*Rangel Alves
da Costa
Vidas existem
que vão além do simples existir para se tornarem em verdadeiras poesias. São
diferenciadas por natureza. E é a natureza, no seu contexto humano, geográfico,
histórico e sociológico, que os predispõem a ser diferentes dos demais humanos.
E muitas vezes convivendo no mesmo contexto.
João Guimarães
Rosa foi mestre em cuidar de vidas assim. Alguns de seus personagens, reflexos
de um mundo real e por ele conhecido nas suas andanças pelos sertões e veredas,
são poemas ora líricos, ora trágicos, ou ainda somente poesia. Não apenas o
jagunço, não somente o vaqueiro, não só o valente, mas sempre um ser único com
sua flor e seu espinho.
Euclides da
Cunha, ainda que embrenhado num mundo perigoso e desconhecido, entremeado de
homens brutos e vorazes, fanáticos e sanguinários, ainda assim soube reconhecer
e descrever tais pessoas no contexto de suas próprias tragédias, nas suas
incertezas e destemores. Não descreveu acerca de pessoas que guerreavam, que se
enfrentavam em terríveis batalhas, mas sobre seres humanos transformados na
brutalidade da própria terra e do meio tão hostil. Neste aspecto, é uma
história de seres da natureza e não de homens.
Manoel de
Barros, o poeta do mato e bicho, fez dos pequenos mundos, das pequenas coisas,
dos pequenos seres, uma gestação humana tão profunda que a pedra se
sentimentaliza, o grilo se humaniza, o pássaro faz ninho no coração, o toco e o
garrancho ganham quase que uma espiritualidade. Trata, pois, daquilo somente
avistado pelos olhos que enxergam com poesia, pois espelhando o
sentimento-poema do observador.
Mesmo que se
imagine ser uma pedra bruta, áspera e irracional, o Sargento Getúlio, de João
Ubaldo Ribeiro, é pura poesia. Uma poesia cruel, dramática, afeiçoando-se a
verdadeira tragédia. Sua insensibilidade e crueza nas ações, sua verve violenta
e seus espasmos odientos, nada mais são que a definição do ser em busca de si
mesmo. E, por isso mesmo, uma flor que não aflora por medo de se humanizar
dentro de um coração que, sem desejar revelar, clama por reconhecer-se.
Mesmo a ficção
revela a humanização do personagem. E tão humano se torna que é possível
imaginá-lo pelos caminhos da vida, numa esquina qualquer da existência. As
solidões, as dores, as angústias, as desilusões, os conflitos, as sombras que
nunca se escondem ante a presença de cada um, demonstram bem as realidades tão
conhecidas. Daí que os personagens tristes e amargurados de Dostoievski não se
prendem apenas na ficção, pois traduzem contextos e situações tão conhecidas
por todos. Poesias amargas, mas verdadeiras.
O mundo criado
por Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão e tão envolto em imaginários
e fantasias, mas também selvagem e voraz como sua Macondo e seus arredores. As
gerações dos Buendía que nascem, crescem e vão se cruzando, traduzem conflitos
amorosos e familiares tão humanos quanto os vivenciados no mundo real. Mas é o
impossível se tornando verossímil, como num drama transformado em doce poema,
que faz refletir sobre a normalidade em tudo que possa existir. Como a nudez
inocente da bela Remedios e as borboletas que entram pela janela e transformam
tudo em magias e sonhos.
Também Jorge
Amado tornou poesia sua vasta obra. Não há como não avistar versos de dores, de
amores, de alegrias e sofrimentos, em cada página. Sim, aqueles meninos da
beira do cais existem por todo lugar. Aquelas donzelas sonhadoras ainda se
perfumam e se penteiam para janelas de impossíveis amores. Aquelas moças belas,
agrestinas, com pele de jambo, corações caboclos e corpos ardentes, igualmente
persistem em muitos lugares, em muitas ruas e muitas memórias. Nem mesmo as
vinditas coronelistas deixam de ser rudes e sangrentas poesias. Também as
crenças, os santos, os orixás e as ladeiras negras lavadas de suor e açoite.
Mas aqui
pertinho de mim, no meu mundo sertanejo, existem vidas que são as poesias mais
originais que possam existir. Todas nascidas em pessoas simples, humildes,
autenticamente sertanejas. Pessoas que moram pelos rincões, nos afastados das
roças e pequenas propriedades, nas beiras de estradas, em casebres de cipó e
barro, em pequenas moradias de janela e porta. E ao redor de um mundo encantado
e encantador.
A poesia em
João, em Maria, em José, em Bastiana, em Antônio. A poesia que calça roló
endurecido de tempo, que usa chapéu de couro, que acorda antes de o galo cantar
e faz do suor um alimento da alma. Uma poesia em mãos rudes, calejadas,
acostumadas em catar lenha para o fogo de barro, em debulhar feijão quando o
tempo é bom, em fazer cafuné na cabeça do filho mais novo. Uma poesia ao tocar
o rosário de contar, ao acender a vela e o candeeiro, ao se unir em prece para
o Deus, os santos e anjos da salvação.
É esta poesia
que verseja na estrofe mais forte. Não há noite nem lua nostálgica, mas tudo de
descanso e repouso para a luta do dia seguinte. Não há flor ou jardim que não
se pareça como miragem no esturricado chão. Mas em cada ser um poeta, com sua
pena de cabo de enxada ou caderno aberto na terra esperando semente.
Escritor
Membro da
Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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