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sábado, 30 de julho de 2022

LIVRO

   

Com texto e fotos do autor, o livro entrelaça as histórias de 43 personagens que vivenciaram o cangaço ao imaginário do movimento que dominou o interior do nordeste brasileiro entre os anos 1920 e 40, aspectos da vida sertaneja e a própria experiência em busca dessas histórias por mais de uma década. Também estão presentes algumas fotos históricas, apresentando cenas relatadas e reverenciando o trabalho dos fotógrafos que registraram o cangaço. O livro foi selecionado e contou com apoio do programa Rumos Itaú Cultural.

Foram nove longas viagens à região, entre 2007 e 2019, em uma investigação incessante para montar o quebra-cabeças dessa história. Com sua vasta experiência em grandes reportagens, Ricardo Beliel buscava os resquícios das memórias do cangaço. Enquanto era tempo – em uma história que está para completar um século –, queria ouvi-los direto da fonte de quem conviveu com o movimento. No texto, os depoimentos diversos e a experiência pessoal do autor em busca de seus personagens são apresentados através de uma narrativa em que se misturam elementos das linguagens da reportagem, da crônica histórica e, em parte, como um diário de viagem.

Em cada personagem, testemunha-se um fluxo da memória e do esquecimento, e se revela uma potente e épica narrativa das memórias pessoais que envolvem tradições e lugares. Os entrevistados, em sua grande maioria pessoas quase centenários, são descendentes da época do cangaço, personagens de um ciclo da história do Brasil, com suas falas resgatadas no livro para que não fiquem no esquecimento, como pedras silenciosas no meio do caminho.

Com a riqueza semântica da tradição oral que os caracteriza, os relatos reunidos no livro ajudam a recuperar para a historiografia de nosso país um caminho para redesenhar a memória e mística da gente sertaneja, suas histórias entrelaçadas à época do cangaço, seus espaços sociais, religiosos e costume.

Ricardo Beliel

ISBN: 9786588280225

Número de páginas: 320

Formato: 18x25cm

Ano: 2021

Capa: capa dura

Peso: 1,1 kg

https://editoraolhares.com.br/produto/memorias-sangradas-ricardo-beliel/

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EM MEIO À FUGA - O PADRE QUE CASOU DULCE E 'CRIANÇA' E BATIZOU 'BALÃO'

 Gonçalo de Souza Lima, popularmente conhecido por Padre Lima, nasceu em Porto da Folha aos 27 de julho de 1900, filho de Pedro de Souza Rito e Josefa Maria dos Prazeres. Nessa época Porto da Folha passava por significativa mudança no que se refere ao fim da escravidão à cerca de 20 anos, algo que havia deixado por lá a ferrenha marca do preconceito racial.

A primeira missa celebrada pelo Padre Lima aconteceu dia 01 de Dezembro de 1929 na terra natal. No ano seguinte foi designado a substituir o Padre Arthur Passos em Porto da Folha, permanecendo até 1931, quando foi transferido para a paróquia de Pacatuba, onde ficou até 1937, ocasião em que passou a ser o pároco de Aquidabã.

O Padre Lima esteve por diversas vezes a celebrar missas, casamentos e batizados em Porto da Folha, embora sendo o pároco oficial de Aquidabã. Este compromisso espontâneo se deu pelo fato de sua terra natal haver ficado longo período sem Padre.

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, no município de Porto da Folha/SE

Após a chacina de Angico, em 28 de Julho de 1938, quando morreram Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros, chegou a Porto da Folha um grupo de 17 cangaceiros para se entregar, três deles foram à casa do Pe. Lima a procura dos sacramentos.

Entre estes, o casal Criança e Dulce e o cabra Balão.


João Alves da Silva "o Criança" e Dulce Menezes pediram para se casar e Guilherme Alves dos Santos "o Balão", para ser batizado. O Padre, então vigário de Aquidabã, encontrando-se na terra natal não se opôs ao pedido de Criança. Quanto ao pedido de Balão, disse com seu vozeirão:

Eu não acredito que um homem na sua idade seja pagão!”

E o cangaceiro respondeu: “Eu sou”. A minha família é crente. O Capitão só me aceitou porque prometi que tão logo encontrasse um Padre, pediria pra me batizar.”

O Padre Lima retrucou: “Lampião já morreu!”

Balão justificou: “Mas eu estou devendo e quero pagar.”

O Padre achando bonito o gesto do cangaceiro, lhe disse: “Então vá procurar um padrinho”.

Ele foi direto a “seu” Manezinho Delegado, mas este recusou o convite.

O cangaceiro voltou triste e o Padre Lima perguntou: “Já tem padrinho?”

Balão: “Eu convidei seu irmão e ele não aceitou”.

O Padre mandou chamar o irmão e disse: “Aceite, que é para fazer dele um cristão”. 

O casamento e o batizado foram realizados perto do meio dia, na presença de muitos curiosos, principalmente meninos, tendo por padrinhos o Sr. Manoel de Souza Lima, "Manezinho delegado" e sua esposa Dona Estefânia Poderoso a Dona Ester.

A partir deste e de outros acontecimentos marcantes, o Padre Lima foi se tornando cada vez mais conhecido no sertão de Sergipe. O religioso faleceu no dia 28/01/1980, em sua residência na capital sergipana.
 
Trecho da biografia composta por Joaquim Santana Neto, de acordo com informações da família em conjunto com os dados contidos no livro “Porto DA Folha, fragmentos da história e esboços biográficos” de Manoel Alves de Souza.

Pescado em http://www.joaquimsantana.net/galeria/padre-lima/

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O ESTADO DE SÃO PAULO, EDIÇÕES DE 18 E 19 DE OUTUBRO DE 1969. ENCONTRO HISTÓRICO DE EX-CANGACEIROS

Transcrição de Antonio Correia Sobrinho



Eis o que restou do cangaço

“Sila saiu correndo, agachada. Uma bala acertou a cabeça de outra mulher, espirrou miolo no vestido de Sila; maldade, ela só tinha 15 anos. Depois, foi muito tiroteio, finado seu Rastejador também morreu. Vi Lampião pondo sangue pela boca. Um dia, resolvemos entregar, cangaço acabou, mas só acabou mercê da traição de cangaceiros que ajudaram as Volante, contavam os pontos da gente”.

Balão ajeita a gravata, no aeroporto de Congonhas. Ele, cangaceiro do bando de Lampião, hoje batedor de estacas para fundações de prédios, está com os companheiros esperando dona Expedita, filha de Lampião, Vera, neta do cangaceiro, e mais Labareda e Saracura. Todos vão reunir-se em São Paulo para o lançamento de “As táticas de guerra dos cangaceiros”, de Christina Matta Machado.

