Por *Rangel Alves
da Costa
Os bichos, ah
os bichos! Esses bichos imundos, sedentos, famintos, cismados, vagantes,
solitários, errantes, vorazes, tão bichos.
Bichos, sempre
esses bichos fedidos, sebosos, asquerosos, repugnantes. Os bichos e seus
cheiros putrefatos, encardidos, mofados, insuportáveis às narinas de muitos.
Os bichos
soltos, escondidos, surgidos do nada. De repente vindos das imundícies, dos
lixões, dos monturos, dos relentos, dos esgotos, dos canteiros pútridos, das
marquises rotas.
Bichos que
saltam de seus inexistentes telhados, que despontam de trás de suas portas
inexistentes, que se apresentam como vindos do nada para assustar a vida e a
todos.
Os bichos, ah
os bichos! Bichos que aterrorizam, que fazem temer, que afastam as pessoas, que
escandalizam olhos e mentes daqueles que desconhecem suas existências.
Mas que bichos
são esses que surgem para confrontar o homem ciente de estar tão longe dos
matos, dos monturos, dos quintais, das florestas, dos escondidos de qualquer
lugar?
Que bichos são
esses assim tão presentes pelas ruas, avenidas, caminhos, morros, favelas,
areais, alagados, beirais pantanosos, sobre a terra e o asfalto mais citadino?
A maioria das
pessoas, ainda que os conheça e reconheça, insiste em menosprezar sua
existência. Tantos outros apenas fingem que não os avistam pelos seus caminhos.
Que bicho é
esse que berra com fome e sede, que amanhece e anoitece sem qualquer pão, sem
qualquer cuia d’água, sem qualquer certeza de que adiante encontrará uma saída?
Que bicho é
esse que muge em desvalia, sofrido e angustiado, sempre em busca de repouso e
descanso, mas sempre tendo de seguir adiante debaixo de todas as durezas da
vida?
Que bicho é
esse que geme a mais dolorosa das dores, que padece o mais terrível dos
sofrimentos, que se prostrai feito em chagas pelas feridas do dia a dia?
Que bicho é
esse que ruge feito fera bravia perante a selvageria de seu mundo, a
brutalidade das pessoas de seu mundo, a barbárie que se alastra até onde o olho
avistar?
Que bicho é
esse que uiva feito lobo sofrido em cima das montanhas da inexistência, da
incapacidade, da terrível situação de viver sem praticamente existir?
Que bicho é
esse que grita o mais voraz dos gritos, que solta alaridos terrificantes ante a
próxima dor, que brada a sua triste situação com toda a força que já não
possui?
Onde estão os
bichos? Nos pastos, nos escondidos, nas malhadas, nos quintais, nos labirintos,
nas curvas da estrada, por trás dos tufos traiçoeiros dos matos? Não. Não estão
aí.
Os bichos
estão nas grandes e pequenas cidades, pelos arredores do mundo de asfalto e
chão, entre as pessoas comuns da vida, entre as gentes tão cheias de si, entre
todos.
Pasmem, mas os
bichos nasceram de parto humano, possuem geração familiar, são dotados de nome
e sobrenome, possuem corações e sentimentos, pois humanos.
Sim, os bichos
são humanos. Todos humanos, ainda na infância ou já na velhice, mas todos tão
humanos como aquele poderoso encastelado no poder ou sentado em cima do mando.
O bicho tem
identidade com data de nascimento e filiação. O bicho está nas estatísticas da
população. O bicho é um número, mas também pessoa com outra feição: bicho.
Bicho não
nascido assim, porém transformado em tal pela sociedade, pelos poderes, pelos
governantes, por todos nós. Criamos bichos e não os alimentamos, não fornecemos
nem água nem pão, quase não os reconhecemos mais.
Nós, enquanto
partes dessa sociedade desumana e materialista, desse mundo egoísta e cruel,
criamos bichos e lhes negamos dignidade, geramos bichos e lhes recusamos
qualquer reconhecimento humano.
Tais bichos
estão recolhendo restos nos sacos de lixo das calçadas, estão fuçando os
amontoados apodrecidos dos lixões, estão catando latas, papéis, papelões,
pedindo esmolas.
Tais bichos
socialmente criados, eis que adormecem cansados debaixo das marquises, das
paredes nuas, por cima dos bancos das praças, nos becos escuros, em qualquer
lugar.
Bichos
perdidos num mundo de injustas riquezas, de abandonos e crueldades. Crianças de
rua, pedintes, catadores, humilhados, esfarrapados de vida e sonhos, por todo
lugar e tão pertinho de nós.
Aqueles mesmos
bichos citados por Manuel Bandeira em seu famoso poema:
“O Bicho
Vi ontem um
bicho
Na
imundície do pátio
Catando
comida entre os detritos.
Quando
achava alguma coisa,
Não
examinava nem cheirava:
Engolia
com voracidade.
O bicho
não era um cão,
Não era
um gato,
Não era
um rato.
O bicho,
meu Deus, era um homem”.
Os bichos, meu
Deus, são humanos. Não um tigre faminto, uma onça feroz ou uma raposa
carnicenta, mas um homem. Mas parecendo tão perigoso que a maioria da sociedade
foge de sua presença. Que sofrer desse bicho, meu Deus!
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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