Por Leneide
Duarte, de Paris
A francesa
Élise Grunspan-Jasmin chegou ao Recife em 1991 e, até então, nunca ouvira falar
de Lampião. Mas logo tomou conhecimento desse personagem quase onipresente na
vida do Nordeste brasileiro, tão construído e mitificado com o passar do tempo
que a legenda se mistura com a realidade no imaginário popular. Livros de
cordel, filmes, músicas, bonecos de barro, todo o universo do cangaço e dos
cangaceiros começou a invadir o cotidiano da jovem historiadora francesa,
formada em história da arte, com especialização em fotografia.
Impressionada
com a força do mito, logo Élise decidiu iniciar uma pesquisa sobre Lampião.
Anos depois, em 1999, apresentava sua tese de doutorado em História, na
Universidade de Paris IV, com o título "Lampião, seigneur du sertão: vers
1897-1938".
O trabalho foi
premiado com o "Prix Le Monde de la recherche universitaire" e
publicado no fim do ano passado pelo jornal Le Monde, em edição conjunta com as
Presses Universitaires de France, transformando-se no livro Lampião, vies et
morts d’un bandit brésilien. Um título que explica ao público francês quem é o
tal "senhor do sertão" da tese.
Lampião não é
uma referência para o público francês e a palavra "sertão" também não
funcionaria no título de um livro. Por isso, Élise cedeu à proposta de chamar
Lampião de bandido brasileiro, o que parece à primeira vista redutor para quem
conhece de perto as contradições de um personagem complexo, que se tornou um
"fora da lei" para cobrar justiça para seu pai injustiçado.
Espetáculo da
vida
Em um dos capítulos
do primoroso texto sobre o "senhor do sertão", Élise dedicou-se a
explicar como a imagem de Lampião foi construída pela imprensa que, ao mesmo
tempo que atacava o banditismo e seus horrores, ajudava a criar o mito do herói
invencível, de corpo fechado, que se evaporava quando chegavam as forças da
lei. De bandido a herói popular foi um pulo, como lembra o jornalista Ignacio
Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, autor da apresentação do livro.
Escreve ele:
"O
itinerário de Lampião ‘bandido brasileiro’ é o de um revoltado social que se
torna herói popular. Um revoltado incapaz, por falta de cultura, de teorizar
sua própria prática de delinqüente e de propor uma leitura política para ela.
Mas um rebelde que se insurge concretamente, de armas na mão, contra a
hierarquia do poder no sertão, contra a justiça de classe, contra a ordem dos
‘coronéis’, contra uma sociedade colonial, e que, na sua escala, opta por uma
contra-sociedade, a do cangaço".
Em suma: com
um pouco de teoria Lampião poderia ser o que não foi porque não tinha condições
para elaborar um conteúdo político para seu percurso. Mas tinha um agudo senso
de marketing e foi, com alguns jornalistas que o entrevistaram, também
responsável pela construção do mito. "Havia um prazer em Lampião em posar
para fotografias. Existe uma aparente contradição entre sua clandestinidade e a
enorme quantidade de fotos que foram feitas dele e de seu grupo, entre 1926 e
1938. Essa contradição é apenas aparente pois havia uma vaidade em Lampião, um
enorme prazer em se preparar para fotos. Há aí uma dimensão do desafio e a
literatura de cordel mostra bem isso", assinala Élise. Segundo ela,
deixar-se fotografar é uma forma de conjurar a morte; há uma conservação
simbólica do grupo, que tem relação com o mito do corpo fechado que acompanhava
Lampião, cangaceiro desde 1922.
A exposição de
Lampião e de seu grupo na imprensa começou, na realidade, em 1926 e durou até
sua morte, em 1938. A pesquisa incluiu jornais do Rio, de Pernambuco e do Ceará
para entender como um personagem é construído através da imprensa e como a
imagem e o texto estabelecem uma dinâmica poderosa. Antes de 1926, os artigos
na imprensa eram factuais, davam contas das cidades atacadas, das pilhagens
levadas a cabo pelo grupo de cangaceiros. A partir de 1926 começa uma narrativa
do espetáculo de sua vida, para o qual os jornalistas contribuem; os folhetos
de cordel descobrem o personagem e começa a legenda.