O livro vai ser lançado dia 24, a partir das 16 horas, na Aliança Francesa, rua General Jardim, 172.

Saudade 

Quando o cangaço acabou e o governo deu anistia, a Polícia separou os cangaceiros: cada um teve que ir para um lado. Faz muito tempo que vários moram em São Paulo, mas não sabiam. Só quando Christina começou a procurá-los é que eles ficaram sabendo dos velhos companheiros, puderam se reunir para relembrar os causos de então. Ontem, em Congonhas, estavam vários deles, esperando os outros. Estava Marinheiro, um ano de cangaço, hoje funcionário da Caixa Econômica Estadual; estava Pitombeira, 3 anos de bando, entrou para não ser morto pela Polícia, hoje funcionário da Prefeitura. Estava também Criança, 7 anos de lutas, a glória de enfrentar sozinho, por duas horas, a Volante, para deixar o bando escapar. Criança, hoje, vende tomate como ambulante.

Em Congonhas estava também Sila, mulher de Zé Sereno que não pode ir (está com a perna engessada) e estava Dadá, apoiada na muleta. Sua perna direita ficou no sertão, crivada de balas de metralhadora, da mesma arma que matou seu marido, Corisco, que ela atentava defender. Estava em Congonhas o Balão, acompanhado de cinco de seus 8 filhos e contando para todo mundo que até hoje é solteiro. Balão, alegria do bando, tocador de sanfona, o mais valente de todos, mostrou ontem que não mudou. Ele foi piadas o tempo todo, mesmo quando tirou os sapatos e a meia por causa de um ferimento no pé que “tá ameaçando arruinar”.

Visitas

Até o dia 24, os cangaceiros vão visitar São Paulo, conhecer coisas novas, principalmente os que vieram de longe que a Varig trouxe de Sergipe e Alagoas. Ele irão ao Ibirapuera, a cinemas, restaurantes, serão entrevistados e aguentarão as luzes fortes da televisão, e queiram ou não vão acabar entendendo que hoje eles são gente importante, que apesar dos crimes que cometeram e talvez mesmo apenas por isso, eles passaram a ser história, são uma página da vida do Brasil.

Para contar a história do cangaço, Christina viajou quase todo o Nordeste, pesquisou em 34 municípios e se tornou amiga daqueles homens. Com os dados que colheu, escreveu o livro e vai defender tese em História, sob o tema “Cangaço, aspectos socioeconômicos”.

Morrer apanhando ou ser Cangaceiro

Embora arrependidos de terem sido cangaceiros, os cabras de Lampião dizem que não havia saída. Balão conta que a Polícia batia em todo mundo, para que contasse o paradeiro do bandido, muitas vezes, matava. Um companheiro dele teve que servir de cavalo para um soldado com esporas. Por isso, “quem não queria morrer apanhando tinha que ir para o cangaço”. Balão, entretanto, foi para o sertão por outro motivo. Engraçou-se – diz ele – com uma menina amiga de Lampião e alguns homens do bando quiseram matá-lo; ele fugiu com outro grupo e, depois, quando esse se uniu com o de Lampião, “a intriga foi esquecida”.

Pitombeira fugiu porque um irmão e um “primo carnal” foram mortos pela Polícia, que tentava fazer com que contassem onde estava Lampião. Ele ia ser morto também e fugiu.

O final 

Para todos, o fim do cangaço foi a morte de Lampião, o líder que teve até 260 homens sob suas ordens. Quando ele morreu, o bando que chefiava tinha '36' e 11 ficaram “naquela jornada”. Havia muitos antigos colegas que ajudavam a Polícia e, por isso, fugiram todos para Sergipe, estado amigo, para combinar a “entregação ao governo”.

Balão conta como foi a fuga, “a volante matou Lampião, tive tempo só de pegar embornal de subsistência e de bala e quando a metralhadora engasgou passei no meio dos macacos, fugi. O Presidente tinha espalhado aviso em toda fazenda, para entregar, que ele garantia a vida. Fomos para Sergipe e resolvemos – Juriti, Criança, Marinheiro, Pitombeira, eu – arriscar olho e mandamos avisar o cabo Miguel da volante, que viesse conversar, com três soldados, fuzil de boca para baixo. Ele veio, ficamos amigos, mas 300 praças de outra polícia cercaram o bando, tivemos que fugir para a fazenda Cuiabá, onde dançamos com a volante e bebemos oito dias sem parar. O capitão Aníbal, que trazia a ordem do governo, mandou fechar os portos das Alagoas, para que a polícia que queria matar a gente não entrasse em Sergipe”.

O caminho

“Começou então o caminho da entrega. Mas era duro, tinha tropa do capitão Aníbal, amiga, garantia a vida, tinha a tropa inimiga, queria matar a gente. Fomos ao Araticum, a Porto da Folha, a Monte Belo, mas, quando cheguei no Caveira, mataram quatro cabras meus.

Foi traição dos sergipanos e tivemos que brigar ainda no Pinhão. Só conseguimos achar o capitão Aníbal em Serra Negra, para entregar as armas. Não, ninguém foi preso, a gente ficava no quartel só na hora da troca de expediente e todos entregamos por livre e espontânea vontade. Cada dia chegava mais cangaceiros. Poucos foram mortos, como Juriti, na faca, quando era guarda-freio e estava regenerado. Depois, cada um foi para um lado, ninguém viu mais ninguém. Eu, fé em Deus, sou muito feliz.”

Ideologia

É Pitombeira quem fala, muito sério: “Hoje falam de subversivo, dizem que a gente era guerrilheiro, socialista; não era não. Nós só queríamos o bem, andar longe da Polícia, só atirava quando atacado e matava muito, muito menos do que o cinema tenta contar em filme de cangaceiro. Nós não fazíamos maldade com sertanejo, tinha que viver sem ódio no coração, tinha que ser amigo de todo mundo, se não estava perdido.

É, é verdade que quando não davam o que a gente pedia, tinha que tirar à força, mas não era comum.

História de usar banha de gente para lubrificar parabelo, mentira é que é. Nunca faltou o óleo nem a lixa para tirar ferrugem. Arma também tinha muita, os fazendeiros davam, se não nós perseguíamos.

