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quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A VISITA DO REI AO REINO DE ZÉ-NINGUÉM

Por Rangel Alves da Costa*

Não há nada mais difícil para um rei que deixar seu castelo para visitar a plebe, a vassalagem, a pobreza. Evita entrar em contato direto com seus súditos principalmente por medo de ter jogada sobre sua coroa toda a culpa pela miséria existente. Vai que de repente encontra alguém que ouse lhe dizer umas verdades, então a coisa será complicada.

E complicada porque o próprio rei reconhece as fragilidades e a ineficácia de seu reinado. Mas jamais admitirá qualquer erro ou culpa porque não pode demonstrar fraqueza perante os seus comandados nem dar motivações para críticas aos seus opositores. Por força de sua coroa terá de ter reconhecido seu poder e sua administração, e esta devidamente recoberta de flores por cima de lamaçais.

Ademais, para que seu rei não seja contrariado ou tenha que estar relembrando as sujeiras que se acumulam debaixo dos tapetes do reino, criou-se um consenso entre os serviçais da corte no sentido de falar somente acerca das maravilhas existentes, mesmo nas mazelas e nos absurdos. O problema é repassar para a população cada vez mais pobre e sofrida, descontente e esquecida, toda uma idealização de bonança do reino.

Reconhecendo o descontentamento do povo, e principalmente porque não demorará muito para aumentar os impostos e criar outras taxas para manutenção da cozinha real, o rei sabe da urgente necessidade de se aproximar das camadas populares e assim evitar consequências maiores. Ao menos não será acusado de reinar por trás dos muros do castelo e abandonar de vez as classes empobrecidas.

Mesmo na distância que exige manter, conhece muito bem os súditos que tem. Sabe que basta acenar-lhes de longe, enviar mensalmente uma esmola e um punhado de alfafa, e o povo logo esquecerá que continua sendo enganado e que permanecerá na miséria mais degradante. Além disso, tem perfeita ciência que é sempre mais fácil escravizar aquele que imagina estar sendo respeitado e valorizado pelo seu governante. E o rei precisa que continuem assim, silenciosos e submissos.

Não apenas no silêncio dos impotentes, mas principalmente na sua total fragilidade, de pensamento e de ação, pois somente assim o rei poderá colocar em prática, e sem qualquer contestação popular, seus planos para trazer para si ainda mais poderes, reinar sem limitações e continuar nada fazendo em nome do povo. Isso mesmo, nada fazendo e ainda assim sendo lembrado como verdadeiro deus dos miseráveis.


Mas eis que diante das pretensões e de objetivos outros, precisa urgentemente fazer aquilo que mais abomina: se aproximar do povo, ter diante de si a pobreza em pessoa. Dói-lhe avistar a gentalha, se aproximar da miséria, avistar a penúria submissa e feia, raquítica e desdentada. Sente verdadeiro asco fazer luzir seus anéis dourados diante de mãos rudes e maltratadas. Verdade que usa mais de cem pares de luvas a cada visita, trocando uma após outra toda vez que tem de pegar nalguma mão lanhada pela dureza do ofício.

E vai o rei para a sua árdua tarefa, transmudar-se em gente de carne e osso e visitar outro reino, só que um reinado muito diferente e escondido nas brenhas do seu império maior. Ali é o reinado dos esquecidos, dos excluídos, dos miseráveis, dos tratados a esmola e tostão enviados pelo próprio rei. Ali quem reina é o zé-ninguém, rei maior e absoluto de um mundo que parece impossível de existir nas entranhas do grande império. Mas existe.

E existe com tamanha veemência que até o rei que acostumou a ouvir - e ele mesmo propagar em alto e bom som - não existir nada assim tão empobrecido e abandonado, tentou por diversas vezes não olhar diretamente para as entranhas daquele reino de zé-ninguém. E evitava olhar para não ter dificuldade de reconhecer entre bicho e gente, para não mirar barracos quase desabando por cima de meninos magricelas e barrigudinhos, para que seu olhar real não se ferisse com imagens tão degradantes. Mas teve de mirar aquele reino e sua vida e pensou estar enlouquecendo.

