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quinta-feira, 23 de março de 2017

MEMÓRIAS DO PUTEIRO

*Rangel Alves da Costa

Agora apenas uma luz apagada. Aqueles afastados do centro da cidade não mais ficam iluminados pela luz vermelha anunciando o puteiro, dizendo que ali a feira do sexo, da carne, do pecado, da busca e da entrega. Buscando em Jorge Amado uma descrição, ali os xibius em flor procuram jardineiros ávidos para despetalar prazeres fingidos. Xoxotas a preço de cesto de mangas e priquitas a custo de banana de fim de feira.

Nunca foi de ostentação. Sempre uma ambientação simples como o próprio lugar onde estava instalado. Não havia falsas francesas de línguas enroladas nem virgens disputadas entre os mais endinheirados. Tudo que chegava ali já era gado de outros pastos, de outros matadouros, fazendo vida noutros cabarés ou mesmo nas traições conjugais ou nos escondidos das famílias.

Mas todas de cabaré, desde a mais novinha a mais velha de todas elas. Algumas mais novas tentavam manter seus status de seriedade a todo custo. Sempre repetiam que na cidade ninguém sabia que faziam vida. Chegavam pelos fundos e se escondiam entre batons e carregadas pinturas. A cada cliente pediam por tudo na vida que não espalhasse aos quatro cantos que abria as pernas em troca de vintém. Mas não adiantava. Onde passava todo mundo avistava a puta, jamais a mulher.

E as motivações para tal? Ao ouvi-las, não raro que surgissem reflexões além daquela realidade. Uma havia sido flagrada pelo marido em ato de traição e daí em diante acostumou na putaria. Outra foi desvirginada à força pelo capataz da fazenda e depois jogada pela família no meio do mundo, então não encontrou outra coisa a fazer senão bater às portas de cabaré. Já outra sempre afirmava que vivia muito triste com a vida que levava, pois era moça séria e de respeito, mas uma força desconhecida a jogava em qualquer cama e já de pernas abertas.


Contudo, em algumas havia também um realismo mais que aflorado. Uma dizia que gostava de homem mesmo, que dava o xibiu por que gostava de trepar mesmo. Outra dizia que foi acostumando com a safadeza e de repente já nem se importava mais que fosse chamada de puta de cabaré. Ao que outra dizia: Tenho uma profissão e minha profissão é ser puta. Encaixo macho, boto dentro homem, lido com todo tipo de coisa mole e dura. Não é trabalho fácil não. E o pior de tudo é que já não sinto prazer algum e o que ganho nem dá pra ser uma puta sequer arrumada.

Assim naquele puteiro antigo. Ao menos assim no passado, pois tais depoimentos já não fazem parte das mulheres que vivem sua realidade. Algumas sumiram, muitas rumaram pelas estradas em busca de outros puteiros igualmente chinfrins, outras fecharam o tacho por absoluta falta de quem quisesse se lambuzar em restos malcheirosos e engilhados. As putas de hoje são umas quengas velhas que ainda continuam na lide por absoluto saudosismo, mas quase sem clientes. De vez em quando um bêbado, um velho afogueado, um viajante desconhecedor daquele resto de feira.

Ao longe se avista apenas a casa carcomida de tempo. Já de perto e porta adentro, apenas os restos daquilo que um dia foi de farta clientela. Que ambiente mais sombrio e triste. Na velha vitrola um bolero antigo, melancólico, choroso demais. Cheiro de limão e aguardente pelo ar, um aroma mofado de sexo encardido e suarento. Pelos cantos e escondidos, como se fantasmas nus, de bocas lânguidas e corpos cansados de entrega, buscassem nas camas imundas seus últimos refúgios de qualquer prazer.

Apenas um arremedo de cabaré. O velho puteiro agora não passava de escombros. Depois das guerras e batalhas de corpos baratos em refregas, depois das sedes embriagadas e dos gozos fingidos, agora apenas um puteiro em escombros, em entulhos de malcheirosas lembranças, em retalhos apodrecidos de corpos lamacentos da ilusão do prazer. As pulgas ainda povoam as camas, os ácaros estão por todo lugar, há respingos de sangue que jamais se apagam, há ainda um falso gemido nas noites fantasmas.

Aproximar-se de uma mesa num canto é a certeza de encontrar uma velha quenga chorosa e embriagada. Diante de si um copo de aguardente misturada com refrigerante e uma carteira barata de cigarros já chegando ao fim. Numa mão segura o cigarro e com a outra leva o copo à boca. Usa um bato vermelho que se espalha muito além dos lábios. Um pó avermelhado tenta dar alguma cor ao rosto murcho e enrugado. Não tem brilho algum nos olhos, nem por fora nem por dentro, apenas um olhar perdido em lembranças ébrias.

Nunca mais teve qualquer cliente. Também tanto faz, segundo diz. Continua por ali apenas como uma vigilante de um cemitério maldito e abandonado. Diariamente convive com fantasmas do passado, mas também com alguma lembrança boa de quando era mais jovem. Chega senta no mesmo lugar e pede a mesma bebida. Bebe avidamente e ouve bolero antigo. Mas não há mais bebida nem bolero, apenas a velha puta nos seus idílios de sofrimento e solidão.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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