Tinha fuzil, mosquetão, rifle, parabelo, mauser, tudo calibre grande, 7 milímetros, 30, 38. A gente atirava no ombro, apertando bem para não dar tranco ou, quando a coisa apertava, apoiava no braço, mas muito raro atirar de cima do cavalo. As balas, também, não ficavam, furou meu braço aqui, a perna do Balão, o ombro do Marinheiro, mas era bala boa, de fuzil, entreva e saia do outro lado, tudo bala bonita, de aço, niquelada”.
- “Mas esse tempo passou, hoje é diferente, vivo com a família em São Paulo, faço economia, gasto muito pouco, tenho três casinhas aqui.”

Paulo Afonso, a morte do Sertão

Faz alguns anos, Pitombeira voltou ao sertão. Hoje, ele não reconhece mais aquilo, nada é como onde nasceu.

“Paulo Afonso, a usina, ela matou o sertão. Hoje, não teria mais cangaço nem guerrilha, nem nada. A Usina de Paulo Afonso devorou o sertão, está comendo a caatinga, pondo civilização; muita gente sabe ler, as fazendas são diferentes, caminhão anda por tudo, tem televisão, tem pontes, tem luz chegando a todo lugar. O meu sertão, o sertão de Lampião, do cangaço, ele não existe mais.

Não há mais precisão do cavalo para a caatinga, nem o culote, meia sobre a calça, alpercata, não existe nem mais o chapéu bom para fazer chapéu de cangaceiro. Bem que em São Paulo eu vi uns que serviam, mas não é como no cinema; a gente usava chapéu de couro, bem macio, de camurça enfeitado. Comia a carne seca, às vezes um cabrito ou o boi dos outros, matando na bala”.

Maria Bonita

Do outro lado do saguão do aeroporto, Balão está fazendo graça, dizendo que cava tão fundo para cravar estacas que algum dia acha um japonês do outro lado do mundo. Dadá, mulher de Corisco, olha para ele, comenta com uma amiga: “Piada sim, mas valente, isso é uma fera”.

Balão fala ainda. “Eu brincava com Maria Bonita, lutava com ela, derrubava, rolava no chão. Lampião ria, dizia para a gente não zangar, para não dar briga. Nem parece que faz tempo que ela morreu com Lampião, pondo sangue pela boca. E hoje, eu tenho 60 anos, não tenho mais bala no corpo, o chumbo tiraram em São Salvador.

Doença? Não, cangaceiro nunca adoece, não carecia de médico. Só agora, em São Paulo, cavando um poço de estaca na Consolação é que bebi água sem saber que tinha suco do cemitério. Passei doze dias vomitando sangue, mas, no sertão, nunca adoeci. Duro era ver companheiro ferido, sabendo que a polícia degolava, implorando me leva, e não poder”.

Mulheres 

Criança também tem lembranças, fala das mulheres. “Tinha pouca mulher no bando, só dos chefões, ninguém mais queria, mas era valente, brigava junto com a gente. E tudo respeitava, respeitava mesmo, muito mais que aqui, em São Paulo”.

O avião está atrasado, os descendentes de Lampião demoram a chegar. Vera, com 14 anos, quer estudar medicina, espera que São Paulo lhe arranje um dia uma bolsa. Sua mãe mal conheceu os pais; criança ainda, foi entregue a um fazendeiro para criar. Lampião não gostava de criança no bando, ficava bravo quando um cabra apresentava sua mulher, de 13 ou 14 anos, perguntava se ia criar.

Pitombeira está falando de novo, achando difícil entender o que quer dizer o objetivo final.

Cangaceiros, sem remorsos

Os cangaceiros não dizem, mas, pela sua conversa, por suas histórias, eles não estão muito arrependidos de seus crimes. Acham que fizeram as coisas certas. Na hora de denunciar quem lhes vendeu as armas, dizem “que não se cospe no prato em que se come”. São desconfiados: na hora de dizer o nome verdadeiro, relutam muito.

Lampião era um grande líder. Representava a luta contra a opressão dos fortes, os fazendeiros da época. Essa é a opinião de Balão, Zé Sereno, Labareda, Criança, Dadá e Marinheiro. As histórias de cangaceiros são sempre iguais, só o começo é um pouco diferente. Todos se dizem injustiçados, fugidos da arbitrariedade da polícia. Acabaram na vida de crimes por consequência da situação que enfrentavam. Ninguém teve culpa. É o caso de Lampião, contado por Balão, ou Guilherme Alves. Esse cangaceiro afirma ter sido amigo e confidente do cabra Lampião:

- Lampião era comboieiro – pessoa que toca a tropa de burros de uma cidade para outra, vendendo mercadorias. Um dia, ele vortô pra casa e encontrô a famia morta. Foi uma outra famia, os Fulô. Lampião ficô revortado e entrô no grupo do padre Luiz Pereira Fagundes. Depois ele passó a liderá o grupo. Muitas vêis eu ouvi ele falá que ia se entregá pra poliça. Mais tudo mundo tirava isso da cabeça dele: se ele se entregasse, era homi morto.

Depois, Balão conta que o que estragava a moral do cangaceiro era a fama que eles tinham, quase sem culpa. Os jornais falavam mal do cangaceiro – que só queria viver, sem se sujeitar à opressão dos “coronéis de fazenda”. Para isso, é que os homens se internavam na caatinga. Geralmente, fugiam para o interior acuados pela polícia, a “volante”, por terem se insurgido contra alguma injustiça. Às vezes, eram apanhado pela “volante”, que os torturava para descobrir os cangaceiros. Eles eram obrigados a fugir e, para não morrer, matavam como cangaceiros.

E o cinema, Balão, você assistiu aos filmes de cangaceiro?

- Sisti, tudo mintira, elis qué imitá, mais num consegue.

Balão viu a morte de Lampião, viu quando o amigo tombou de costas, varado por diversas balas.

Existem algumas hipóteses segundo as quais o cangaceiro teria sido morto com veneno.

O sangue de Lampião saía, pelo nariz e pela boca. Balão fugiu do lugar. Posteriormente, ficou sabendo que os “volantes” cortaram-lhe na mesma hora a cabeça e a de Maria Bonita. Consta inclusive que ela teria sido decapitada ainda viva, pois seu ferimento não era dos piores.

- Ninguém morre de um tiro só.

Quando Balão fugiu, com o seu grupo, mandou um rapaz saber se Lampião tinha sido salvo. O rapaz voltou com fotografias das cabeças do cangaceiro e sua companheira. Os volantes decapitaram-nos e colocaram as cabeças em latas com vinagre e sal. Levaram depois essas latas pelas cidades, para intimidar o povo.

Zé Sereno, ou José Ribeiro Filho, perna quebrada, bengala. Ele conta que comprava suas armas de muita gente, até de “coronéis”. Pagava 600 cruzeiros por um mosquetão e 2 cruzeiros (antigos) por uma bala.

