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sábado, 27 de julho de 2013

Notas sobre a arborização da avenida professor Antônio Campos e Silva

Por José Romero Araújo Cardoso

Geógrafo de formação acadêmica, naturalista por convicção, professor Antônio Campos e Silva escreveu a quatro mãos com o renomado pesquisador potiguar Jerônimo Vingt-un Rosado Maia clássicos da literatura científica, a exemplo do enfoque memorável ao francês Louis Jacques Brunet.

Ser humano magistral, de origem humilde, nascido no adusto Seridó norte-riograndense, em Currais Novos, Antônio Campos notabilizou-se pelo amor às letras, pelo contato direto com as ciências naturais, com a geografia, com a paleontologia e uma infinidade de interesses que o imortalizaram como um grande estudioso, sobretudo das condições apresentadas pelo semiárido nordestino.

O trágico acidente que lhe ceifou a vida, ocorrido na década de setenta do século passado, entre Felipe Guerra e Apodi, apagou um talento indescritível. Vingt-un Rosado lamentou até seu encantamento a perda do grande amigo, do notável cientista de inteligência privilegiada que foi desprezado nas plagas da capital potiguar, mas que teve seus méritos reconhecidos na terra da liberdade, sagrada terra de Santa Luzia do Mossoró.
          
Foi de Vingt-un Rosado a solicitação para que a Antônio Campos se tornasse patrono da avenida universitária, a qual divide no sentido norte-sul a Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) da Universidade Federal Rural do Semiárido (UFERSA).
          
Com certeza absoluta, Vingt-un Rosado e Antônio Campos e Silva aprovariam a decisão louvável da Prefeitura Municipal de Mossoró de implementar a arborização da avenida universitária. Os dois saudosos cientistas foram intransigentes defensores da preservação da flora e da fauna do semiárido. Foram dois ecologistas que contribuíram de forma significativa para o estudo do meio ambiente do sertão nordestino, incluindo neste as árvores e os animais.
         
Plantas nativas das caatingas sertanejas estão sendo fincadas no capeamento sedimentar que recobre o calcário jandaíra, ambos presentes na avenida professor Antônio Campos, cumprindo-se dessa forma diretrizes contidas no Plano Diretor do Município de Mossoró.
          
Mossoró se destaca pelas condições climáticas peculiares ao semiárido, com intensas insolação e evaporação, razão pela qual reflorestar áreas urbanas com espécies nativas das caatingas significa enfatizar bases ecológicas que permitirão melhor convivência do homem sertanejo com as características adversas apresentadas pela região na qual o município está inserido.
          
Formar pontos de satisfação que no futuro se responsabilizarão pela estruturação de melhores condições a quem se destina à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e aos núcleos habitacionais situados a leste é decisão que merece todos os aplausos.
          
Mas não basta apenas contemplar as mudas plantadas na avenida professor Antônio Campos e Silva. Cabe a cada um de nós zelar pela integridade dos exemplares nativos da nossa flora tão ameaçada de extinção. Vigilância e amor aos nossos irmãos vegetais são condições sine qua non para o sucesso desse belo exemplo de amor à natureza
          
O meio ambiente agradece, pois, assim, haverá melhoria significativa das condições de vida de um povo sofrido pela inclemência das condições ambientais extremamente severas que vem sendo deterioradas pela antropização cada vez mais crescente, a qual gera impactos formidáveis que precisam ser revertidos enquanto ainda há tempo.

José Romero Araújo Cardoso. Professor-adjunto IV do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente.

Enviado pelo professor e pesquisador cangaço: José Romero Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

CIAO MERLETTÀ: A VOLTA ITALIANADA DA MUIÉ RENDERA – A INTERESSANTE E INUSITADA HISTÓRIA DE UM FILME ITALIANO SOBRE O CANGAÇO

Publicado em 27/07/2013 por Rostand Medeiros
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Antônio Carlos Amâncio*
Fonte
Estud. hist. (Rio J.) vol.24 no.47 Rio de Janeiro Jan./June 2011 - http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-21862011000100005&script=sci_arttext

RESUMO

O cangaceiro é personagem marcante no cinema brasileiro, ligado a uma dada mitologia do sertão e a uma perspectiva regional. Associado ao filme de cangaço, reapropriação do western, mereceu poucas representações em cinematografias estrangeiras e por isto causa surpresa a produção, na Itália de 1970, do filme O cangaceiro,de Giovanni Fago, que pretendemos analisar à luz de algumas interfaces com elementos da cultura brasileira.  Consideramos a dupla apropriação do gênero (western, filme de cangaço, western spaguetti), e as atualizações temáticas, pensando as transgressões aos modelos canônicos, a partir de uma singular absorção de conteúdos historicamente definidos.

Como traduzir para o italiano a expressão “Olê, muié rendera”, tema musical do filme O Cangaceiro e canção popular do folclore nordestino? Foi esta estupefação de minha amiga napolitana naturalizada que me deu as coordenadas iniciais deste texto. Para chegar a Ciao merlettá ela me descreveu todo o percurso dessa transcodificação linguística: “Olê” seria “ciao”, ”salve”,  e “rendeira” é “merlettaia”: Ciao merlettaia, ciao merlettà…? O “ciao”, que em italiano significa “salve” (“oi”) e “arrivederci” (“até logo”), era muito usado em músicas populares ligadas ao trabalho ou à guerra: “Bella ciao”, “Ciao amore ciao“. O “merlettà” seria um neologismo, aceitável porque é possível cortar a sílaba final de uma palavra desse jeito, sobretudo num italiano mais popular.

