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terça-feira, 1 de setembro de 2015

O CONTRASTE DO CANGAÇO NO CAMINHO DO SERTÃO

Por Regina Santana (nhyna19@gmail.com) e Victória Damasceno (damascenovictoria@gmail.com)

O clima frio da capital paulista nos afasta da quente e seca realidade dos sertões nordestinos. Pensar em sertão traz à mente o cenário mostrado por Graciliano Ramos em “Vidas Secas”, cujas duras condições levam à animalização do homem. Se a arte imita a vida, esta certamente ilustrou bem o Nordeste de outros tempos – nem tão longínquos assim – em que a fome e a seca assolavam a população e, no chão rachado da Caatinga, justiça era feita à ferro, fogo e sangue. É nesse contexto que se viu surgir, da canga presa ao pescoço dos bois que transportavam seus pertences e armas, os cangaceiros correndo às matas em suas vestes de couro. São a prova viva da resistência, da representação da cultura sertaneja, e que ao mesmo tempo foram figuras ambíguas, ora heróis, ora vilões.
“Hoje em dia até que tá melhor, mas na minha época [a vida no sertão] era muito difícil. A gente trabalhou de meeiro, sabe? Plantar na terra do outro pra ter o que comer não é bom, não”. Assim conta, de forma simples, Francisco de Assis Santana, de 56 anos, cuja vida poderia estar descrita nas páginas de Graciliano, nas obras de Guimarães Rosa ou nas canções de Luiz Gonzaga.

Agricultor cercando cabras e casa com cisterna no sertão, cena comum na região. (Foto: Palê Zuppani/FotoNatural)

Nascido e criado em São Miguel, no interior do Rio Grande do Norte, Francisco só conheceu São Paulo aos 18 anos, quando saiu com os irmãos da cidade onde morava em busca de melhores condições de vida. Sua infância não foi muito diferente da de milhões de nordestinos, que, desde muito cedo, já conheciam as dificuldades da vida sertaneja. Quando perguntado a respeito dos estudos, Francisco, muito sério, responde: “Não tive muito não. Até a quarta ou quinta série, eu acho. Ou a gente trabalhava ou estudava.”

Ele lembra de sua infância na Caatinga com certo amargor. Não eram apenas as dívidas com os donos de terra que incomodavam. Alimentação, moradia, vestimenta, tudo era conseguido por intermédio de coronéis, que possuíam grande parte do comércio da região. Francisco há muito não trabalha no campo, mas sabe que por lá, onde nasceu, esse estilo de vida era exatamente como no tempo de seu pai e avô. “Quem manda não somos nós”, ele diz, o que prevalece é “a lei do mais rico”.

As condições precárias de vida, o duro trabalho no campo e a incerteza do futuro não marcaram apenas a vida de Francisco, mas de gerações inteiras. A forte presença do coronelismo na República Velha (1889-1930) modificou as relações de trabalho e as estruturas sociais brasileiras, que se estenderam por muitos anos até a chegada da indústria no País. Enquanto nas grandes metrópoles a vida política e econômica crescia a todo vapor, nas áreas rurais parecia engessada no modelo semifeudal de vínculo com a terra, propiciando, assim como nas cidades, a exploração das classes mais pobres. No interior do Nordeste, onde o analfabetismo era muito presente, essa condição de exploração se tornava ainda mais evidente.

Perguntado se se lembra de alguma figura marcante na cultura nordestina que tenha lutado por mudanças sociais que quebrassem essa lógica de exploração, Francisco diz: “Assim, desse jeito, não lembro. Mas tinha o Lampião, que a gente ouvia os antigos falarem muito. Ele não era ‘ do bem’ mas ajudava a diminuir um pouco a injustiça”.

Mesmo 77 anos após sua morte, o famoso cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, ainda é figura recorrente no imaginário social no que tange ao Cangaço. Foi o grande líder do bando fora-da-lei, que impunha medo aos inimigos e respeito por parte da população.

Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, em Juazeiro do Norte (CE), em 1926. (Foto: Lauro Cabral de Oliveira)

Oriundos do descaso dos governantes e do monopólio dos coronéis locais, os primeiros cangaceiros eram vaqueiros, lavradores e sertanejos que buscavam ascensão social e, principalmente, vingança. Equipados com cangas de madeira e utensílios de aço corriam as matas cortantes da Caatinga, pilhando comércios e trens, invadindo grandes fazendas e, quase sempre, confrontando seus inimigos. O que hoje é considerado um movimento social, na época, era um modo de vida alternativo para aqueles que não mais aceitavam se subordinar à hierarquia do sertão nordestino. Para o professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Carlos Tadeu Melo Botelho, “O cangaceiro era uma espécie de herói ambíguo. Eles não lutavam contra o governo em geral, lutavam contra autoridades locais, contra a perseguição direita às famílias deles, mas não tinham um projeto de modificação social”, afirma.

Entrar para o cangaço era uma forma de sobreviver à perseguição dos mais poderosos. Fazer parte do movimento significava a mudança da identidade social, a ponto de não mais poder voltar a ser um pacato fazendeiro. Nas palavras de Tadeu: “eles eram cangaceiros até a morte”. Não podiam existir em outro lugar que não ali, pois faziam parte daquela sociedade e dela eram fruto.

O espectro dos membros era muito variado, o que não garantia uma unidade de comportamento e propiciava divergência de interesses.  Em comum, tinham a legitimidade da cultura – as vestes típicas, a linguagem e os mitos –  e seus códigos de honra, que definiam a organização interna. Tadeu conta que, por serem frutos daquela sociedade, seus comportamentos e costumes também pertenciam àquele meio. “A conduta moral, o comportamento sexual, a religiosidade, tudo isso aparece representado de uma forma muito próxima ao povo deles. O cangaceiro não cai de paraquedas ali, ele não chega no sertão como muita gente chega na favela. Ali é o lugar dele. ”

Ilustração que retrata o cangaceiro Antônio Silvino, a primeira grande liderança do cangaço, que chegou a receber a alcunha de “governador do sertão”. (Fonte: onordeste.com/Reprodução)


Existe uma dualidade no imaginário popular quando o assunto é o cangaço: ora são subversores da ordem social, ora são heroificados. Muitas vezes, o paralelo com o herói que tirava dos ricos para dar aos pobres, Robin Hood, emerge nesta história. Mas nisso Lampião fica para trás. Quem se sobressai neste quesito é aquele que o antecedeu na liderança do cangaço, o bandoleiro Antônio Silvino, conhecido também como governador do sertão. Tadeu recorda-se do estudo sobre o bandoleiro de autoria da professora Linda Lewin, da Universidade da Califórnia, no qual afirma que os atos de Silvino eram muito mais robinhoodianos. “Estudando o cangaço, ela chegou à conclusão de que a semelhança com Robin Hood não era de Lampião, mas de Antônio Silvino. Ele usou a prática redistributiva: grilava trens e dividia o que tinha dentro com a população, como uma forma de agradar, esperando que assim o aceitassem.”

Lampião também dividia sua grilagem com a população local, mas sua prática era mais visceral. Tadeu afirma que o bando de Lampião era marcado pelo conflito e pela crueldade. “Não eram progressistas. Eles destruíam tudo aquilo que pudesse ser fator de perseguição.” Assim, enquanto apresentava uma face solidária, não deixava de expor seu lado sanguinário. “Sua imagem é ambígua. Lampião era o bem e o mal. Num ato de justiça estava embutida a injustiça. Ele é uma prova de que o bem e o mal não existem em estado puro. As coisas que ele fazia eram completamente ambíguas”, completa. Entretanto, o professor ressalta que não se pode ver o Cangaço como uma luta de classes. Ainda que trouxessem benefícios para as comunidades locais, suas ações não tinham qualquer intenção de revolucionar as estruturas socais de poder ou tornar o Nordeste uma região mais justa.