Mas o cangaceiro não podia fazer suas compras com a mesma tranquilidade de quem entra no armazém. Ele não podia se arriscar. Por isso, utilizava os serviços de um coiteiro. Era a pessoa encarregada de fazer as compras dos cangaceiros.

Zé Sereno, você pode dizer quem lhe vendia as armas? Não moço, num mi peça isso, tem muita gente viva lá ainda, num quero cumplicá ninguém.

Dadá, a mulher de Corisco, ouve a resposta de Zé Sereno e comenta:

- Num si cospe no prato que si come.

Isso mostra que, passados muitos anos das lutas, dos crimes e de toda aquela epopeia sangrenta, eles ainda continuam acreditando no que fizeram, não achando errado. Num si cospe no prato qui come diz Dadá, que é Sérgia da Silva Chagas, a mulher de Corisco.

Criança, ou Vitor Rodrigues Lima. Outrora uma fera; ontem, de terno e gravata, passou carregando uma criança no colo. Foi gozado, disseram-lhe: ao que chegou um cangaceiro, a pajem de criança.

Labareda, ou Ângelo Roque, 65 anos, parece muito mais velho. Quase não fala. Seus companheiros falam mais do que ele. Suas palavras são difíceis de ouvir, está muito velho. Mesmo assim, ele é muito objetivo, não gosta de muitos detalhes. Até repreende seus companheiros, quando estes contam suas histórias e se perdem nas minúcias. Marinheiro não fala nada, até o nome certo não quer dizer. Finalmente diz, é Antônio Paulo dos Santos.

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TU SABE QUEM FOI INÁCIO? O HOMEM QUE TAPEOU ANTÔNIO SILVINO?

 Era uma vez... Dois primos, Inácio e Severino, brejeiros dos bons, que viajavam semanas a fio, de vinte a trinta quilômetros por dias com os burros carregados, só parando para alimentação frugal e à noite para o cochilo mal acomodado, sempre debaixo de árvores que dessem uma boa sombra, e os protegessem do sereno da noite, como os Juazeiros, Mulungus, Trapiazeiros, Umbuzeiros e Craibeiras pelo Agreste Nordestino: Brejo, Curimataú, Seridó, Cariri e Sertão com uma tropa de burros: dois de sela e doze animais de carga, com seus arreios aonde dependurados iam à malotagem, bruacas ou os sacos com as mercadorias, sempre cobertas com lonas, fora a burra madrinha, velha e sabida que encabeçava e escolhia os caminhos melhores, sempre enfeitada com fitas e um sininho característico ou mesmo um chocalho com um som bem peculiar, onde os outros animais a seguiam quer de dia ou à noite; desses burros, dois eram animais com a troçada do dia a dia: comida, redes, água, capote feito de algodão grosso, onde matava o frio e os protegias da chuvas (poncho),  panelas, fumo de corda, cachaça, trempe de ferro para cozinhar, lona, sabão e o diabo a sete. A comida se resumia, quase que carne de charque, ou carne seca (chamada de sol) farinha de mandioca, queijo de coalho, toucinho, sal, café, açúcar, arroz, temperos, feijão dos dois tipos: o mulatinho e o de corda, xerém de milho e um tipo mais fino para fazer cuscuz.


Saiam sempre de Riacho Fundo, fazenda localizada entre Esperança e Areial na Paraíba, Próxima da fazenda Arara do meu avô Manoel Henriques (Virgolino) da Silva.
 
 Inácio

Viviam nas propriedades de seus familiares, onde há muito se produzia feijão de arranca (mulatinho), fumo, que era transformado em “fumo de rolo”, pronto para ser usado, erva doce, batatinha inglesa, agave, café e mais uma finidade de alimentos para sua sobrevivência e para a comercialização.

Muitos tropeiros também partiam do Brejo Paraibano, levando estas mercadorias como também o açúcar mascavo, a cachaça e a rapadura, produzida nos engenhos do Brejo.

No entanto, esses dois meus parentes, há muito tempo só negociavam com feijão, café e fumo, lá pras bandas de Parelhas, Ouro Branco, Macaíba e adjacências no Rio Grande do Norte. Numa dessas viagens, levaram apenas feijão e fumo de corda, não conseguiram vender o feijão, pois naquele ano o inverno fora bom e quase todo mundo tinha de sobra para comer e vender. Venderam o fumo ligeiro e Severino se decidiu tentar vender os sacos de feijão mulatinho na cidade de Natal,RN.

Disse para o Inácio – Vá levar os burros descarregados pra casa, avise a família meu destino e venha se encontrar comigo por lá.

Assim o fez. Um seguiu com seis burros carregados e o outro desceu em direção a Esperança para fazer o que haviam combinado.

Inácio logo que pode, empreendeu viagem, num burro bom, meeiro que o cabra chegava a cochilar em cima da sela. Num dia e meio espirrou na capital Rio-grandense, foi direto para o local marcado. Ficou meio contrariado por não encontrá-lo, danou-se a procurar pelos arrabaldes: locais onde sempre se reuniam os tropeiros, depois de desocupados, como ainda se ver hoje nos dias de feiras nas cidades do interior, (sempre um campo de futebol, em terreno abandonado). Bares, bodegas, lupanares, casas de jogos, pensões baratas, currais onde sempre os animais esperavam, pacientemente, pelos donos, a um preço módico, com direito apenas a água e a garantia de que de lá ninguém os roubariam.

Passou-se um dia e nada do primo. Tirou onda de detetive. Começou a fazer perguntas e nada de notícias, já aperreado, passado quase uma semana, mandou avisar pra família do acontecido e que iria continuar nas buscas. Era um mistério medonho. O homem desaparecera sem deixar rastros. Como o primo tinha vontade de conhecer o norte, ele logo pensou que esse seria o rumo que tomara, para vender o danado do feijão, achando que por ali não havia encontrado negócio, seguiu viagem, e na primeira cidade, teve finalmente notícias de um tropeiro com seus burros. Era só esta notícia que tivera, podia ser mentira mais também verdade, resolveu tirar suas dúvidas, pois já faziam mais de duas semanas da separação dos dois. Seguiu em frente e nada de alcançá-lo.