Essa explicação me serve como uma luva, porque na verdade estou lidando com transferência de códigos, intertextualidades, adaptação, remake. E me serve porque aqui temos um procedimento usual neste gênero de operação de linguagem: aproximamos sentidos, imaginamos associações, sintetizamos ou ampliamos conceitos, montamos correspondências. Tudo em nome de estabelecer uma relação de contato, diacrônica ou sincrônica, com um fato original de cultura no momento de transpô-lo a outro sistema de referências. Pois esta introdução certamente localiza nosso assunto, uma reflexão assistemática sobre o filme O Cangaceiro. Não o original escrito e dirigido por Lima Barreto, com diálogos de Rachel de Queiroz, realizado em 1953 e produzido pela Vera Cruz. Não este, premiado em Cannes como melhor filme de aventura e também como melhor trilha sonora – o clássico “Muié Rendera” – interpretado por Vanja Orico e com coro dos Demônios da Garoa, um filme que teve ampla circulação internacional.

Cartaz de um dos filmes de western dirigidos pelo italiano Giovanni Fago
Cartaz de um dos filmes de western dirigidos pelo italiano Giovanni Fago

Estaremos falando de outro O Cangaceiro, seu sucedâneo italiano, filmado em 1970 por Giovanni Fago, chamado de Viva Cangaceiro nos Estados Unidos, com locações na Bahia e temática associada ao gênero cinematográfico inventado no Brasil, o nordestern. É ele que nos leva a pensar na questão do remake, no universo expressivo do filme de cangaço e suas apropriações e finalmente no que este filme em particular evoca.

O remake, ou refilmagem, faz parte do universo das interfaces com obras pré-existentes, onde cabem também a adaptação, a referência e a alusão. Em sua proporção  industrial, o remake é associado à serie, à continuação ou ao ciclo, a domínios expressivos no interior de uma obra ou na serialização de produtos, temas ou estilos. Um campo determinado por um sistema de repetições, já institucionalizado, que integra procedimentos ligados ao universo legal, de direitos e plágios, ou referencial, de citações e iterações. Constantine Verevis se debruça sobre o assunto, e é de seu livro Film remakes que vêm as principais considerações aqui apresentadas.

Citando outros estudiosos, ele identifica três marcas para o remake: a de uma categoria industrial, que lida com assuntos de produção, que envolve estruturas de comércio e negociação de direitos; a de uma categoria textual, que lida com taxonomias e textos, enredos e estruturas; e finalmente a de uma categoria crítica, que lida com recepção, incluindo públicos, com seus processos de reconhecimento e com a consolidação de um discurso institucional. Mas é o uso da variação e da diferença (em relação aos originais) que vai levar a outras categorizações, estabelecidas por Michael Druxman e desenvolvidas por Harvey Roy Greenber: a) a refilmagem estrita, identificável; b) a refilmagem identificável, mas transformada; e c) a refilmagem não identificável, disfarçada (apud Verevis, 2006: 7). As leituras avançam por esse caminho tortuoso, com variações sobre a similaridade entre obras, a tensão entre inovação e imitação, empréstimos, autoria, questões de autenticidade e de referencialidade, homenagem, imitação ou roubo.

Mas não cabe aqui apenas articular conceitos. O que finalmente encontramos é a perspectiva, também rarefeita, de uma estética da diluição, na qual elementos de variadas formas culturais se dissolvem em outros, de maneira indefinida e inconstante, integrando- se ao universo da nova obra gestada. É de uma espécie de solução química que estamos falando aqui, dispersões que montam um sistema homogêneo, inseparáveis do dispersante. O resultado desta operação, entretanto, nem sempre é líquido e transparente. Como em qualquer obra de cinema, aliás.

A ira de Deus

O que motivou Giovanni Fago naquele longínquo 1970 a se debruçar sobre os cangaceiros foi a ideia de que eles eram “bandidos políticos”, ou seja, não apenas ladrões, mas rebeldes com posição firmada contra os latifundiários. Segundo o autor, o filme define-se, assim, pela escolha ideológica de seu objeto: uma posição política forte contra a colonização e o imperialismo. Obviamente ele já conhecia O Cangaceiro, de 1953, grande sucesso comercial na época, assim como alguns filmes do Cinema Novo. Fago argumenta que sua intenção não era fazer uma “releitura comercial” desse fenômeno, até porque respeitava certas características da cinematografia brasileira, a qual, primitiva na aparência, era, na verdade, dotada de grande refinamento e inteligência, animada por forte tensão política e impulso à rebelião. Um cinema que correspondia a suas convicções políticas e sociais, frente aos conflitos da América Latina. 1 Porém, o que define objetivamente o projeto de produção é a aquisição dos direitos da canção do velho filme O Cangaceiro.

Essa perspectiva comercial vai ser um dos únicos elementos de ligação entre a produção italiana e uma larga tradição brasileira de filmes de cangaço. Há toda uma linha de parentesco sustentando esta arquitetura, que começa nos filmes de cowboys, no bangue-bangue, nos filmes de faroeste.