Assustado, o rei perguntou ao ajudante real se aquilo tudo era verdade. E se era verdadeiro, o porquê de não ser devidamente informado sobre as condições de vida e de existência daquele reino. Então ouviu ter sido a própria alteza que havia afirmado não querer mais saber de pobreza nem de degradação social, e estaria fora do poder todo aquele que abrisse a boca para dizer que a miséria absoluta não havia sido eliminada.

Agora envergonhado, o rei baixou a cabeça e só a levantou quando anunciaram que um dos habitantes do reino de zé-ninguém lhe estendia a mão. Rapidamente percebeu que havia esquecido de colocar as luvas e se viu sem saber o que fazer. E fato inusitado aconteceu. O rei estendeu a mão, mas não para apertar a outra mão, mas sim para apontar para o alto e dizer que nunca havia visto um céu tão maravilhoso como o existente ali.

E depois de prometer o paraíso retornou ao seu palácio. E a primeira atitude que tomou foi chamar o ajudante real para dizer que esquecessem o reino de zé-ninguém. E fosse anunciar do alto da torre que a miséria havia sido derrotada de uma vez por todas.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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Lampião e outras histórias - O OUTRO LAMPIÃO

Por Doizinho Quental

 

O verdadeiro Lampião, inquestionavelmente, existiu, fruto da sanha perversa e má das injustiças sociais que, até hoje, infelizmente, ainda assola o nosso sertão nordestino.

Os historiadores também tentam, a todo custo, retratar o mais fielmente possível este Lampião, sem, contudo, em muitas situações, chegarem a um acordo quanto a fatos importantíssimos de sua vida.

Uns retrataram o rei do cangaço como um homem digno e justo, amável e condescendente, como no livro “Lampião, Seu Tempo e Seu Reinado” do padre Frederico Bezerra Maciel. Outros, como no livro “Serrote Preto” de Cícero Rodrigues de Carvalho”, pintaram o maior cangaceiro de todos os tempos, como  um vingador cruel, desumano, assassino e desordeiro; um verdadeiro Lúcifer, com rabo e  chifre.

Contudo, e o mais importante, é que todos chegaram a um consenso: para que outros Lampiões não surjam no Nordeste, é necessário e impreterível, que a Nação dê condições sociais dignas e justas a nossa gente que é, sem dúvida nenhuma, inteligente, criativa e boa por natureza.

Porém, nos fixamos mais no Lampião que o nosso povo simples, com o seu esplendor imaginário, criou através dos tempos. Em nossa opinião, seria um crime hediondo matar este herói fruto do fervilhamento da imaginação popular. Aliás, a cultura deve ser muito democrática, pois sendo fruto natural e espontâneo de um povo, a ele mesmo deve pertencer, sem nenhum impedimento.

Baseado neste contexto, resolvemos introduzir em nosso livro a ficção inteligente e hilariante da verve nordestina, através dos seus mais legítimos representantes; os poetas cordelistas.

FIM

FONTES DE PESQUISA
    
Além das fontes referentes aos livros sobre Lampião, acrescentar estas abaixo:
  
1 – Cangaceiros Coiteiros e Volantes de José Anderson Nascimento. 
2 -  Território dos Coronéis - de Alberto Galeno 
3 -  Revista Fatos & Fotos – Abril de 1970  


www.kantabrasil.com.br/Lampiao.../Lampião%20e%20outras%20Históri...‎

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Saudades de Raibrito

Por Lívio Oliveira

Em 27 de novembro de 2013 se passou o primeiro ano da despedida de Raimundo Soares de Brito deste mundo terreno. A minha homenagem, então, pode estar um pouco atrasada em face da efeméride, mas não com sentimento menor, principalmente porque tive o prazer de conhecer aquele importante nome da intelectualidade potiguar e privar de algumas de suas sábias palavras, em confiante e estimulante diálogo. Os que conheceram o seu trabalho – desenvolvido durante anos ininterruptos – sabem que Raibrito foi um expoente da historiografia no nosso Rio Grande do Norte. Uma conversa por entre os seus milhares de documentos configurava sempre uma experiência criativa, rica, viva e empolgante, com absorção de saberes angariados no tempo realizador de sua vida.