Notícia aqui e notícia acolá, depois de três meses chegou à cidade de Sena Madureira no Acre, local onde estava havendo migração de nordestinos para trabalhar com a extração da borracha, ficou por lá, sempre procurando o primo e trabalhando juntamente com aquela multidão de desgarrados da sorte. Lutou durante uns três a quatro anos até que resolveu voltar sem o parente, - o mato havia aberto e fechado e engolido o homem – e, como já havia amealhado um bom dinheiro. Fez finca pé de lá e em pouco tempo chegava ao seu velho Brejo, com o coração partido com o sumiço do amigo. Não sabia como se apresentar e narrar aos familiares do desaparecido. Havia de fato enviado cartas, mas falar de cara a cara era outra coisa, olhar nos olhos dos pais matutos e dizer que seu filho não existia era outra coisa mais dura de enfrentar.

Trazia consigo bastante dinheiro e muitas armas, frutos do seu trabalho como seringueiro.

A fama de “rico” logo chegou aos ouvidos de muita gente, inclusive de grupos de cangaceiros, que naquela época perambulavam entre o Brejo e o Cariri Paraibano como: Antonio Silvino, João de Banda, Nêgo Zé Luiz de Queimadas, João Pichaco e tantos outros desocupados.

Um dia lhe contaram que Antônio Silvino e João de Banda vinham tomar o dinheiro e as armas que possuía. Mudou-se da propriedade onde vivia e foi pra bandas de Pocinhos numa fazenda chamada Amaro. Enterrou as referidas armas e escondeu o dinheiro suado que havia conseguindo na luta do ouro branco e contra a malária (impaludismo), no Norte do País, na cidade de Sena Madureira no Acre. Dormia de dia e vigiava de noite, uma bela noite chegou Silvino com sua tropa, cutucaram tudo, reviraram todos os caixotes da casa fizeram ameaças a uns moradores velhos, mataram de tiros várias galinhas e nada de dinheiro e armas.

O danado do bicho também era sabido e jurou que Antônio Silvino não tomaria seus anos de trabalho.

Mudou-se para outra propriedade de nome Algodão perto de Soledade PB; a velha raposa logo descobriu o seu paradeiro e foi bater lá, mas o cabra dizia que “seguro morreu de velho e prevenido ainda estava vivo”, procurou ainda mais se esconder e despistar os cabras que viviam envenenados por dinheiro e armas.

Cada vez mais os cangaceiros ficavam com raiva, por não achar o que não era dele e desta vez, Antonio Silvino, fez o que não era seu costume. Inácio havia ido a fazenda Arara providenciar um enxoval de um sobrinho que havia nascido deixando um menino tomando conta da casa.        
Antonio Silvino emboscou-se com sua tropa atrás de umas pedras, esperando uma oportunidade; nisso viu o menino botar a cabeça fora de casa e aí pegou o molecote, vendo mais uma vez que havia dado o bote perdido, com raiva, deu uns riscos de punhal nos couros do pequeno vigia para que servissem de recado, matando dessa vez umas vacas que estavam no curral atrás da casa.

Inácio fugiu novamente, desta vez foi se embrenhar no lugar chamado Lajedo Vermelho, onde moravam outros parentes, perto da cidade de Soledade. Dizendo sempre que o que era dele ninguém botava a mão. Dessa vez quase que os cabras o pegavam, escapou por um triz. Aprendeu a lição e parou de se gabar e contar lorotas sobre quem era e o que tinha.

Nesse ínterim havia conhecido uma moça de nome Mônica do Município de Santa Luzia, formosa e rica, namorou, noivaram e casaram. Nunca mais Antônio Silvino teve notícias dele. Comprou duas fazendas: Canoa e Poço Salgado, juntamente com seu cunhado (Anysio) e com o dinheiro que tinha guardado montaram uma desencaroçadeira (bolandeira) e prensa de algodão, comprava e vendia gado, negociava com peles de animais num pequeno curtume que tinha na fazenda, possuía caminhões e um automóvel tornando-se um dos mais importantes chefes político e poderoso do lugar. (Ribinha). Antônio Silvino levou a breca, mas não pegou o seu dinheiro nem suas armas.

Muito tempo depois, voltava da feira, montado numa burra branca e pequena, mas que voavam pelas estradas pedregosas da região, enquanto seus filhos e meu tio vinham no caminhão com as mercadorias negociadas na feira, quando - já velho – subiu os degraus da casa e sua esposa abriu a porta contente e satisfeita, se surpreendeu com um cabra, que já o vinha seguindo, o atacando pelas costas, dando-lhe uma gravata com um punhal na mão, era um monstro de forte, dominando-o totalmente, a esposa tentou socorrê-lo, mas o satanás plantou-lhe um pontapé que a deixou desmaiada, nisso entra meu tio com seus dois primos e vendo aquela cena horrível, pegou uma trave de miolo de Aroeira que estava atrás da porta, danou na nuca do assaltante derrubando-o, o bicho ainda ficou ciscando no chão e imediatamente os outros tiraram suas facas e fizeram o resto do serviço. Mas, como era dia claro, engancharam o negrão pela gola da camisa no armador e esperaram que anoitecesse, para no silêncio e no escuro da madrugada, sem que ninguém visse, pudessem carregá-lo numa rede e jogá-lo num serrote que havia distante dali uma meia légua, num lugar quase inacessível.

Conto essa história dos meus parentes, hoje, porque já se passaram mais de cem anos e os personagens já não existem mais e nunca souberam quem era o bandido que tentou roubar o velho e cansado Brejeiro Inácio.




             Túmulo de Antonio Silvino no Cemitério Monte Santo em Campina Grande PB, reformado por iniciativa própria de Sulamita de Souza Buriti (Foto).

Pescado em Grijalva Maracajá

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A EDUCAÇÃO PELA PEDRA - MEMÓRIAS DA INFÂNCIA DE CELSO FURTADO, NO SERTÃO, ENTRE OS PERIGOS DO CANGAÇO, DA POLÍTICA E DA NATUREZA

 Por Roberto Pompeu de Toledo

Para o menino Celso Furtado a vida era uma sucessão de perigos. O perigo dos cangaceiros que vez por outra invadiam Pombal, sua cidade natal, no sertão da Paraíba, por exemplo. "Lá vêm os cangaceiros", avisavam, e todo mundo saía correndo. Os cangaceiros avançavam pelas ruas em cavalgadas que espalhavam poeira e terror. Uns queriam bancar os bem-educados e sentavam-se no bar, pediam café, respeitavam as senhoras.

Outros agiam como brutamontes. Ameaçavam, atiravam, agrediam, intimidavam, barbarizavam. Numa dessas ocasiões o pai de Celso agarrou-o e levou-o a um esconderijo, onde ficaram até os cangaceiros irem embora. "Tantas vezes vi pessoas mortas na rua", lembraria ele, muitos e muitos anos depois. Convocado para o serviço militar no período da II Guerra, Celso integrou-se à Força Expedicionária Brasileira, na Itália – mas dizia que viu mais mortos na Paraíba, na infância, do que nas frentes de batalha.