Se o western – considerado o cinema americano por excelência num texto de André Bazin, publicado em 1953 (Bazin, 1991: 204) – sofreu contaminações passageiras, o que, segundo ele, não deve ser lastimado, também resistiu, mantendo os símbolos e signos que o fizeram mitológico. O cenário, a paisagem, a cavalgada e a briga, as referências históricas, “o grande maniqueísmo épico que opõe as forças do Mal aos cavaleiros da justa causa”, a Mulher em sua relação com a Virtude, até mesmo os cavalos, são todas marcas pelas quais se expressa uma ética da epopeia e mesmo da tragédia. Marcas que geram um estilo de mise-en-scène e transparecem numa composição da imagem, os grandes planos de conjunto, a quase abolição do primeiro plano, o travelling e a panorâmica que “negam o quadro da tela e restituem a plenitude do espaço” (Bazin, 1991: 206). Um gênero dotado de situações excessivas, de exagero dos fatos e de uma inverossimilhança ingênua, fundado, entretanto, numa moral que o justifica.

Cartaz do filme brasileiro O Cangaceiro, de Lima Barreto
Cartaz do filme brasileiro O Cangaceiro, de Lima Barreto

Diluindo-se pelo mundo, o western passa pelo Brasil, onde assume a forma do filme de cangaço, tematizando elementos da história local e acrescentando uma tintura cultural própria. O Cangaceiro, de Lima Barreto, é a matriz que vai moldar um longo ciclo que se condensa entre os anos 1950 e 1970, com tonalidades diversas, que vão do filme de aventuras à comédia erótica e que promove um retorno pós-modernizado na virada do milênio. 2

Walnice Nogueira Galvão (2005) associa o fenômeno da sertanização, no qual o representante mais marcante é o cangaceiro, ao regionalismo literário dos anos 1930, às artes plásticas do expressionismo social e engajado dos anos 1940 e ao faroeste americano, como de praxe, bem como a uma certa composição gráfica do cinema mexicano, com suas paisagens desérticas, seus cactos na caatinga, o gado à solta tocado por cavaleiros de sombreros. Rica iconografia calcada no inacabado Que Viva México, de Eisenstein, e suas contrafações.3 Um circuito de referências que passa obrigatoriamente por Elia Kazan e seu Viva Zapata de 1952, e chega ao western de Lima Barreto, rodado em Vargem Grande do Sul, no interior de São Paulo, com seu contrastante preto e branco, sua luz ofuscante, seu emblemático contraluz dos cangaceiros no pôr do sol, quando o cangaço vira pura mitologia, depois de desaparecido do mundo social desde a década de 1940, com a morte de Corisco.

O Cinema Novo vai retomar o imaginário sertanejo do western, relido numa tecla nacional e popular, e vai ainda segundo Walnice Galvão, ressemantizá-lo num arco cinematográfico em vários segmentos. O primeiro segmento era aquele temporalmente próximo ao golpe militar e aí estará o também emblemático Deus e o diabo na terra do Sol, junto com Vidas secas, Os fuzis e A hora e a vez de Augusto Matraga, certamente o conjunto mais visitado e seguramente, o mais próximo do olhar de Giovanni Fago. O dragão da maldade contra o santo guerreiro, anos depois, completa o grupo (Galvão, 2005: 87).

Cartaz da película Deus e o diabo na terra do sol, de Gláuber Rocha, de 1964
Cartaz da película Deus e o diabo na terra do sol, de Gláuber Rocha, de 1964

Glauber já preconizara, em 1957, a autonomia do cinema perante as outras manifestações artísticas, assim como Bazin, em 1953, caracterizara o western como “filho autêntico e puro do cinema”, no qual o herói se dilui no gênero, que progride em concentração expressiva (Rocha, 1997). Esta é certamente uma boa referência para pensarmos a relação western-cangaço-spaghetti e vermos como O Cangaceiro de Fago se comporta frente a tantas hibridações.

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Na Itália, o western-spaguetti chegou num momento de crise da indústria cinematográfica e dos grandes estúdios. No entanto, para que lembremos que a releitura do western expandiu-se por toda parte e não foi só uma invenção italiana, o primeiro faroeste europeu é, na verdade, alemão. Refiro-me a O Tesouro dos renegados, de 1961, as aventuras de um índio chamado Winnetou, filmado na antiga Iugoslávia por Harald Reinl (Carreiro, 2009).  De todo modo, na Itália foram rodados mais de 600 filmes nas décadas de 1960 e 1970, insuflando um pouco de oxigênio ao gênero, já desgastado, através do fomento à aparição de uma galeria de novos cineastas-autores, da composição de um elenco estelar multinacional, sem o peso da história de sua matriz americana. Boa parte dos cineastas possuía inclinações à esquerda, valendo-se das mitologias do gênero e das revoluções (principalmente da mexicana, aproveitada à exaustão), uma levada pop, uma música onipresente, expansão do campo temático das histórias, maxi-valorização da paisagem e dos recursos técnicos contemporâneos, do zoom intenso à moldura dos rostos em primeiro plano, valorizando a profundidade de campo, e mais as explosões apresentadas em uma montagem lacônica, dando sempre a impressão de faltar alguns fotogramas.

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Giovanni Fago mantém desse universo, a moldura e a embalagem, mas vai buscar outros conteúdos. Ele se cerca de muitos cuidados. Seu roteirista é Bernardino Zapponi, que trabalhou com Fellini em Satyricon, Os palhaços, Roma, Casanova e muitos outros. A música cabe a Riz Ortolani, compositor experiente, com participação em mais de duzentas trilhas. Conta ainda com a colaboração do fotógrafo Alejandro Ulloa, que trabalhara com Sergio Corbucci, Umberto Lenzi, Enzo Castellari e muitos outros. Uma equipe afiada! O ator principal, Tomas Milian, vinha de uma carreira marcante no western-spaghetti, e no mesmo ano participa de Compañeros, um filme de Sergio Corbucci, na companhia de Franco Nero. Esse filme que, por várias razões, guarda muitos pontos de contatos com O Cangaceiro, entre os quais o de que ambos foram co-produções ítalo-espanholas.