Com Lampião a realidade do cangaço também mudou em sua estética. Além das marcas características, foram incluídos adereços e indumentárias em suas roupas, reforçando ainda mais a hierarquia entre eles. “Quanto mais enfeitado, mais poderoso era o cangaceiro”, afirma Tadeu. Essa mudança na imagem não veio à toa, mas com a inserção das mulheres no bando. “Isso ocorreu na época de Lampião, pois de 1870 até 1928, ou seja, 80% do tempo de cangaço, não haviam esses enfeites. Mas com a entrada das mulheres em 1928, Dadá, Maria Bonita, os cangaceiros passam a se enfeitar e isso passa a ser um reflexo da hierarquia”.

Embora sua presença tenha alterado a imagem representativa dos cangaceiros, as mulheres eram inferiorizadas nas relações de poderes. Com exceção de Dadá e Maria Bonita – esposas de grandes líderes – que chegaram a atuar diretamente como cangaceiras, boa parte das mulheres do bando foram raptadas de suas famílias unicamente para servir aos interesses do grupo.  “O machismo dominava a cultura. Houve alguns assassinatos de mulheres dentro do cangaço, dois muito conhecidos por adultério. E apesar de terem sido violentos, as mulheres que assistiram as outras serem assassinadas concordaram.”

Corisco, o primeiro à esquerda, tendo ao seu lado a companheira Dadá e integrantes do seu grupo, em 1936. (Foto: Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm)

No meio do bando, entre enfeites, mulheres e liderança, Lampião pensava muito bem em como desenvolveria a organização do grupo para que alcançasse todos os seus objetivos. Para o professor Tadeu, de todas as características de Lampião, a principal era ser um grande estrategista. Os documentos históricos provam sua valentia ao ir de encontro à polícia e travar  batalhas sempre com muita precisão na condução da artilharia.

Durante os anos em que existiu, a vida cangaceira foi marcada pelo uso da violência e dos atos ilícitos, bem como pelo constante confronto com as autoridades. A pesquisa histórica revela um cenário repleto de ações criminosas e atrozes, incompreensíveis à primeira vista. Quando olhadas de fora, trazem o julgamento a priori dos cangaceiros como bandidos iguais a todos os outros. É preciso, no entanto, o olhar atento: o banditismo faz parte de uma relação bilateral entre indivíduo e sociedade e aparece como efeito colateral a uma série de desajustes. O cangaço está enraizado no cultura nordestina – seja como movimento social ou como parte do imaginário – e também cumpre a função de construir a identidade daquele povo e, de certa forma, dar unidade à sua história. Daí a ligação intrínseca entre a memória constituída por esses relatos e a atribuição de valores heroicos.

Para Tadeu Botelho, “Lampião era herói ou bandido?” é uma pergunta meio falsa. “Como dizia Guimarães Rosa: não existem heróis de se pegar. O herói é uma criação do imaginário popular”, completa. Ainda que sua imagem esteja atrelada à violência, a memória do cangaceiro também compõe um quadro muito mais amplo, que diz respeito à afirmação identitária e representatividade. O nordestino não necessariamente apoia a violência quando se identifica com o cangaceiro; ele vê não apenas a história de Lampião retratada nas obras, mas a sua própria herança cultural.

Maria Bonita, Lampião e seu bando em 1936. (Foto: Benjamin Abrahão)

A imagem do cangaceiro mais famoso das terras sertanejas carrega em si o paradoxo que o permite ser quem ele é. Enquanto ajudava sua gente, estava igualmente disposto a fertilizar a terra seca com o sangue de seus inimigos. Se herói ou vilão, não importa. A personagem viva no imaginário popular floresce o sentimento de medo e gratidão, que permite não somente a ele, mas aos reis do cangaço, a imortalidade na cultura popular nordestina.

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