Havia a violência política, em acréscimo à dos fazendeiros. Todo mundo estava envolvido na "política", mas não se pense que essa "política" tenha a ver com o debate dos problemas do município, do estado ou das grandes questões nacionais. A "política" se traduzia em escaramuças entre famílias rivais. Eram particularmente agudas em épocas eleitorais, e podiam degenerar em pequenas guerras civis.

Num dia de 1930 alguém chegou correndo à casa de Celso: "Mataram João Pessoa!". Não era um dia qualquer para o menino. Era o dia em que completava 10 anos, 26 de julho. Quem trazia a notícia era um empregado. Eram sempre os empregados que traziam as notícias. E não podia haver notícia mais terrível – Pessoa, o popular governador (ou presidente, como se dizia então) da Paraíba, fora emboscado por um inimigo numa confeitaria do Recife. Entre as pessoas simples do estado, João Pessoa gozava de mística que tangenciava o sobrenatural. Celso ouvia da empregada da casa histórias como a de que o governador se disfarçava de pessoa comum e saía "para fazer o bem" nos bairros pobres. Era a mesma legenda que acompanhava os "reis bons" da Idade Média. À noite, a empregada o levou a uma procissão encabeçada por um andor onde ia o retrato de João Pessoa, venerado como santo.


 Celso Furtado, 
(Pombal, 26 / 07 /1920 — Rio de Janeiro, 20/ 11 / 2004)

Seguiu-se um período em que os adversários políticos do líder assassinado, em cada cidade paraibana, eram atacados como se cada um deles fosse o assassino. Agrediam-nos nas ruas, incendiavam-lhes as casas, feriam, matavam. Na manhã seguinte, ao sair de casa, a primeira coisa com que Celso deparou foi o cadáver de um homem estendido na rua. Ali perto ficava a usina de propriedade de um notório adversário de João Pessoa. Um alvo fácil para os vingadores do governador, portanto, tanto assim que soldados do Exército foram destacados para protegê-lo. A família Furtado, pelo sim, pelo não, achou prudente afastar-se do bairro. Refugiou-se na casa da avó de Celso, até o ambiente se acalmar.

Quando não vinha dos homens, o perigo vinha da natureza. Celso tinha 4 anos na época da grande cheia de 1924. As águas, em fúria, invadiram sua casa, destruindo-lhe a parte da frente. A casa só não veio abaixo por milagre. Vários de seus compartimentos ficaram inutilizados, inclusive a cozinha. Tiveram de trazer o fogão para a sala, por causa disso. Temerária decisão. Celso, numa hora em que brincava sozinho na sala, jogou uma bola para cima e ela foi cair bem no caldeirão que ardia no fogo. O caldeirão tombou nas costas do menino. "Ah, sofri muito", recordaria. Uma marca da queimadura ficou-lhe nas costas pelo resto da vida.

E havia os perigos do fanatismo religioso. Celso Furtado cresceu num tempo em que a Guerra de Canudos ainda estava fresca na memória dos povos do sertão. Um tio-avô seu participou da guerra, do lado das forças que combatiam os beatos de Antônio Conselheiro. Muitas histórias do período se contavam na família. Depois veio o padre Cícero, ainda vivo quando Celso despertava para o mundo. Para o menino, João Pessoa e padre Cícero eram figuras da mesma extração. Pertenciam ambos ao mesmo universo popular e místico.

Celso Furtado, que morreu no sábado, dia 20, tinha um olhar triste. Ele foi ministro, embaixador, conselheiro de presidentes, membro da Academia Brasileira de Letras. Notabilizou-se como professor nos melhores centros universitários do mundo, escreveu livros e artigos traduzidos em múltiplos idiomas. Conheceu os grandes deste mundo. Era reconhecido como um dos mais destacados intelectuais brasileiros. No entanto, o olhar triste denunciava a eterna presença, lá no fundo, do menino assustado entre os cangaceiros, a violência política e a fúria da natureza. Era um nordestino educado pela pedra, para usar a expressão de outro filho da região, o poeta João Cabral de Melo Neto.

Nota: As recordações de infância aqui alinhadas foram relatadas por Celso Furtado ao autor destas linhas em duas longas séries de entrevistas, uma em 1993, outra em 1999.
Publicado originalmente na coluna Ensaio da Revista Veja, Edição 1882 . 1° de dezembro de 2004.
Link para a matéria: Revista Veja
Foto: Portal da imprensa

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O DESCONHECIDO CANGACEIRO ANTONIO BRAZ, O TERROR DO SERIDÓ

Por Rostand Medeiros

No Rio Grande do Norte, quando o assunto é cangaço, a primeira noção que a maioria das pessoas possuem remete ao ataque de Lampião a Mossoró, a resistência do povo mossoroense ao 13 de junho de 1927, o assassinato de Jararaca e a sua metamorfose em santo popular. Na sequência, de forma esporádica, alguns recordam as andanças de Antônio Silvino no inicio do século XX, a ideia que este cangaceiro era um homem de honra e a famosa história que o mesmo mandou um dos seus “cabras” comer um litro de sal, após este ter reclamado da comida que uma mulher preparou para o grupo e esqueceu de pôr este condimento.

Por fim vem à figura do único grande chefe de um bando de cangaceiros potiguar, Jesuíno Brilhante, homem injustiçado em meio a dilacerantes lutas políticas, enviesadas de épicas lutas com acentuados e tradicionais códigos de honra. ( 1 )

De forma geral, os pesquisadores do tema no Rio Grande do Norte produziram bons trabalhos, que muito ajudaram a esclarecer os aspectos que envolvem os mistérios deste gênero de banditismo social. Contudo a história é mais ampla, diversificada e pautada de fatos desconhecidos.

As testemunhas destes episódios a muito descansam no solo sertanejo, restando a tradicional tarefa de buscar a história em carcomidas e amareladas páginas de antigos jornais, em documentos oficiais esquecidos em bolorentos e desaparelhados arquivos e na tradição contada de pai para filhos nos alpendres das antigas fazendas do sertão. A busca é difícil, mas a colheita é normalmente compensadora.

Debruçado sobre a coleção do jornal republicano “O Povo”, editado, encontramos uma série de reportagens que apontam a existência do desconhecido cangaceiro Antônio Braz e do seu diminuto bando, que além de uma extrema valentia, é apontado como sanguinário, arrogante e desaforado com as autoridades.

