Por Denize Guedes*
Noite de
sábado para domingo, fim de setembro de 1936. Faltava só passar o pó no rosto,
espalhar o perfume atrás da orelha e calçar as alpercatas. Cabelos negros e
encaracolados na altura da cintura, dentro do seu melhor vestido, a menina de
12 anos, que, se os pais se descuidassem, trocava o estudo pela dança, estava
pronta para o seu primeiro baile no alto sertão sergipano com o bando do
cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
Não havia escolha, só mesmo confiar na bênção da tia de criação antes de sair
de casa engolindo o medo.
“Eles mandavam apanhar a gente. Vinha aquela ordem e tinha de cumprir. Se não,
causava prejuízo depois”, conta Alzira Marques, que completa 86 anos em
agosto. Ela lembra detalhes das incontáveis festas cangaceiras a que foi em
fazendas que já não existem mais e que deram lugar à planejada Canindé de São
Francisco, com o início da construção da hidrelétrica do Xingó, em 1987.
Canindé Velho, como a sertaneja chama o local onde nasceu, à beira do Velho
Chico, foi demolida por conta da usina, hoje fonte de renda para a cidade –
atrai quase 200 mil turistas por ano com o Cânion do Xingó.
O auge de Lampião em Sergipe vai de 1934 a 1938, quando o cangaceiro foi morto
ao lado de Maria Bonita e outros nove do bando, em 28 de julho, na Grota do
Angico, município de Poço Redondo. “Este é o Estado onde ele encontrava mais
proteção, aliando-se aos poderosos locais, como o coronel Hercílio Porfírio de
Britto, que dominava Canindé como se fosse um feudo”, explica Jairo Luiz
Oliveira, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço. “São os chamados
coiteiros (quem dava proteção ao cangaço), políticos de Lampião. Melhor ser seu
amigo que inimigo.”
Foi nas terras de Porfírio de Britto que Alzira mais arrastou as sandálias. “Na
primeira vez, encontrei Dulce, que foi criada comigo em Canindé Velho e tinha
virado mulher do cangaceiro Criança. Eles também eram de muito respeito e nunca
buliram com gente minha. Pronto, não tive mais medo”, relembra. Temporada de
baile era fim de mês, quando as volantes da Bahia e Pernambuco – as polícias
mais algozes no rastro de Lampião – voltavam a seus estados para receber o
soldo. “Aí os cangaceiros viam o Sertão mais livre para fazer festa”, diz.
Dia de dança, Alzira tinha de sair e voltar à noite para não levantar a
suspeita dos vizinhos. Às 22 horas, punha-se a andar 2 quilômetros até o local
onde um coiteiro escondia os cavalos. Outras meninas iam junto. Montavam e
seguiam morro acima por uns 15 minutos. “Quando a gente chegava, ia direto
dançar o xaxado, forró, o que fosse, até 4 horas da manhã.” Mesmo caminho de
volta, chegava com um agrado do rei do cangaço: uma nota de 20 mil réis. “Era
tanto do dinheiro, mais de 300 reais na época de hoje. Dava tudo para minha
tia.”
Apesar de festeiro, não era sempre que o líder do bando dava o ar da graça.
Quando ia, porém, não se fazia de rogado: no mato à luz de candeeiro, onde o
arrasta-pé comia solto, brilhantina no cabelo, dançava com as moças do baile
sem sair da linha. Média de 20 homens para 15 mulheres. “Ninguém era besta de
mexer com a gente. Eles nos respeitavam demais. Lampião era o que mais
recomendava: ‘Olha o respeito!’” Maria Bonita – que para Alzira “não era lá
essa boniteza, Maria de Pancada era mais bonita” – não tinha ciúme.
O cangaceiro mais conhecido do Brasil gostava de cantar e levava jeito para
compor. Quem não se embalou ao som de Olé, mulher rendeira / Olé, mulhé rendá?
Ou de Acorda, Maria Bonita / Levanta, vai fazer o café? Alzira conta que era
comum ele pedir ao sanfoneiro Né Pereira – outro intimado do povoado – para
tocar essas canções, enquanto ele mesmo cantava. “Letra e música dele, além de
ser um exímio tocador de sanfona”, confirma Oliveira.
Os bailes eram como banquetes. “Tinha comida e bebida de toda qualidade. Peixe,
galinha, porco, carneiro, coalhada, bolo, cachaça limpa”, diz Alzira. Outro
ponto que se notava era o aroma: os cangaceiros, que podiam passar até 20 dias
sem tomar banho, gostavam de se perfumar. O coronel Audálio Tenório, de Águas
Belas (PE), chegou a dar caixas de Fleurs d’Amour, da marca francesa Roger
& Gallet, para Lampião. “Era perfume do bom, mas misturado com suor. Subia
um cheiro afetado. A gente dançava porque era bom”, afirma a senhora, que se
entrosava mais com Santa Cruz e Cruzeiro.
Mais de 70 anos depois, Alzira ainda sonha com aquelas noites e sente falta da
convivência com os amigos: muitas festas aconteciam em Feliz Deserto, fazenda
que Manuel Marques, seu então futuro sogro, tomava conta. Não raro, o brilho da
prata e do ouro das correntes, pulseiras e anéis dos cangaceiros visitam sua
memória, assim como a imagem de Lampião lendo a Bíblia num canto da festa. “Ele
era muito religioso.” No seu pé de ouvido fica o xa-xa-xá das sandálias contra
o chão, som que deu nome ao xaxado, segundo Câmara Cascudo, ritmo tipicamente
cangaceiro que não se dança em par.
Testemunha de um período importante da história do País, conta que nunca teve
vontade de entrar para o cangaço nem considerava Lampião bandido: “Não era
ladrão, ele pedia e pagava, fosse por uma criação, por um almoço. Agora, se
bulissem com ele, matava mesmo”. Na cidade é conhecida como a Rainha do Xaxado.
No último São João, que antecipou as comemorações do centenário de nascimento
de Maria Bonita (8/3/1911), foi uma das homenageadas.
Balançando-se na rede na entrada de sua casa, satisfeita com os dez filhos, 40
netos e 37 bisnetos, Alzira aponta para um dos locais onde dançou com Lampião:
uns 100 metros adiante, a Rádio Xingó FM. “Continua lugar de música.” Mas e
Lampião, dançava bem? “Ah, ele dançava bom.”
(Foto: Cesar de Oliveira)
*A repórter viajou a convite do Ministério do Turismo e da Associação
Brasileira das Operadoras de Turismo (Braztoa).
Publicado
originalmente na coluna Brasilianas, edição nº 604 da essencial revista Carta
Capital.
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