Tive o imenso prazer de encontrá-lo pela primeira vez, alguns anos atrás, em sua casa na rua Henry Koster, número 23, endereço que já chamava atenção pela importância histórica do topônimo, bem descrito na obra Ruas e Patronos de Mossoró, importante livro – em dois volumes – escrito por Raibrito e publicado na famosa Coleção Mossoroense. Naquela ocasião, estive na sua residência em companhia dos escritores Cláuder Arcanjo, David Leite e José Nicodemos, além de Misherlany Gouthier, firme colaborador à época. Alguns meses depois, haveria uma nova visita à qual se associariam os amigos Antônio Capistrano e Leonardo Guerra, juntamente com boa gente da Petrobrás, responsável pelos trabalhos de digitalização e divulgação eletrônica dos documentos, levando à criação de uma Biblioteca Virtual Raimundo Soares de Brito. Numa terceira visita, estivemos eu e Antônio Capistrano, grande amigo, grande camarada, parceiro e mestre em jornadas culturais.

Naquelas oportunidades presenciei a busca obcecada de um homem em realizar uma obra imaterial importantíssima: contar a história de sua terra, de seu povo, sua gente, destinando-a à consulta pública. Sua generosidade imensa o fazia compartilhar aquela riqueza com os interessados. Passeei por ela, entre os seus livros e documentos, estasiado com o notável frescor da inteligência do seu formador – apesar dos tons e aspectos esmaecidos dos papéis e objetos antigos, no amplo acervo de humanidades.

Livros, fotos, documentos de toda espécie e a voz do homem que narrava – como num tema cinematográfico – a sua própria história de vida e de como havia trabalhado tantos anos na coleta e organização de todas aquelas peças. Pude entender sua obsessão. Descobri que o sentido de sua vida, dedicado que sempre foi em entender e “radiografar” os outros homens, era a busca da essencialidade do próprio ser-no-mundo. A curiosidade imensa, a labuta incessante – como a de um escultor talhando uma obra-prima – eu as vi em Raibrito. Um olhar feliz, realizado, satisfeito. Olhar de quem foi parceiro e não inimigo do tempo e construiu, dia a dia, um retrato exato e profundo da humanidade.

Raimundo Soares de Brito nasceu em Caraúbas, mas o Rio Grande do Norte era e é a sua dimensão mínima, além, muito além das fronteiras de sua terra escolhida, Mossoró. Só mesmo um pesquisador de sua marca e estirpe para entrar nos complexos caminhos investigativos que trilhou. Buscou pistas que levavam sempre a soluções. Conhecer a alma do homem, fazer o retrato do homem e de sua terra, no correr dos anos, dos séculos, nas voltas do mundo sobre seu eixo: eis o trajeto que seguia. Sua hemeroteca se afirmava, assim – não há dúvidas –, como um organismo vivo, sempre alimentado como se alimenta um filho, para que se fortaleça e viva. Coalhada de papéis, papel dos livros a preencherem estantes, papel das cartas e documentos diversos, suas pastas de recortes de jornais, e o cheiro de vida. Fiquei feliz em saber que o seu acervo deverá ser preservado, segundo notícia que nos dá o Professor Antônio Marcos de Oliveira, parente dileto do homenageado: “Compreendemos a importância do acervo de Raibrito, um bem privado, mas de interesse público, que precisa ser preservado.” Assim seja, por ser de inestimável valor.


Enviado pelo pesquisador do cangaço José Edilson de Albuquerque Guimarães Segundo

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