As notícias sobre a atuação de Antônio Braz estão contidas em várias edições deste jornal, entre os dias 23 de novembro de 1889 a 11 de agosto de 1891. ( 2 )

Tudo indica que Antonio Braz era da Paraíba, onde lhe eram creditados oito mortes em sua vida de tropelias, tendo sido condenado a uma pena de 48 anos de detenção, que cumpria na cadeia pública de Pombal. Entre os anos de 1894 e 1895, este cangaceiro fugiu desta detenção, estando há quase cinco anos vagando pelos sertões da região fronteiriça da Paraíba e Rio Grande do Norte, mais precisamente na área ao longo da bacia do Rio Piranhas. ( 3 ) 

Amedrontava os fazendeiros de Pombal, Catolé do Rocha e Brejo do Cruz, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, Serra Negra do Norte e Caicó, mais especificamente a então vila de Jardim de Piranhas, eram seus pontos de atuação. Antônio Braz era um cangaceiro que as informações da época o classificam como “temível”, pois seu bando fora protagonista de inúmeros assassinatos, roubos, espancamentos e estupros. Andava este bando sempre com um pequeno número de membros, com no máximo quatro a cinco integrantes, entre eles o seu irmão Francisco.

Catolé do Rocha, em foto do escritor Mário de Andrade, em janeiro de 1929 - Fonte Rostand Medeiros Tok de História

Até mesmo a sua perseguição gerava a velha ação de abuso de poder por parte da polícia. Em 29 de junho de 1889, as páginas de “O Povo”, divulgaram que um grupo de policiais paraibanos vindos de Catolé do Rocha, invadiu por duas ocasiões o território potiguar em caça de Antonio Braz e seu grupo. Na primeira ocasião os policiais haviam praticado uma série de violências, arbitrariedades e até roubos. Na segunda ocasião, na pequena área urbana de Jardim de Piranhas, que nesta época abrigava uma população de 200 almas, ouve um cerrado tiroteio entre os policiais do estado vizinho e os cangaceiros, sendo os policiais obrigados a recuar devido à reação do bando.

Não há maiores detalhes sobre este tiroteio, mas por este período, os aparatos policiais da Paraíba e do Rio Grande do Norte eram formados por pequenos contingentes de homens mal armados, violentos, corruptos e extremamente despreparados, que pouco diferiam dos cangaceiros e bandidos que deviam perseguir. (4) 

Tudo indica que Braz encontrou na pessoa do coronel Florêncio da Fonseca Cavalcante, chefe da vila de Jardim de Piranhas, o apoio e proteção que necessitava para suas ações na região. O coronel Florêncio exercia nesta época o cargo de primeiro suplente de juiz municipal de Caicó. Esta ligação entre homens de poder e cangaceiros sempre resultava em sangue e em jardim de Piranhas não foi diferente. Ainda no ano de 1889, Antônio Braz matou na comunidade de Timbaubinha, três quilômetros ao norte da vila, o agricultor Manoel de Souza Franco, que mantinha com o coronel Florêncio, uma questão de posse de terras.

O caso se deu da seguinte forma; o pai de Manoel, Roberto Franco, morrera em 1878 e deixara como herança um pequeno sítio na Timbaubinha. Haviam dívidas contraídas pelo falecido, que foram cobradas pelos credores, entre estes estava o coronel Florêncio, que mesmo sendo suplente de juiz, recorreu a “força d’armas”, utilizando Antônio Braz e seu grupo para resolver a questão.

Pouco tempo depois do tiroteio com a polícia da Paraíba, Braz tentou aniquilar Manoel cercando sua casa e ateando fogo à mesma. Houve reação do agricultor que, ajudado por outros parentes, afugentou os cangaceiros. Como Manuel morava em sua propriedade cercado de familiares, sentia certa segurança, mesmo assim passou a ter muito cuidado em suas saídas. Já Braz e seu grupo, sempre espreitavam perto da propriedade, buscando uma ocasião para desfechar a ação fatal.

No dia 13 de novembro, quando Manoel Franco voltava do roçado, em pleno meio-dia, entrando pela parte traseira da sua casa, foi alvejado com dois tiros e morreu sem reagir. Não satisfeito Braz ainda lhe fez quatro perfurações de punhal. Aparentemente o cangaceiro aproveitou um momento de descuido do agricultor e de sua família para fazer o “serviço”. Após matar Manoel, o assassino ordenou a todos que o corpo deveria ficar estendido no pátio defronte a casa, sem ser enterrado, para “dar o exemplo”.

Os jornais comentavam que a questão entre o coronel e Manoel Franco chegara ao fim e que agora “ninguém se oporá mais ao coronel”, apontando como o mentor do crime. Diante da repercussão do caso, Antônio Braz e seu grupo seguiram para a região de Catolé do Rocha, onde de passagem pelo lugar “Barra”, deram uma formidável surra em uma mulher.

Passou a existir na região um clima de medo muito forte, onde o jornal denunciava a inércia das autoridades, com uma forte critica para o número pequeno de policiais na região. A repercussão do assassinato de Manoel Franco e o medo do povo, fizeram com que as autoridades intensificassem as buscas ao bando. O então comandante da polícia, o capitão Olegário Gonçalves de Medeiros Valle, ordena mais empenho dos seus comandados.

Não demorou muito e os policiais tiveram um encontro com o cangaceiro; ao passarem próximos de uma casa as margens do Rio Piranhas, tiveram a surpresa de estar diante de Antônio Braz. Este se encontrava equipado com suas armas, já montado em seu cavalo, não se intimidou com a tropa e fez fogo contra o grupo, recebendo uma chuva de balas em resposta. O cangaceiro fez o segundo disparo e fugiu a galope.

Na fuga, Braz encontrou um homem na estrada e lhe ordenou que fosse com o cavalo para Jardim de Piranhas, então o cangaceiro desapareceu na caatinga. Sem maiores opções e temendo o pior, este homem fez o que fora ordenado, nisto a força policial seguia no encalço do bandido, quando viram o homem montado em um cavalo idêntico ao de Braz e fizeram fogo. Para a sorte deste cavaleiro, os policiais atiravam muito mal.

Sentindo o cerco apertar, Antônio Braz e seu grupo buscam abandonar a área do Rio Piranhas, sendo noticiada uma incursão a Paraíba, na região de Piancó, onde se informa, sem maiores detalhes, ter o bando assassinado um homem. O grupo será visto novamente no Rio Grande do Norte, em 11 de fevereiro de 1890, no lugar “Riacho Fundo”, onde uma tropa policial se depara com o coito do grupo no meio da mata. Ocorre rápida escaramuça, sem vitimas, tendo o bando fugido do local nos seus cavalos sem as selas, roupas e outros utensílios. A polícia persegue os bandidos por quase seis léguas, o que seria uma média de trinta quilômetros, abandonando a perseguição por ter chegado à noite.

