Do acervo do pesquisador José João Souza
Com sanfona,
Irmã Dulce visitou o cangaceiro e intercedeu por ele.
Numa manhã
setembrina de 1939, a Irmã Dulce - de hábito prestava assistência espiritual e
material aos presos - bateu nas portas do velho presídio da Engenho da
Conceição, denominado Coreia, localizado no fundo da Igreja dos Mares, pediu
para ver “Volta Seca”, lugar-tenente de Lampião; cumpria pena de 119 anos por
supostos crimes cometidos no Cangaço.
Era um
encontro marcado. Antes, Antônio dos Santos, nome de batismo do cangaceiro,
relutara em receber a freira, queria saber quem era. Fazia sete anos que estava
preso com precária assistência judiciária e carregava o estigma de ter
participado do morticínio de Queimadas, 1929, onde oito soldados foram
massacrados pelos homens de Virgulino.
Volta Seca era do bando de Lampião e foi preso aos 15 anos.
Irmã Dulce
compareceu ao presídio portando uma sanfona, a música os aproximou. O
cangaceiro sabia de cor várias músicas, era analfabeto, porém, bom de ouvido.
Tinham quase a mesma idade, a religiosa 25, ele 23.
Desde então, a
Irmã Dulce passou a visitar Antônio com frequência, intercedeu junto às
autoridades a seu favor, é claro, dentro de suas limitações - a Justiça lhe
negava os direitos previstos em lei, apesar de seu bom comportamento - como
contou o presidiário ao jornalista Berliet Junior do Diário da Noite do Rio de
Janeiro em 17/1/1950.
“Eu por não
saber fazer a petição... pedi ao Dr. Tourinho que me fez a caridade, escreveu
por mim e até o momento não tive decisão nenhuma. Quatro meses e nada ainda de
parte do juiz. Nem que sim, nem que não... Já pedi a todo mundo. Do governo ao
secretário... E só me prometem... Nem todos são assim. Há uma figura nobre que
tem olhado esse meu caso. É a Irma Dulce, freira do Círculo dos Operários. É a
santa criatura que constantemente intercede por nós aqui na penitenciária.
Prometem a ela, mas nada cumprem. O senhor vê que nem a figura dos santos
consegue ajeitar a boa vontade dos homens”.
Nos idos da
entrevista ao repórter carioca, “Volta Seca” já cumprira 18 anos da pena
prescrita, 11 deles assistidos pela Irmã Dulce, numa situação de irregularidade
que chocava os meios jurídicos, a começar pela sua prisão aos 15 anos,
aumentaram a idade do preso no inquérito para ser julgado como adulto.
Pela
legislação, a pena máxima de 119 anos teria um teto de 20 anos. A lei
determinava que cumprida metade da pena, em condições de boa conduta, o preso
poderia requerer a liberdade condicional. E assim foi feito e “concedido”. O
juiz de execuções criminais, porém, prendeu a guia, dizem que sob pressão de
chefes políticos e coronéis dos sertões.
De nada
valeram os atestados do célebre legista Arthur Ramos e do eminente Dr. Estácio
de Lima, este, não apenas confirmou que o preso estava apto para retornar à
sociedade como intercedeu a seu favor e lhe prometeu emprego no Instituto Nina
Rodrigues: “Deveria a sociedade se envergonhar de seu comportamento cruel com
relação a esse presidiário... O processo foi muito mal orientado... não teve a
mínima defesa”, declarou na ocasião. Por quatro vezes, o ilustre médico
solicitou o indulto, finalmente concedido pelo presidente Getúlio Vargas em
24/3/1952, transcorridos 20 anos atrás das grades. O famoso fotógrafo baiano
Gervásio Batista, junto com os cinegrafistas da TV Tupy, documentou a entrega
do telegrama do presidente da República ao ex-cangaceiro.
Antônio dos
Santos viveu dias amargos após a sua liberdade. Passou fome, era temido e
execrado pela sua biografia. A despeito disso tudo levou a vida adiante, teve e
criou seis filhos. Morreu idoso em 1997, exatos 80 anos de uma agitada
existência.
Do Jornal
CORREIO
Redação: 71 3203-1048
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