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Ao som de “Muié rendera”, a trama tem início com um ataque da polícia a um bando de cangaceiros, sitiados num vilarejo. O coronel Minas coordena o extermínio do bando de Firmino… e para seu azar, nesta confusão a vaca do camponês Expedito é fuzilada. Expedito é recolhido pelo beato Julião das Miragens, que lhe ensina o valor da justiça, de um Cristo que usa o chicote e pune os maus, distribuindo o que comer e o que beber entre os pobres, e lhe anuncia que ele, Expedito, é o enviado do Senhor, sob o nome de Redentor!

Um acaso, um personagem que é levado a uma situação inusitada, um protetor que o acolhe e instrui, tudo isso compõe uma situação modelar. Mas a caracterização física dos personagens é quase caricata, os diálogos são trespassados por uma ingenuidade cômica que, se não compromete a verossimilhança da narrativa, aponta para um registro de tonalidades mais associadas à comédia de costumes italiana e ecos de Brancaleone.

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Expedito prega nos vilarejos, convocando apóstolos em meio ao desinteresse da população. Mas quem aparece em sua frente é o bando do Diabo Negro, a quem Expedito se apresenta como o novo rei do cangaço, sagrado pelo arcanjo Gabriel para combater pela verdade e a justiça, a cruz e o facão na mão. Convidado a integrar o grupo, outra das situações-modelares do gênero, Expedito recusa e promete ter sua própria gente. A frase do cangaceiro soa quase como ameaça quando estabelece, metaforicamente, a hierarquia das relações sociais: “um facão é mais longo que a mão, mas um fuzil é mais longo que um facão”. E Expedito responde a ela se livrando da cruz.

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Em Angicos, na festa cívica de inauguração da bateria de canhões da cidade, com a presença do cardeal, vemos então o dissimulado Expedito na situação de paralítico, sentado sobre um carrinho de rolimã, mas seu jeito debochado vai levá-lo à prisão, determinada pelo coronel Minas. Na cadeia, ele constituirá seu bando, depois de demonstrar sua astúcia e explodir os canhões. Expedito/Redentor, com as armas que consegue, mata os que o desobedecem, parte para o sertão e ganha notoriedade, passando a ser procurado.

É então que se apresenta sua contrapartida dramática. Num vilarejo, chega um automóvel de classe, dirigido por um holandês louro e elegante, de botas de cano alto e foulard. Munido de livros, mapas e de instrumentos, o homem dirige-se à praia. A população olha com curiosidade o automóvel diferente. Voltando, o homem encontra seu carro totalmente depenado. Só sobrou a estrutura de ferro. Enquanto ele se indaga o que teria acontecido, cresce sobre seus livros a sombra do Redentor! No contra plano, em contraplongée, Redentor aparece santificado, envolto por um halo solar. O cangaceiro intima o viajante a ler para ele um longo romance sobre o mar. E daí, deste contraste entre a força, a violência e a submissão física e a educação, a leitura e os modos cultivados do europeu vai se estabelecer o elo central da relação entre os dois homens. Esta é a trama principal, denunciada por alguns críticos como sustentada por um homo erotismo casto, demarcando um campo pouco explorado até então pelo gênero e suas derivações, normalmente pré-determinados pelo machismo e pela virilidade.

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O holandês Vincenzo Helfen aproveita-se da atração que exerce sobre o camponês analfabeto e desenvolve essa amizade de acordo com sua estratégia. Torna-se a interface do cangaço com o poder local, e mesmo internacional, do qual será o representante, como veremos, e que implica finalmente a exploração de jazidas de petróleo e a maximização de seus ganhos agregados, tais como a ocupação de mão de obra local e a mais intensa circulação financeira. O holandês é relacionado ao progresso, e o cangaceiro vai ser seu associado contra o atraso do sertão.

Essa oposição qualifica a temática da transição do rural ao urbano, do pré-capitalismo ao capitalismo de ponta, permitindo, assim, que o filme seja inscrito na representação da modernização e da evolução industrial do Nordeste brasileiro. O avanço do segmento agroexportador para o de prospector de petróleo se dará na realidade com a instalação da primeira refinaria do Brasil, a Landulfo Alves em Mataripe, no Recôncavo baiano, em 1956, operações que antecedem o futuro pólo petroquímico de Camaçari. 4 O filme expressa, portanto, uma situação alegórica e quase premonitória, já que estamos presumivelmente nos anos 1930. A pertinência da objetivação do petróleo como mote propulsor da trama, guarda, certamente, relação com o olhar contemporâneo dos anos 1970.\

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Dramaticamente, esse acerto é negociado por Helfen que vai possibilitar a ascensão de Redentor como autoridade no sertão, já que este, depois de perseguido, passa a compor com as autoridades, e extermina os bandos rivais, para que a empreitada do petróleo possa prosseguir. O Redentor torna-se a ponta de lança de um acordo que engloba o poder civil local, os militares, a Igreja e os interesses estrangeiros, representados e patrocinados não só por Helfen e sua companhia petrolífera, mas também por um inverossímil bando de gangsters, como que saídos de uma peça de Bertolt Brecht.

