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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

EXTRAÍ DA EDIÇÃO DE 8 DE MAIO DE 1932, DO DIÁRIO DE PERNAMBUCO, A DESCRIÇÃO DO JORNALISTA ANÍBAL FERNANDES, DA TRÁGICA REALIDADE DO SERTÃO PERNAMBUCANO DAQUELE TEMPO. ANTÔNIO CORRÊA SOBRINHO

Material do acervo do pesquisador Antônio Corrêa Sobrinho

A SECA E OS SEUS FLAGELOS

A bandeira dos Diários Associados pelos sertões do Nordeste
Aníbal FERNANDES (Enviado especial dos Diários Associados)

O FERREIRO DA MALDIÇÃO

Numa dessas notas nós comparamos o sertanejo ao “ferreiro da maldição, que quando tinha ferro não tinha carvão”. Quem vai a Belém de Cabrobó pode ter disso a certeza. Belém também sofre da seca. E sofre por outro lado, com a invasão do seu território por gente que vem dos outros Estados, tangida pelo flagelo, e, quem diria! pela maneira bizarra como a polícia baiana está realizando a perseguição ao banditismo.

Ouvimos do vigário de Floresta, sacerdote dos mais dignos, que não era possível que o Governo baiano tivesse conhecimento da maneira como isso estava sendo feito.

Belém está cheia de pequenos fazendeiros baianos, expulsos de suas propriedades, sob pretexto de perseguição a Lampião.

A história é a seguinte: a polícia da Bahia quer dar o golpe de morte em Lampião, aniquilando o “coiteiro”. E na expectativa de que todo o mundo possa vir a ser “coiteiro” vai expulsando o pessoal de suas terras.

É verdadeiramente inqualificável o que está acontecendo nos sertões baianos, segundo nos relatou o vigário de Floresta. Fazendeiros há que perderam gado, lavoura, casas, deixando tudo nas mãos da polícia. Outros há que estão proibidos de dormir nas fazendas. E por muito favor podem ir de dia à propriedade, tendo, porém, que pernoitar na cidade mais próxima.

A mesma narrativa ouvimos de diversas pessoas, de Belém, onde há muita gente morrendo de fome, devido à atitude estranha adotada no Estado vizinho.

É claro que na luta contra o bandido o “coiteiro” deve ser reprimido com energia. Mas não é despovoando o sertão e tomando conta das fazendas que se consegue esse objetivo. Isso faz parte das soluções estratosféricas que é preciso evitar.

De sorte que, aos muitos males que o salteiam, o sertanejo nordestino tem que acrescentar mais esse.

A seriedade das fontes, onde colhemos essas informações, deve provocar do Governo da Bahia uma providência decisiva, modificando-se a maneira de fazer a repressão ao banditismo e evitando-se assim que inúmeras famílias fiquem na miséria.

O vigário de Floresta lembrava que as fazendas suspeitas ficassem vigiadas pela polícia, o que evitaria essa expulsão em massa, que vem refletir entre nós, porque toda essa gente atravessa o rio e se refugia em Pernambuco, aonde ocorre neste instante grande parte da população do Nordeste flagelado.

A luta contra o cangaço não pode ser feita, às cegas, atingindo-se indistintamente a quantos nada têm que ver com o célebre bandido, que, a despeito de tudo, continua a se deslocar de um canto a outro, com a sua diabólica mobilidade.

DE FLORESTA A SALGUEIROS

A estrada de Floresta a Salgueiros é qualquer coisa de trágico que o nosso carro vence com uma bravura decidida.

A bandeira dos Diários Associados rasga as caatingas, atalhos e veredas, por onde a passagem de um automóvel é verdadeiramente aventurosa. Diversas vezes temos que parar para tirar o carro de alguma valeta ou para encher os pneus ou para reparar as câmaras de ar estouradas. A soalheira é terrível. Levas de retirantes nus, famintos, esfarrapados, vindos de todos os recantos, de Sobral, de Missão Velha, do Juazeiro, de Inhamuns.

Atravessamos uma zona, por onde outrora Lampião fazia as suas razias ferozes.

