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quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

O EMBORNAL DE LAMPIÃO

*Rangel Alves da Costa

O cangaço se vestia de sol e de lua, bebia do suor, do sangue e de água de qualquer fonte, mas se paramentava com vaidoso esmero. Descendo pelo corpo recoberto de brim azulado ou caqui, após o lenço de seda dobrado, toda uma parafernália que chegava a pesar trinta quilos. Cantis, embornais, cartucheira, punhal, armamento, anéis e moedas de ouro, verdadeiras relíquias saqueadas das portentosas propriedades, ou mesmo recebidas como presentes. E na cabeça o chapéu meia-lua com três estrelas, sendo ao centro a maior, geralmente encimando um circulo bordado.

Ao contrário dos demais bandoleiros - geralmente sujos e esfarrapados pelas fugas e correrias -, os homens do cangaço se esmeraram no vestir e na apresentação. Houve uma estética tão própria do cangaço que se poderia afirmar ditada por algum profissional da moda. Mas não, pois tudo nascido da imagem que Lampião desejava para o seu bando. Na sua concepção, o modo como seus homens se apresentavam refletia nos próprios objetivos de luta e de existência do grupo: não eram bandidos, mas homens decentes empunhando armas contra o regime opressor.

Com efeito, naqueles ermos sertanejos de pobreza e desolação, a chegada dos cangaceiros causava espantos indescritíveis. Homens cabeludos, com roupas enfeitadas, muitos usando óculos, joias e brilhos pelos dedos, perfumes em profusão, verdadeiros artistas das caatingas. E não foi por outro motivo que tantas mocinhas se apaixonaram por aqueles rudes e graciosos homens surgidos em meio às veredas empoeiradas. Também a fama e a periculosidade tanta atraíam com repulsavam os cabras de Lampião.

O próprio Lampião era um verdadeiro artista. Mesmo andando ou correndo de canto a outro, jamais deixou de cuidar de sua imagem. Neste sentido, não só propagou o marketing do cangaço como um meio necessário de luta como cuidou da aparência de todo o grupo e muito mais da sua. Ora, tanto cangaceiros como cangaceiras usavam e abusavam de roupas enfeitadas - muitas vezes espalhafatosas -, de brilhantinas e perfumes, de anéis e colares, de tudo aquilo que lhes chegasse às mãos como enfeite.

Quem já avistou fotografias dos cangaceiros - principalmente de Lampião e Maria Bonita - logo percebe a preocupação com a aparência, com a postura, com o modo de ser e viver. Retratos existem onde a rainha e o rei do cangaço mais parecem em suntuosos jardins, com poses lendo jornais e ao lado dos cachorros de estimação. Lampião sempre fez questão de ser fotografado apontando armas, lendo cartas, jornais e revistas. As fotografias coletivas objetivavam principalmente mostrar a união e a beleza do grupo.


Lampião jamais permitiu que Benjamin Abrahão, seu fotógrafo oficial, o retratasse, e mesmo a sua gente, em situação que não fosse enobrecedora, festiva, demonstrando valentia e destemor. Essa preocupação com a imagem objetivou desmitificar o mundo cangaceiro como um meio ruim, triste e sofrido. Daí que muitas são as fotografias e filmes de cangaceiros dançando, em prontidão no meio do mato, dialogando alegremente. Não há, pois, das lentes de Abrahão, um só instantâneo onde estejam retratados a dor e o sofrimento.

Além destes aspectos de propagação pessoal e de grupo, outros fatores permitiram conhecer Lampião como um diferencial entre todos aqueles que se embrenharam pelas matas para fazer justiça pelas próprias mãos. Reconhece-se desde muito que o líder cangaceiro também se esmerava no cuidado espiritual, a partir da conservação e preservação de uma fé tipicamente nordestina: a devoção como guia em cada ação.

Neste sentido, a mão cangaceira que puxava o gatilho era a mesma mão que ostentava o rosário de contas. O mesmo olho que divisava o mundo perigoso adiante era o olho que também se voltava para a prece guardada no embornal. O coração angustiado pelas durezas e incompreensões da vida, pelas forças inimigas no seu encalço e pela luta pelo dia seguinte, era o mesmo peito que ardia em sentimentos e culpas, em silêncio e gritos de homem comum. Sim, pois Lampião era homem de fé e de oração, era pessoa temerosa dos castigos divinos, era ser humano que também se ajoelhava aos céus proteção.

Naquele embornal de Lampião, todo enfeitado de quinquilharias douradas e tão ciumado e protegido pelo seu dono, uma folha encardida de tempo e desgastada pela leitura de vez em quando se abria perante aqueles olhos quase cegos de um olho. A oração da proteção, a oração para fechar o corpo, a reza contra os labirintos da vida. Não aquela ensinada por seu santificado Padre Cícero, mas aquela escrita de próprio punho nas relembranças que o homem nunca deve se afastar dos ensinamentos sagrados.

Embornal cheio de pecado e de fé, tomado de respingo de sangue e de água benta, envernizado pelo destemor e pela devoção, mas sempre um cantinho onde o homem, ainda que o Capitão Lampião, sempre levava guardados seus alentos e esperanças. E nisto também uma verdade: o líder cangaceiro nutria vontade imensa de um dia largar da guerra e da arma e viver na paz o resto de seus dias. Mesmo sabendo da impossibilidade de assim acontecer.

Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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