Não faltam emboscadas, tiroteios e mobilizações de tropas, em que, às vezes, um tom contemplativo desarruma a potência de um filme de ação. Como, por exemplo, na caminhada ao pôr do sol, onde quem se alinha na contraluz, em postura desconstrutora e modernizante, são o destacamento militar e mais tarde, o negociador Helfen, num pungente adeus à iconografia do velho sertão.

Essas são transgressões às marcas do gênero, assim como o são a repartição equânime do tempo dramático entre os dois personagens centrais, o louro europeu e o mestiço Expedito, em encontros e confrontos, negociação de armas e tratados de paz, jantares de apresentação, concessões de salvo-conduto e danças de forró em ritmo acelerado, quase de samba. É nessa ocasião que, em um rápido plano, Expedito é visto beijando uma empregada uniformizada, único acesso dramático do universo feminino em relação direta com um dos dois protagonistas masculinos. Um beijinho e só, o máximo de relação hetero permitida.

Os elementos da representação, associados ao gênero e suas diluições, são bastante completos, não faltando os duelos de facão, as feiras, com cantadores e fotógrafos, a relação de subserviência dos camponeses e da própria Igreja. Na história, então, Redentor ganha uma fazenda que quer transformar num paraíso terrestre, prova de sua entrega aos desígnios divinos.

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A trama entra em seu desenvolvimento final, que implica no jorro do petróleo e na aparição dos gangsters americanos comandados por Frank Binaccio e seus homens, fugitivos do governo republicano de Calvin Coolidge por evasão fiscal. O governador decide matar Expedito e, pagando um bom preço, pede que os gangsters lhe tragam a cabeça do cangaceiro. Sentindo-se traído, Expedito culpa o holandês, que aparece e explica que o governador mandou matar todos do vilarejo, responsabilizando-os por acolher cangaceiros. A vila assim foi evacuada para a perfuração dos poços. Helfen assume sua parte de culpa e denuncia a negociação com Binaccio. É esta traição, que o holandês faz ao governador e ao seu país, que salva o cangaceiro. Helfen define aqui seus afetos e assume junto ao Redentor sua redenção. Esta união, movida por vingança, provoca a morte dos gangsters e do governador e o apaziguamento da região.

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Encontro na duna, Expedito e seu bando, Vincenzo Helfen partindo de vez. Na despedida, Helfen confessa sua simpatia e cumplicidade com o cangaceiro, que admite não ser o enviado que imaginara. Mas o holandês o conforta, dizendo que ele tinha cumprido muito bem o seu papel. Happy-end. Expedito volta para a estrada, Helfen provavelmente para a Holanda.

O filme termina de modo convencional, centrado no selo da amizade entre os dois protagonistas. O grupo, finalmente conscientizado, continua a atuar e isso é uma possibilidade de novas aventuras, como num western tradicional. Vence o pressuposto violento e vingador, mas ético, do bandido, sob o arrependimento do adversário.

Giovanni Fago conta que o filme fez sucesso na Itália e no resto da Europa, mas só chegou à América Latina três ou quatro anos depois (por conta de sua perspectiva política, foi considerado perigoso). O cineasta renega a etiqueta de western, considerando-a inexata, preferindo defini-lo como um filme político de aventuras.

Jornal carioca de 1973 apresentando o filme italiano, que foi intitulado no Brasil "Rebelião de Brutos"

Jornal carioca de 1973 apresentando o filme italiano, que foi intitulado no Brasil “Rebelião de Brutos”

A apropriação do nome O cangaceiro e de seu universo mitológico estabelece uma conexão obrigatória com a obra original e este gesto não pode ser considerado, de nenhuma maneira, como ingênuo, desprovido de intencionalidade, inclusive comercial. Os direitos da canção original5 são o aval desta operação.

Somos levados a buscar na obra italiana elementos presentes no filme de Lima Barreto, mas nos deparamos com traços soltos, pertencentes ao gênero, e quase nenhuma marca do original. O impulso criador do western clássico, de sua apropriação pelo Cinema Novo e pelo spaghetti, perde-se num pastiche sem alma. É essa estética da diluição sucessiva que leva a um processo de abrandamento das especificidades de cada forma cinematográfica utilizada, solvendo num texto comum o que foi um dia ousadia ou expressão dinâmica.
Notas

1 Entrevista do diretor, bônus do DVD O Cangaceiro, coleção L´âge d´or du cinéma européen. Wild Side films

2 O Almanaque, boletim eletrônico da jornalista Maria do Rosário Caetano dá conta, em 15/06/2010, de várias produções sobre o cangaço em andamento. Homero Olivetto, Wolney Oliveira, Hermano Penna, Geraldo Sarno e Ícaro Martins preparam filmes sobre o cangaço ou sobre cangaceiros. A filiação prossegue.

3 Filme feito entre 1930 e 1932 por Eisenstein e que gerou algumas montagens executadas sem sua presença e renegadas pelo cineasta: Thunder Over Mexico, Eisenstein in Mexico, Death Day e Time in the Sun.

4 Carta IEDI n. 201 – O Futuro do Pólo Petroquímico de Camaçari – Publicada em 31/03/2006

http://www.iedi.org.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=2037&sid=20&tpl=printerview – acessado em 27/09/2010

5 A canção, cuja autoria foi atribuída a Zé do Norte, teve grande repercussão internacional. Foi gravada por um naipe de músicos que vai dos Demônios da Garoa, em 1953, até Joan Baez, em 1964, passando por Astrud Gilberto e muitos outros.

