.
Vem a seca e
tudo aquilo emudece. Morre, quase. A exuberância de antes transforma-se num
mundão de mato acinzentado. Ressequida e desfolhada, a caatinga é só calmaria.
Uma ou outra ave cruzando o céu, em busca de refúgios mais amenos. Nos
barreiros, nenhuma gota d’água. Animais com sede vagueiam perdidos pelos pastos
devastados. No céu, nenhuma nuvem. O quadro é de completa desolação.
De repente,
como numa sinfonia de Beethoven, ronca o trovão, clareia o relâmpago e desaba a
trovoada. E a caatinga ressuscita. Em poucos dias, ei-la a recobrar o verde de
outras quadras. A revestir-se da sua farta e alegre vegetação. Por toda parte,
ressurgem verdes e floridos os paus-de-rato, as cebolas-bravas, os umbuzeiros,
as malvas, os alecrins, os juazeiros, as juremas, os pau-de-rato, as
unhas-de-gato, os velames. Ao mesmo tempo, vibram felizes e festivos os
sapos-cururus, os preás, os calangos, os gatos do mato, os beija-flores, as
rolinhas, as juritis, os sofrês, os periquitos. E o sertanejo de novo se enche
de contentamento, agradecido por tão preciosa dádiva.
A caatinga com
seus muitos encantos é a síntese do Brasil guerreiro. Ela é o retrato da força
e do heroísmo dos que, transitando na contramão da história, ousaram empunhar a
bandeira surrada da liberdade.
*Poeta e
cronista
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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