*Rangel Alves da Costa
Já não sei quem sou eu agora. Mas por culpa minha. Ao tentar me refazer, eis que me refiz demais. Apaguei, escondi, desfiz, ocultei, tornei o existente em inexistente. Para o bem ou para o mal, mas a verdade é que mudei demais.
Qual o motivo de agir assim, de tanto modificar o passo, o caminho e até mesmo o destino? Ora, mas que pergunta. Será que vale a pena tanto mudar para, na mudança, enfim, ser feliz no amor?
Sim, tudo por amor. Por que a incompletude, por que a carência, por que o desamor, por que a solidão? Não deveria ser tão difícil assim amar. Mas como tudo tentei e não amei, então tudo mudei.
Apaguei todos os rastros meus. Na minha estrada já não existe por onde caminhei. Olhar atrás já não se avista por onde passei. Quem sou eu agora?
Risquei por cima de todos os escritos meus. Borrei, sujei, estraçalhei todo o começo e todo o fim, todo ponto e toda vírgula, até mesmo o que eu rabisquei. Quem sou eu agora?
Desamei como desama quem amava por erro ou inocência. Num coração que não cabe em si mesmo, não há lugar para o que por ilusão um dia encontrei. Quem sou eu agora?
Rasguei todos os retratos de ontem até o primeiro dia. Não me quero mais avistar naquilo que já fui e que já não sou mais por que desbotei. Quem sou eu agora?
Findei com o sonho que persistia em me fazer sonhar. A cada dia sonhando e a cada dia vendo que com o sonhado jamais cheguei perto do que procurei. Quem sou eu agora?
Pintei de outra cor onde havia uma cor diferente. O arco-íris não precisa de tanta cor assim. No céu todo azul um monte de amarelo joguei. Quem sou eu agora?
Chorei todo rio, todo mar e todo oceano que havia em mim de uma vez só derramei. Fiz-me tempestade e trovoada e todas as minhas dores eu despejei. Quem sou eu agora?
Pranteei, solucei, lamuriei, e depois de refeito da dor eu me enxuguei. Mil lenços levados ao varal pelo que passei, para não mais dilacerar o que dilacerei. Quem sou eu agora?
Lancei na bacia da fé o que tanto acreditei. Só precisava de um Deus e com Deus eu fiquei. O resto de toda crença eu desacreditei. Mas com Deus eu fiquei. Quem sou eu agora?
Perguntei a mim mesmo se é normal viver envolto à solidão como sempre me dei. E como resposta ter a mesma solidão por que assim quis e sempre procurei. Quem sou eu agora?
Indaguei se é do prazer humano amar para o sofrimento, adorar para o padecimento, querer tanto para o exaurimento. E depois chorei pelo que me perguntei. Quem sou eu agora?
Aplaquei sem o furor do ódio, sem a insensatez da ira, quando reconheci todos os meus erros cometidos. E por isso mesmo ajoelhado me perdoei. Quem sou eu agora?
Queimei os velhos álbuns, os velhos baús, as velharias e os imprestáveis amontoados na alma existentes. Em fogueira grande, imensa, a tudo queimei. Quem sou eu agora?
Rabisquei o último verso para depois rasgar. Por que a poesia se já não há flor, se já não há canção, se o amor não existe mais. Do poeta em mim desgostei. Quem sou eu agora?
Inventei um jeito novo de ser feliz sem forçar o sorriso ou abraçar gelado. Ser apenas o que sou sem nada além. E pensar que fui outro e nunca evitei. Quem sou eu agora?
Reneguei o pão da falsa mão e o abraço da traição. Afasto-me de tudo para não querer ser alcançado pela covardia. Oh quanto fui traído quando me doei. Quem sou eu agora?
Amassei e fora joguei mil bilhetes e cartas. Já não me convence corações desenhados nem lábios de beijo em papel. Talvez não tenha aprendido o que ensinei. Quem sou eu agora?
Perdoei a mim mesmo pelo muito que errei. Errei por amor, errei por paixão, errei pela ilusão, errei. Procurei sempre acertar, mas sei que errei. E me perdoei. Quem sou eu agora?
Encontrei enfim uma voz silenciosa que havia escondida dentro de mim. E ontem mesmo eu a escutei. Ela disse: “Ei, goste de você, eu já lhe falei!”. Quem sou eu agora?
Acreditei que somente mudando eu me reencontraria. E caminhando mais firme do que sempre andei. E buscando mais sabedoria do que agora sei. Quem sou eu agora?
Perguntei, perguntei, perguntei: Quem sou eu agora?
Responderei: humano apenas. E tão humano sempre serei que reconheço ser impossível mudar muito do que imaginei. E por fim direi que amo, amei e sempre amarei!
Escritor
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