Referências bibliográficas

BAZIN, André. O western ou o cinema americano por excelência. O Cinema: Ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. [ Links ]
CARREIRO, Rodrigo. Do desprezo à glória: o spaghetti western na cultura midiática. Baleia na Rede,  vol. 1, nº 6, ano VI, dez/2009 (http://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/BaleianaRede/Edicao06/4_Do_desprezo_a_gloria_western_spaghetti.pdf) [ Links ]
GALVÃO, Walnice Nogueira. Metamorfose do sertão. In: CAETANO, Maria do Rosário (org). Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. Brasília: Avatar, 2005. [ Links ]
ROCHA, Glauber. O western: uma introdução ao estudo do gênero e do herói. Mapa, nº1, Salvador, ABES, 1957. [ Links ]
GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. [ Links ]
VEREVIS, Constantine. Film remakes. Edinburgh: Edinburgh University Press Ltd, 2006. [ Links ]
Referências filmográficas
A hora e a vez de Augusto Matraga (BRA, 1965, dir: Roberto Santos)
Casanova de Fellini (ITA, 1976, Federico Fellini)
Compañeros (ITA, 1970, dir: Sergio Corbucci)
Deus e o diabo na terra do sol (BRA, 1963 , dir: Glauber Rocha)
O cangaceiro (BRA, 1953, dir: Lima Barreto)
O cangaceiro (ITA, 1970, dir: Giovanni Fago)
O dragão da maldade contra o santo guerreiro (BRA, 1969,  dir: Glauber Rocha)
O incrível exército de Brancaleone, (ITA, 1965, dir: Mário Monicelli)
O tesouro dos renegados (ALE/ITA/IUG, 1961, dir: Harald Reinl)
Os fuzis (BRA, 1964, dir: Ruy Guerrra)
Os palhaços (ITA, 1970, Federico Fellini)
Que viva México (MEX, 1932, dir: Grigori Aleksandrov, Sergei M. Eisenstein)
Roma de Fellini (ITA, 1972, Federico Fellini)
Satyricon (ITA, 1969, dir: Federico Fellini)
Thunder over Mexico (EUA, 1933, dir: Sol Lesser)
Time in the Sun (EUA, 1939/40, dir: Mary Seton)
Vidas secas (BRA, 1963, dir: Nelson Pereira dos Santos
Viva Zapata (EUA, 1952, dir: Elia Kazan)
Este artigo é dedicado a Mariarosaria Fabris. 
*Antônio Carlos Amâncio é mestre e doutor em Cinema pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) e professor associado III do Departamento de Cinema e Vídeo e do Programa de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Brasil (tunicoamancio@gmail.com).
COMENTÁRIO DO ADMINISTRADOR DESTE BLOG – Para quem desejar assistir o filme na íntegra é só clicar no link que segue. Aqui temos a versão original em italiano, com legendas em espanhol.

http://www.youtube.com/watch?v=N3JvtkZKsbE

Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador Rostand Medeiros

http://tokdehistoria.wordpress.com/

 http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Beco da Igreja, Mossoró-RN.

Foto
Praça Vigário Antonio Joaquim, em 1952. Mossoró-RN.

Beco da Igreja: uma denominação simples e direta que indicava um logradouro ao lado da única igreja existente no local, pois caso houvesse outra, seria necessário haver um adjunto ao termo igreja, tipo assim: Beco da Igreja de Santo de Antonio.  Mas, por sua sintética expressão, este Beco da Igreja, antigo logradouro da cidade de Mossoró-RN, remonta a épocas distantes que correm em direção ao nascer da vila, no Século XVIII – o Século das Revoluções Mundiais -, quando a vila recém-nascida, ainda vivia embalada nos braços do Sargento-Mor Antonio de Souza Machado, no período em que havia somente um pequeno templo religioso. E que igreja era esta? A Igreja Matriz de Santa Luzia, que nos primórdios era a Capela de Santa Luzia, e, atual Catedral Diocesana, localizada no distrito 600, na zona central da cidade.

Hoje, este Beco, cuja face é voltada para a lateral norte da Catedral, é a Travessa Frei Antonio da Conceição. Homenagem ao Frade da Ordem Carmelita, oficiante do primeiro casamento realizado na Capela de Santa Luzia, em 06 de outubro de 1778. Foi um dos pioneiros da vida religiosa da sociedade mossoroense. Este clérigo residiu por muito anos na Fazenda Carmo, faleceu em idade avançada e foi sepultado nesta Capela,  em Mossoró-RN. Raimundo Soares de Brito, (1920-2012), na obra referenciada, não menciona a data da alteração desta nomenclatura urbana.

Sobre o aspecto histórico-social deste antigo espaço, Raimundo Nonato da Silva, na obra abaixo, relaciona principais destaques. E, com seu dizer simples e coloquial, este cronista nos relatou: “nesse ponto ficavam instalados alguns pequenos ramos de comércio, como cafés, barbearias, sapatarias, oficinas de remonte de chapéus, uma das quais de propriedade do velho Ismael”. Dorian Jorge Freire, (1934-2005), in Mário Negócio, Facebook,  descreve o perfil de um destes sapateiros do antigo Beco, o Seu Lindolfo, na rotina diária de sua oficina, que enquanto trabalhava arduamente recebia os fofoqueiros de plantão: "...Os outros frequentadores passavam dos 40 anos, beiravam os 50. Cada um interrompia seu caminho e ia dar um dedo de prosa na oficina, em sessões políticas presididas pela sabedoria do velho Lindolfo. Só seu Lindolfo não interrompia nada. A faina honesta e esmerada, ele a prosseguia, imperturbável. E se havia o que dizer - falava sempre o mais certo, o mais responsável, geralmente o mais inteligente - ele o fazia sem pressa, as palavras escorregando de seus lábios quase cerrados, que guardavam duas, três brochinhas que logo iriam sustentar um solado, revigorar uma costura, manter na linha um saldo Luis XV."