Cenas
preciosas
Para a autora,
Lampião passou de indivíduo a personagem graças à mídia impressa dos anos 30. O
cangaceiro fez uso de um senso inato de marketing para se comunicar com o mundo
exterior, manipulando jornais e jornalistas na construção de seu mito. Para os
jornalistas, descrever um personagem temível, aparentemente indescritível, pode
ter a função de exorcismo: descrever serve para se tranqüilizar, apropriar-se
do objeto temido para dominar o medo.
E o próprio
Lampião gostava de se ver nos jornais. Várias pessoas servem de intermediários
para entrevistas com o cangaceiro, que se preocupava com os comentários de
jornalistas sobre ele e se deixou fotografar por Benjamin Abrahão, em 1936,
lendo matérias que falavam dele.
Os jornalistas
não deixam de ressaltar a imagem de um grupo de arrivistas amantes do luxo e
vestidos ricamente. Numa matéria de 14 de julho de 1936, o jornalista Antônio
Napoleão, editor do jornal sertanejo O amigo do matuto, descreve uma horda de
bandidos fascinados pelo luxo e pela riqueza.
Um dos artigos
publicado no jornal Diário de Pernambuco, de 30 de maio de 1935, assinala que
até os cachorros de Lampião não escapavam ao gosto do luxo que reinava no
grupo: "Dourado", o cachorro do cangaceiro, que será morto depois por
uma "força volante", usava um "precioso colar de ouro e
prata".
A "moda
cangaço" ou "cangaceiro" também foi divulgada e sedimentada
pelas fotos. Num artigo do Diário de Pernambuco (6 de dezembro de 1935), o
jornalista ressalta que "as ‘forças da ordem’ que vinham de Recife
utilizavam sandálias, calças e um chapéu do tipo Lampião". Em outra matéria
do mesmo jornal (12 de novembro de 1936), o jornalista descreve a "força
volante" de "Mimosa vestida à moda de Lampião".
Numerosos
artigos de jornal insistem em descrever os óculos que o cangaceiro usava:
alguns falam de coqueteria, para esconder seu olho doente (ele era cego e tinha
um olho de vidro). Outros atribuem os óculos a uma necessidade de melhorar a
visão e atenuar sua fotofobia. O Povo, de Fortaleza, descreve na edição de 5 de
agosto de 1928 os óculos "de lentes escuras, em armação de ouro e tartaruga,
usados para esconder uma doença que atingiu a córnea do olho direito".
Pensando em
controlar sua imagem mais de perto, Lampião permitiu, em 1936, ao cinegrafista
e fotógrafo Benjamin Abrahão fazer fotos e um filme que foi intitulado Lampião,
o rei do cangaço. O Diário de Pernambuco publicou em primeira mão um depoimento
de Abrahão sobre o filme e as condições em que foi rodado. A revista O
Cruzeiro, de 27 de março de 1937, deu a notícia do filme como um furo de
Benjamin Abrahão. Toda a imprensa falou do filme rodado no sertão, mostrando a
vida cotidiana dos cangaceiros.
Abandonado em
um depósito úmido até 1957, o filme foi quase totalmente perdido. Dele restam
10 minutos com cenas de Lampião dando ordens a seus homens, falando a um
público virtual, costurando numa máquina de costura e dirigindo uma missa,
rodeado de seus cangaceiros. Perderam-se cenas preciosas em que o cangaceiro
era penteado por Maria Bonita, lia um livro de Edgar Wallace, acariciava seus
dois cachorros, entre outras do grupo rindo ou dançando. Mas para as
autoridades da época, o bandido midiático e seu cineasta eram igualmente
perigosos. Benjamin Abrahão foi assassinado em maio de 1938 e Lampião foi morto
em julho do mesmo ano.
A autora
observa que o poder do Estado tinha todo interesse em que o filme desaparecesse
num momento em que operações de propaganda do governo Getúlio Vargas
apresentavam os cangaceiros como bandidos abjetos, sistematicamente violentos,
cruéis, inimigos da sociedade e da civilização.
Do jornal:
Observatório da Imprensa
Fonte: facebook
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