Tapera. Teatro do drama sinistro, em que pereceu toda família dos Gilos, composta de 17 pessoas, trucidadas pelo bandido, após um embate tremendo, em que refulge toda a bravura sertaneja. Dezessete heróis que sucumbiram após esgotar o último cartucho.

Cortamos os contrafortes da serra do Aripuá e da serra do Umã.

Barra do Silva. Pobre lugarejo onde estacamos um momento para colher informações. Um pequeno lavrador conta-nos a sua desdita, apontando-nos aí serra, outrora tão fértil, e onde as lavouras desta vez não medraram. Não há mais nada. Tudo se foi com a seca. O gado está vasqueiro, devido também à peste que se pronunciou o ano passado.

Há fome. A alimentação do pobre é a macambira e o “bró” do catolé que nem mesmo o animal bem aceita. E está tudo nu.

Conceição dos Crioulos é quase um quilombo. Algumas crianças maltrapilhas brincam na rua. O Dr. Olímpio de Meneses aponta-nos um pequeno tracomatoso. Por toda parte, a miséria, o abandono, a desolação.

Estamos nos aproximando de Salgueiros. Grupos de trabalhadores preparam a rodovia Salgueiros-Vila Bela, que daqui a um mês e meio a dois estará concluída. Paramos. Perguntamos pelos efeitos da seca. Um trabalhador nos diz que está tudo arrasado. As lavouras mortas nos campos. Ninguém colheu e “nem mesmo a serra do Araripe, diz ele, que era quem salvava essa “América de Pernambuco” tem mais nada.

Agradecemos-lhe a informação... e a frase.

América de Pernambuco! Pedaço de “terra desumana”, flagelada, e que é preciso salvar do desastre para que caminha, e com ela todo este podre Nordeste, tão digno de melhor sorte.

Em Salgueiros a seca assola o município todo e por toda a parte deixa o traço de sua passagem. O comércio está aniquilado. Gente daqui e dali vai abandonando as suas terras. Pequenos comerciantes já fecharam as portas.

Procuramos fazer a nossa “enquete”, ouvindo pessoas de todas as classes e de todas as condições. E, sem distinção, é o mesmo clamor. Um dos maiores comerciantes e fazendeiros fala-nos com a maior apreensão sobre o futuro do sertão e de Pernambuco. A pecuária vai desaparecendo. A safra de algodão este ano está perdida. Os cereais que a maioria dos municípios produzia para o seu consumo têm de vir de fora. O despovoamento se acentua.

E qual o meio de ir ao encontro dessa situação? Só grandes trabalhos, serviços de larga envergadura. Os 450 contos que nos couberam do crédito de 10 mil, aberto recentemente pelo Governo Federal, e com que estamos fazendo os serviços das rodagens, não chegam para nada. São uma migalha, uma gota d’água. Daqui a pouco esse crédito estará extinto. E que vai ser do sertão? Todas as economias se impunham para atender à crise desesperadora do sertanejo. Porque o Brasil não faz um sacrifício pelo Nordeste sofredor?

Por que o país, que gastou 60 mil contos na estrada Rio-Petrópolis, não concentra todas as suas energias em realizar no Nordeste obras que aí estão se impondo por uma questão de salvação pública?

Outro fazendeiro, ouvido sobre os trabalhos em curso, fala-nos sobretudo da situação lamentável do trabalhador, exausto pelas privações e que não pode dar o rendimento que se pode exigir de um trabalhador válido e bem alimentado. E a família desse infeliz, composta na sua maioria de mulher e de cinco ou seis filhos, às vezes muito mais?

De toda gente ouvimos o mesmo rosário de lamentações. O mesmo apelo para que transmitíssemos, por intermédio dos Diários Associados, a todo o Brasil, a angústia do sertanejo batido por toda a sorte de desventuras e revezes: a seca, a peste, as lutas políticas, tudo se acumulando numa sucessão interminável, como se para ele não houvesse jamais um lenitivo ou uma esperança.

Aníbal Gonçalves Fernandes foi professor, jornalista, oficial de gabinete do governo Sérgio Loreto, secretário de justiça e instrução, deputado estadual, mas sua maior paixão foi o jornalismo. Também foi membro da Academia Pernambucana de Letras e do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (fonte: internet)


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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