A parte do Beco, oposta à esquina com Rua Pe. João Urbano é voltada para o Mercado Público, e, havia um pequeno sobrado, em cujo térreo, havia vários cafés e bodegas – pequenas mercearias, coisa que a turma ai – ipod, iphone e ipad – desconhece. No pavimento superior do sobrado, funcionava a sede de uma banda de música. Como podemos perceber, este curto beco foi uma verdadeira central de entretenimento e comunicação para a comunidade.A imagem ilustrativa utilizada, de provável autoria de Manoelito Pereira, (1910-1980),  é possível identificar, à direita da Catedral, o pequeno Beco. Na esquina do Beco com a Rua Padre João Urbano, em 1925, começou a funcionar a primeira cooperativa de consumo de Mossoró, a qual era mantida pela  União de Artistas.  O pedreiro, Chico Teófilo, inclusive patrono de uma rua situada no Bairro Aeroporto, foi um dos gerentes desta cooperativa que tinha por objeto atender aos associados da entidade, vender gêneros e outras mercadorias, com valores a preço de custo e acrescidos de 10% destinados à cobertura das despesas de aluguel e manutenção do imóvel. As atividades da cooperativa foram encerradas, contudo o cronista não informou a data do seu fechamento.

Citarmos as fontes é respeitar quem pesquisou e dar credibilidade ao que escrevemos. Teléscope.

Fonte: 
http://blogdetelescope.blogspot.com.br/2013/07/beco-da-igreja-mossoro-rn.html

Enviado pelo pesquisador José Edilson de Albuquerque Guimarães Segundo

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - V

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

Logicamente que nem todos foram degredados da memória quando já falecidos ou ainda em vida. Dependendo da propensão histórica e cultural de cada povo, muitos daqueles personagens da saga lampiônica ainda continuam relembrados, e até festejados, perante o que historicamente representaram. Mas não posso falar desse contexto geral, pois não conheço a representatividade que cada um toma na vida de seus conterrâneos.

Lampião, Maria Bonita 

Por isso mesmo me volto apenas para o microcosmo poço-redondense, na abordagem feita acerca do tratamento dispensado àqueles sertanejos oriundos do bando ou dos arredores de Lampião, e que eram filhos de Poço Redondo, município fincado nas bandas sergipanas do sertão do São Francisco. A mesma povoação sertaneja onde a 28 de julho de 38, na Gruta do Angico, Lampião flamejou pela última vez. Segundo a doutrina da morte, contrariando àquela da eternidade.

Como citado, enquanto povoação - para não se cometer o erro de regionalizar o arruado sertanejo -, Poço Redondo cedeu mais de duas dezenas de filhos seus ao bando do Capitão, bem como coiteiros e outros habitantes que tiveram uma relação de bastante aproximação com o mundo cangaceiro de então. Pelo grande número de meninos e meninas, rapazotes e mocinhas que enveredaram pelas veredas hostis, o mínimo que se esperava é que estes fossem mais reconhecidos pelos seus feitos.

Não significa que todos tenham de festejar a memória de um ex-cangaceiro, reverenciá-lo em pedestal ou mitificá-lo a ponto de lhe imputar poderes inexistentes, mas também não se deve, de forma gratuita, alijá-lo da história municipal. Queira ou não, aceite ou não, o retrato de cada um já está devidamente exposto na parede da história. Ademais, e sem medo de errar, afirmo que Poço Redondo só é reconhecido mundialmente pelo que o cangaço significou na sua vida.

Mas tudo insiste em acontecer diferente naquele lugar. Mesmo o evento maior do cangaço tendo acontecido nas terras da povoação, nas barrancas do Velho Chico, coisa de apenas alguns quilômetros da sede até lá, pouca importância se dá à Gruta de Angico, à história cangaceira, aos seus filhos que no passado estiveram nos palcos das batalhas sangrentas sertões adentro. Quer dizer, aprenderam a história dos outros, dos acontecidos muito distantes, mas não procuraram valorizar a própria história, aquela vivenciada nos seus quadrantes.

Se não fosse a persistência de Alcino, por ele mesmo intitulado “O Caipira de Poço Redondo”, que insistente e fervorosamente mostrou para o mundo o percurso da saga cangaceira na região e desencavou do esquecimento a própria história do município, certamente que até hoje quase nada se conhecia sobre Zé de Julião, o Cajazeira no bando de Lampião, nem sobre Adília, Sila, Enedina, o coiteiro Mané Félix e tantos outros. Isto no contexto de Poço Redondo, pois outros autores já haviam cuidado de tais personagens em seus livros. Parece contraditório, mas assim mesmo aconteceu.

Adília, a mulher do cangaceiro Canário

Ora, é de se imaginar como pode acontecer que pessoas como Adília e Mané Félix, até alguns anos atrás vivendo na cidade ou nos arredores, tivessem suas presenças praticamente ignoradas. Quase ninguém reconhecia os seus feitos, mostrava ódio ou a devida valorização, se importava com nada que a eles dissesse respeito. Adília, a mulher de Canário, talvez fosse vista apenas como aquela senhora alta, magra, morena trigueira, de cabelo desgastado e escorrido, que morava ao lado da cidade, lá no Alto de João Paulo.