O bando passa a agir principalmente na Paraíba, mas a ação policial neste estado se torna mais forte. Em junho de 1890, Braz e seus homens travam um forte tiroteio contra uma patrulha da polícia paraibana, da cidade de Pombal, tendo o grupo perdido alguns animais de montaria.

Rumam então para a fronteira do Rio grande do Norte, na região da cidade de Serra Negra do Norte. Esta cidade potiguar possuía na época um diminuto destacamento de três praças e estes não proporcionariam alguma resistência ao grupo. Na fazenda Jerusalém, do coronel Antônio Pereira Monteiro, tomaram através de ameaças os cavalos deste proprietário, tendo a malta de celerados seguido novamente em direção a Paraíba. A fazenda Jerusalém está atualmente localizada no município de São João do Sabugi.

Mas as tropelias de Antonio Braz e seu bando não param, em 4 de agosto de 1890, na então vila paraibana de Paulista, pertencente a Pombal, este cangaceiro cria uma situação de escárnio para as autoridades, que chega a ser inusitada. Neste dia, neste lugarejo onde habitavam umas 50 almas, Braz conduz preso o bandido que respondia pela estranha alcunha de “Francisco Veado”. Na vila ele obriga dois paisanos a levarem o prisioneiro para o delegado de Pombal, com uma carta para a autoridade, onde dizia que “não estava disposta a deixar livres tantos cangaceiros, que por ora remetia aquele, e que mais tarde... ele próprio iria”. (5)

Parece uma tanto fantasiosa esta última afirmação do jornal, mas a partir desta data, cessam toda e qualquer nota sobre o cangaceiro Antônio Braz e suas atividades.

Esta última notícia data de agosto de 1890, coincidindo com o retorno de chuvas depois de um período de fortes secas entre os anos de 1888 e 1889. É fácil supor que devido ao risco e periculosidades inerentes a atividade de cangaceiro, esta já não fosse tão interessante e a terra molhada vai dispersando o grupo em busca de outras formas de sobrevivência (6).

Infelizmente, não sei como terminou este episódio, ou mesmo a vida de peripécias deste inusitado cangaceiro e seu bando. Não consegui mais nenhuma informação nos jornais da época e nos arquivos existentes em Natal e Caicó.

Sobre o aspecto de atuação territorial, o cangaço de Antônio Braz ocorreu praticamente na mesma área que notabilizou o único potiguar que chefiou um bando de cangaceiros, Jesuíno Brilhante. Já em relação à sua prática como cangaceiro, Antônio Braz era tido como “terrível”, já Jesuíno, segundo os relatos históricos de Henrique Castriciano e Câmara Cascudo (7), era o “gentil homem”, um “homem de valores”, que estava na vida do cangaço pelas injustiças do seu tempo.

Notas

(1) Os livros que melhor tratam sobre o ataque de Lampião a Mossoró são “Lampião em Mossoró”, de Raimundo Nonato, “A Marcha de Lampião”, de Raul Fernandes, “Lampião no RN-A história da grande jornada”, de Sergio Augusto de Souza Dantas. Sobre Antônio Silvino no Rio Grande do Norte, temos “Antônio Silvino no RN” de Raul Fernandes, “Antônio Silvino-O homem, o mito e o cangaceiro”, de Sergio Augusto de Souza Dantas. Já Jesuíno Brilhante serviu de tema para o livro “Jesuíno Brilhante-o cangaceiro romântico”, de Raimundo Nonato. Já Câmara Cascudo, em seu livro “Flor de romances trágicos”, aponta vários aspectos das atuações dos cangaceiros Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino, Lampião, Jararaca e outros.

(2) Existe uma coleção microfilmada deste jornal no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. 

(3) Esta não seria a primeira notícia sobre fuga de presos da Cadeia Pública de Pombal. Em 18 de fevereiro de 1874, 25 anos antes da fuga de Antônio Braz, Jesuíno Brilhante e seu bando atacaram a guarnição desta cadeia, libertando quarenta e três detidos, entre eles membros do seu bando.

(4) Para se ter uma ideia da situação numérica do efetivo policial, no jornal “A Republica” de 9 de janeiro de 1890, era publicada a “Ordem do dia nº 6”, emitida em 4 de janeiro do mesmo ano, onde o então governador do Rio Grande do Norte, Adolfo Afonso da Silva Gordo, organizava o Corpo de Polícia com 1 capitão comandante, 2 tenentes, 4 alferes, 2 primeiros sargentos, 4 segundo sargentos, 1 sargento ajudante, 2 furriéis, 10 cabos, 120 soldados e 4 corneteiros. Eram apenas 150 policiais para todo o estado. 

(5) A adoção grifada da palavra “cangaceiro”, pela edição deste jornal, chama a atenção, pois neste período os jornais normalmente utilizavam termos como “banditismo”, para designar a ação, “celerados” e “salteadores” para definir os protagonistas, dificilmente nesta época encontramos nos textos jornalísticos, o termo que designariam estes bandidos e assim seriam mitificados. Entretanto, vale ressaltar que o jornal “O Povo” era editado em uma cidade sertaneja, onde os bandidos errantes que carregava suas armas e utensílios, preferencialmente nos ombros, a partir da metade do século XIX, passam ser conhecidos como “aqueles que estão debaixo da canga” “aqueles que estão no cangaço” e daí a “cangaceiro”, não sendo difícil de supor que, por este jornal está inserido no sertão, esta tenha sido a primeira vez na imprensa potiguar que o termo “cangaceiro” tenha sido utilizado. 

(6) Sobre a seca de 1888 e 1889 e outros assuntos a respeito deste fenômeno climatério, ver o pronunciamento do então Senador pelo Rio Grande do Norte, Eloy de Souza, intitulado “Um problema nacional (Projecto e justificação)”, pronunciada na seção de 30 de agosto de 1911 e editado em formato de brochura pela Tipografia do Jornal do Comercio, em 1911. Sobre a teoria do crescimento das ações de grupos cangaceiros nos períodos de estiagem, ver “Guerreiros do sol”, de Frederico Pernambucano de Mello. 

(7) Com relação aos escritos de Henrique Castriciano sobre Jesuíno Brilhante, temos no jornal "A Republica", edição de 25 de julho de 1908, uma interessante crônica deste poeta potiguar sobre este cangaceiro.

*Rostand Medeiros é Pesquisador de Natal, RN

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