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quinta-feira, 14 de novembro de 2019

RELÓGIO SERTANEJO (OU O TEMPO AO MODO DO HOMEM)

*Rangel Alves da Costa

O sertão possui o seu tempo próprio. O seu calendário é o das estações, dos períodos mais chuvosos ou menos chuvosos, dos meses ou anos mais secos ou de menor estiagem. Bem assim o seu vivente, o sertanejo. Cada homem da terra igualmente possui seu próprio relógio. Que se diga também que o seu amanhecer é num tempo diferenciado, que seu meio-dia possui hora certa para chegar, que o seu entardecer e anoitecer é de outra marcação no ponteiro.
Não adianta que digam que tudo deve ser feito segundo o horário oficial. Não adianta que digam que a noite vai das dezoito horas até a madrugada, e que esta se prolonga até o alvorecer. Será perda de tempo dizer a hora que se deve deitar e acordar ou o instante certo do café da amanhã, do almoço ou do jantar. Até porque em grande parte do sertão não há essa história de café da manhã ou muito menos de desjejum nem de almoço, lanche ou café da noite ou jantar, pois tudo comida. E a hora da comida é qualquer hora, segundo o relógio sertanejo.
Galinha sobe ao poleiro na hora que se cansa de ciscar, põe seus ovos na hora que bem deseja e desce para novamente ciscar a qualquer instante do alvorecer. Não tem essa história de esperar o galo cantar de jeito nenhum. E quem canta primeiro, antes mesmo do galo e do sino da igrejinha, é a porta de trás de cada casa cabocla. Quando a porta range se abrindo é por que o sertanejo já acordou e já levantou, ainda que pelos arredores e matarias ainda esteja tudo escurecido demais.
Até a natureza sertaneja não está nem aí para essa coisa de horário marcado. Quando noutros lugares está tudo escuridão, o céu sertanejo apresenta cores e barras avermelhadas que muito dizem sobre as secas e as chuvaradas. A mata silencia durante o dia e murmureja e até grita depois da boca da noite. Também o pôr do sol é mais tardio e mais prolongado. O braseiro do fogão de lenha já está se tornando em cinzas e lá em cima, por detrás das serras, ainda o braseiro do sol se esvaindo em sua última chama. Mas a lua já apareceu. E assim por que o luar do sertão é tão grande e fulgurante que logo se cansa e vai embora antes mesmo de o homem acordar. Por isso que ele acorda numa inexatidão de cor nos espaços.


Quando se diz que no sertão o tempo é marcado pelo compasso do homem, sempre será no sentido de afirmar que tudo acontece perante a necessidade de acontecer. Como as necessidades são sempre grandes, então o sertanejo apressa o seu tempo para ajustá-lo ao que deva ser feito. Daí os dias parecerem mais longos e os noturnos muito mais estreitos. Por lá não existe essa história de um repouso de oito horas. Dorme-se apenas o tantinho para descansar e depois já se levanta num pulo. Por isso mesmo que o sertanejo já está em pé antes mesmo dos bichos do quintal e da mataria.
No sertão, tarde da noite já é madrugada aberta. E assim porque a contagem do tempo respeita outra ordem, outro desejo do homem da terra. Hora do café da noite é no mais tardar às cinco da tarde. Seis da noite o prato já foi lavado, tudo já foi arrumado, só faltando pouco tempo para apagar o candeeiro. De seis horas em diante já é hora de deitar, e muita gente deita mesmo a partir desse instante. Com tudo já sombreado, no breu da noite, não há motivação alguma de continuar perambulando por ali ou acolá.
Somente quando é noite de lua cheia é que o sertanejo se demora mais um tiquinho. De vez em quando lança mão da viola de pinho e ecoa uma moda lamentosa demais. É quando uma pinguinha é levada à boca e mais um acorde ou outro para fechar o dia. Às oito da noite já não resta nenhuma porta aberta. Todo mundo já dorme, já busca seu prazer, já sonha com um mundo melhor. Quando já está tarde da noite somente os grilos fazem festa, os gatos soltam seus gemidos, as almas penadas vagam sem ninguém encontrar.
Quando a madrugada chega já é hora de acordar pra muita gente. Antes mesmo que o galo cante muito sertanejo tá ajeitando seu aió ou embornal para sair pelo mundo, pelo meio do tempo no seu afazer de todo dia. Mexe pelos cantos da casa, procura os apetrechos dos ofícios, bate aqui e bate acolá, desenferruja o que desde muito estava guardado. Depois vira um gole de café, joga na boca um punhado de farinha seca e tudo já está pronto para ser começado. Assim todo santo dia, assim na hora e relógio da precisão sertaneja.
Mas nem é todo sertão é assim. Somente nas distâncias matutas, no sertão sertanejo de vera, como se chama por lá toda a verdade existente.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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