*Rangel Alves
da Costa
Segundo
Clenaldo, amigo radialista e viajante dos quatro cantos, o sertão possui
especificidades que não podem ser esquecidas. E diz ainda que sertanejo
autêntico é aquele que teve como sua primeira escola o campo, que também
aprendeu a escrita do cabo da enxada e que teve o pirilampo como brinquedo
favorito. Sertanejo pra valer já armou pedra de queixo, pegou preá e mocó, foi
atrás de rolinha fogo-pagô, cavou peba nos tabuleiros, tirou enxu nas moitas
das capoeiras. Sertanejo de vera é aquele que passou pelas mãos de benzedeira
procurando desapartar de olhado, papeira, dor de dente, bucho inchado e
espinhela caída.
Mas há muito
mais. Sertanejo de vera enterra a melancia até que ela perca o calor do sol até
o ponto de ser cortada ali mesmo no meio da roça. Leva na cuia, enrolada em
pano, o de comer para suportar as durezas da lida. Vai tirar leite da vaquinha
já levando prato de estanho ou caneca com tiquinho de farinha. Uma gostosura
quando o leite quentinho desce espumando e é logo mexido e comido em papa rala.
Leva no prato um tantinho de açúcar e desmancha por cima o melão coalhada. Ou
enche o chapéu de araçá madurinho e depois se ajeita debaixo de sombreado
umbuzeiro.
Farinha seca e
rapadura, eis os mantimentos indispensáveis ao aió, alforje ou embornal do
autêntico caçador sertanejo. Ao menos de antigamente, pois hoje praticamente
não há mais caça nem caçador. As queimadas, devastações e destruição da
natureza acabaram também com os bichos. O preá, por exemplo, que chegava a
infestar em determinadas ocasiões, agora sumiu de vez.
Mas ainda há
quem se arrisque a adentrar no que resta de mataria, principalmente em torno
dos tufos, macambiras e locas das pedras grandes, pronto para disparar a
espingarda de chumbo socado em qualquer rastejante que encontrar. Faz isso por
necessidade, ainda sai em caçada na esperança de levar pra casa qualquer coisa
que ao menos engane a fome da filharada.
Noutros tempos
era muito diferente. A caça fazia parte da sobrevivência do sertanejo e na
catinga sempre encontrava o alimento tão importante. Não fazia por esporte, por
brincadeira ou no intuito de dizimar qualquer espécie, mas por pura
necessidade. Em época de estiagem grande, com a voracidade do sol devorando
tudo, não havia outra saída senão buscar no mato a mistura da farinha seca.
Por isso mesmo
que a caçada era uma prática tão constante, vez que também tão frequente a
falta comida de feira no fogão de lenha. E caçadas que duravam dias, até uma
semana inteira com o velho rastejador no encalço da carne gorda, do bicho
farto. Voltava trazendo veados, caititus, codornas, nambus, preás, cágados,
teiús e muitos outros bichos ainda abundantes nas caatingas sertanejas. Mas
hoje tudo diferente.
Nos
descampados sertanejos de agora não há mais mato nem bicho. O calango corre de
canto a outro, descendo e subindo pedra, porque não encontra mais uma boa
sombra de mato. Passarinho não encontra galhagem nem para o voo nem para o
ninho. Cágado se entoca de ninguém mais encontrar. Até mesmo cobra desapareceu
debaixo das pedras e das beiras de estradas.
Por
consequência, quando a seca vem esturricando tudo e na dispensa do pobre não
resta mais nada para iludir barriga, só mesmo o desespero para fazer com que o
sertanejo decida arriscar uma caçada. Quando resolve partir, então se prepara
como faziam os velhos caçadores de outrora, do mesmo jeitinho. Lançam mão da
espingarda, da indumentária própria para enfrentar tocos de paus e espinhos,
guarnecem o velho cantil e jogam nas costas o saco para colocar a caça e
cruzando o peito o aió, o alforje ou o embornal. E chama o velho e magro
cachorro perdigueiro, farejador, caçador nato.
Também o
alimento que leva é o mesmo de outros tempos, pois sempre a farinha seca e a
rapadura, e esta bem embrulhada em sacola plástica pra não se derreter inteira
no calorão da caatinga. Um ou outro ainda consegue levar um pedaço de carne
seca ou pedaço de queijo, mas já é luxo demais pra quem vai caçar porque a
comida escasseou de vez no fundo da panela. Assim, a farinha seca com rapadura
sempre consistindo na amizade inseparável do homem da terra.
A farinha seca
com rapadura continua sendo o sustento de muito sertanejo na sua lide no mundo.
Contudo, se for caçador, só sendo doido para entrar na vereda sem levar um
pedaço de fumo e meia garrafa de cachaça. Sua parte também levava, mas não
podia esquecer de jeito nenhum a oferenda para os seres encantados da natureza.
Assim, ao colocar o pé por cima do espinho, na primeira pedra grande que
encontrasse tinha que deixar o presente para a caipora. Para esta o fumo e para
outros a cachaça.
E ai de
esquecer. Mais adiante vai levar uma surra tão grande que após desacordar e
levantar moído, ainda vai ficar amalucado e sem saber o caminho de volta.
Coisas do sertão, coisas do meu sertão!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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