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segunda-feira, 14 de novembro de 2016

OS BICHOS

Por *Rangel Alves da Costa

Os bichos, ah os bichos! Esses bichos imundos, sedentos, famintos, cismados, vagantes, solitários, errantes, vorazes, tão bichos.

Bichos, sempre esses bichos fedidos, sebosos, asquerosos, repugnantes. Os bichos e seus cheiros putrefatos, encardidos, mofados, insuportáveis às narinas de muitos.

Os bichos soltos, escondidos, surgidos do nada. De repente vindos das imundícies, dos lixões, dos monturos, dos relentos, dos esgotos, dos canteiros pútridos, das marquises rotas.

Bichos que saltam de seus inexistentes telhados, que despontam de trás de suas portas inexistentes, que se apresentam como vindos do nada para assustar a vida e a todos.

Os bichos, ah os bichos! Bichos que aterrorizam, que fazem temer, que afastam as pessoas, que escandalizam olhos e mentes daqueles que desconhecem suas existências.

Mas que bichos são esses que surgem para confrontar o homem ciente de estar tão longe dos matos, dos monturos, dos quintais, das florestas, dos escondidos de qualquer lugar?

Que bichos são esses assim tão presentes pelas ruas, avenidas, caminhos, morros, favelas, areais, alagados, beirais pantanosos, sobre a terra e o asfalto mais citadino?

A maioria das pessoas, ainda que os conheça e reconheça, insiste em menosprezar sua existência. Tantos outros apenas fingem que não os avistam pelos seus caminhos.

Que bicho é esse que berra com fome e sede, que amanhece e anoitece sem qualquer pão, sem qualquer cuia d’água, sem qualquer certeza de que adiante encontrará uma saída?

Que bicho é esse que muge em desvalia, sofrido e angustiado, sempre em busca de repouso e descanso, mas sempre tendo de seguir adiante debaixo de todas as durezas da vida?

Que bicho é esse que geme a mais dolorosa das dores, que padece o mais terrível dos sofrimentos, que se prostrai feito em chagas pelas feridas do dia a dia?

Que bicho é esse que ruge feito fera bravia perante a selvageria de seu mundo, a brutalidade das pessoas de seu mundo, a barbárie que se alastra até onde o olho avistar?


Que bicho é esse que uiva feito lobo sofrido em cima das montanhas da inexistência, da incapacidade, da terrível situação de viver sem praticamente existir?

Que bicho é esse que grita o mais voraz dos gritos, que solta alaridos terrificantes ante a próxima dor, que brada a sua triste situação com toda a força que já não possui?

Onde estão os bichos? Nos pastos, nos escondidos, nas malhadas, nos quintais, nos labirintos, nas curvas da estrada, por trás dos tufos traiçoeiros dos matos? Não. Não estão aí.

Os bichos estão nas grandes e pequenas cidades, pelos arredores do mundo de asfalto e chão, entre as pessoas comuns da vida, entre as gentes tão cheias de si, entre todos.

Pasmem, mas os bichos nasceram de parto humano, possuem geração familiar, são dotados de nome e sobrenome, possuem corações e sentimentos, pois humanos.

Sim, os bichos são humanos. Todos humanos, ainda na infância ou já na velhice, mas todos tão humanos como aquele poderoso encastelado no poder ou sentado em cima do mando.

O bicho tem identidade com data de nascimento e filiação. O bicho está nas estatísticas da população. O bicho é um número, mas também pessoa com outra feição: bicho.

Bicho não nascido assim, porém transformado em tal pela sociedade, pelos poderes, pelos governantes, por todos nós. Criamos bichos e não os alimentamos, não fornecemos nem água nem pão, quase não os reconhecemos mais.

Nós, enquanto partes dessa sociedade desumana e materialista, desse mundo egoísta e cruel, criamos bichos e lhes negamos dignidade, geramos bichos e lhes recusamos qualquer reconhecimento humano.

Tais bichos estão recolhendo restos nos sacos de lixo das calçadas, estão fuçando os amontoados apodrecidos dos lixões, estão catando latas, papéis, papelões, pedindo esmolas.

Tais bichos socialmente criados, eis que adormecem cansados debaixo das marquises, das paredes nuas, por cima dos bancos das praças, nos becos escuros, em qualquer lugar.

Bichos perdidos num mundo de injustas riquezas, de abandonos e crueldades. Crianças de rua, pedintes, catadores, humilhados, esfarrapados de vida e sonhos, por todo lugar e tão pertinho de nós.

Aqueles mesmos bichos citados por Manuel Bandeira em seu famoso poema: 

“O Bicho

Vi ontem um bicho 
 Na imundície do pátio
 Catando comida entre os detritos.

 Quando achava alguma coisa,
 Não examinava nem cheirava:
 Engolia com voracidade.

 O bicho não era um cão,
 Não era um gato,
 Não era um rato.

 O bicho, meu Deus, era um homem”.

Os bichos, meu Deus, são humanos. Não um tigre faminto, uma onça feroz ou uma raposa carnicenta, mas um homem. Mas parecendo tão perigoso que a maioria da sociedade foge de sua presença. Que sofrer desse bicho, meu Deus!

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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