Adília no cangaço

Esta morena trigueira, de rosto fino e olhar perdido noutros tempos, era de uma simplicidade impressionante. Como de vez em quando a encontrava em minha casa, proseando cozinha adentro com minha mãe, comecei a ter grande afeição por aquela senhora. Meninote, ela brincava comigo, me colocava no colo, fazia cafunés enquanto contava histórias. Não as cangaceiras, logicamente, mas do papa-figo, do bicho-papão e outros bichos amedrontadores da infância.

E lá ia eu atravessando o riachinho na sua companhia, em direção à sua moradia no Alto, no outro lado do Riacho Jacaré. Estrada de chão, ela na frente e eu lançando o olhar pelos descampados ao redor, avistando um ou outro passarinho. Ainda existiam passarinhos naqueles caminhos. Lembro como se fosse hoje, e doce e cativante memória, chegando diante da casa velha, de barro batido, sem nenhum conforto digno para uma grande sertaneja, e contando com muitos filhos, todos já adultos. Mas vivia praticamente sozinha.

Ali passava tardes sob os seus cuidados, de vez em quando brincando com uma marca que ela possuía numa das pernas. Só depois fiquei sabendo da bala inimiga adentrando o osso e deixando a dolorosa recordação cangaceira. Um tiro, um balaço, um açoite flamejante saído de dentro do mato e acertando a perna em cheio. Por pouco não ficou aleijada. Mas a marca ainda estava lá, uma lembrança na pele e no osso dos tempos idos.

Enquanto gente desconhecida e pesquisadores vindos de muito distante chegavam para conhecê-la e entrevistá-la, os seus conterrâneos quase nenhuma importância lhe dedicavam. Mesmos os mais velhos, aqueles que conheciam toda a sua história, não procuravam nada dizer aos mais jovens sobre a vivência daquela então empobrecida mulher. E mais uma vez foi preciso que Alcino mostrasse ao povo a sua importância. Não somente isso, mas principalmente possibilitando uma sobrevivência com dignidade.

Sila

Com Sila aconteceu diferente. Como a ex-cangaceira e companheira do também cangaceiro Zé Sereno se bandeou para São Paulo após o fim das vinditas sangrentas, logo se livrou de cair no rápido esquecimento perante os seus. De família numerosa em Poço Redondo, também irmã dos ex-cangaceiros  Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro, ainda assim não estaria livre de ser relegada no seu passado. Foi arriscar a vida e o reconhecimento em terras distantes.

Na capital paulista se fez conhecida, fez fama de bordadeira e costureira, teceu grandes amizades com pesquisadores e escritores. De suas entrevistas nasceram livros, dentre os quais “Sila, uma cangaceira de Lampião”,  em parceria com Israel Orrico; “Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno”, de Antonio Amaury Correa de Araújo; bem como  “Memórias de guerra e paz” e “Angico, eu sobrevivi”, estes assinados como Ilda Ribeiro de Souza.

Suas visitas à terra natal eram objeto de falatórios e curiosidades. Muito menos por se tratar de uma ex-cangaceira e muito mais pelo seu jeito de se apresentar aos conterrâneos. Sempre bem maquiada, cabelo pintado, com roupas bonitas e vistosas, preservando, em outros moldes, a vaidade que foi tão peculiar aos cangaceiros. Já Adília, que permaneceu nos quadrantes poço-redondenses lutando pela sobrevivência, se sentia bem com o que possuía pra vestir e dava graças a Deus por continuar vencendo as dificuldades.

Sila no cangaço

Quem avistasse Sila e nada conhecesse sobre seu passado, nem de longe imaginaria ser uma ex-cangaceira, um dia vestida com roupa adornada de espinhos e perfumada pelo suor das correrias caatinga adentro. Desse modo, os comentários eram mais por curiosidade do que mesmo pelo que ela historicamente representava.

Ademais, corria a boca miúda que ela tinha o hábito de falar mais do que sabia, de inventar coisas que não havia vivenciado ou presenciado, num afã descomunal de ganhar muito mais representatividade no bando de Lampião. Foi também acusada de fazer afirmações contraditórias, dando constantes reviravoltas naquela realidade. Contudo, no contrapeso da história, ainda prefiro acreditar no que ela dizia, ainda que seja próprio de cada personagem colocar sobre si um pouco mais de dramaticidade.

Nas suas visitas a Poço Redondo, certamente que Sila procurava se avistar com Adília, ex-companheira nas lides cangaceiras. Outro dia assisti a um vídeo onde as duas proseavam, contavam causos daqueles tempos difíceis. Uma diferença impressionante entre as duas. Uma sertaneja e outra com feição sulista, ainda que de suas bocas saísse a mesma saga e os seus olhos ainda estivessem espelhando o sertão da catingueira, da refrega, da incerteza, da correria.

E nas duas os tempos difíceis de outrora. E tudo por amor não cangaço, que nem sabiam o que verdadeiramente significava, mas ao cangaceiro. Por amor a Zé Sereno (ainda que afirmasse ter sido raptada), por amor a Canário. Sila faleceu na capital paulista em 15 de fevereiro de 2005, aos 86 anos; enquanto Adília faleceu em Poço Redondo, no mês de março de 2002, aos 82 anos.

Poeta e cronista
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