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sábado, 16 de abril de 2016

1937 – NOTÍCIAS DO CANGAÇO

Por Rostand Medeiros

Eu sou uma pessoa que sempre acreditei na democratização da informação histórica. A ideia de uma sociedade mais justa, no meu entendimento, passa por esta questão. Pode ser bobagem, mas acredito nisso!

Neste sentido, quero presentear os leitores deste nosso simples blog com algumas matérias sobre o tema cangaço, publicadas no periódico DIÁRIO DE PERNAMBUCO”, de 1937.


Quero publicar, pois acho que existe muita gente interessada no tema e muito picareta se arvorando de pesquisador e “rastejador da história”.

O problema é que o tema cangaço abre espaço para isso, pois muito do que se tem é pura tradição oral.

Mas vamos para as notícias.

As primeiras tratam da libertação do ex-cangaceiro Antônio Silvino. Já velho e fatigado, Silvino deixava a Casa de Detenção de Recife para uma vida onde iria gozar a liberdade.

O mesmo Silvino que nas suas andanças pelo sertão, um dia esteve na fazenda Ramada, onde veio pedir dinheiro para meu bisavô, Joaquim Paulino de Medeiros, o conhecido coronel Quincó. Este lhe deu alguns “cobres” para que seguisse adiante e deixasse sua propriedade em paz. Uma vez contei isso a um pesquisador do tema, mas ele não acreditou. Me pediu uma “comprovação escrita” do fato!

Mas voltando a Silvino, este veio a falecer em Campina Grande, em 1944. Minha avó, Benícia Jacob de Medeiros, o viu nesta progressista cidade paraibana. Dizia que era “alto”!



Bem, a segunda parte deste material mostra o cangaceiro maior do Brasil, Lampião. Este material é o mesmo que o libanês Benjamim Abrahão conseguiu indo no meio do mato atrás do “Rei do Cangaço”, sua Maria Bonita e toda trupe. A ideia do gringo era filmar e fotografia estes Guerreiros do Sol e ganhar uma grana junto com um empresário cearense.

Tanto ele, quanto Lampião, sua Maria e outros cangaceiros pagariam com a vida por esta ideia. Muito disso tem haver com a publicação deste material no periódico recifense. Conto mais desta história em https://tokdehistoria.wordpress.com/2011/08/03/quando-a-estrela-foi-lampiao/

Não tenho certeza, mas acho que a última notícia é pouco conhecida…
Boa visualização!

Rostand Medeiros








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O CADERNO DAS SOLIDÕES

Por Rangel Alves da Costa*

A avó dizia e sempre repetia à neta que lesse tudo na vida, pois nada mais importante que a escrita, mas que tudo fizesse para não se aproximar, e muito menos ser personagem, do caderno das solidões.

Mas o que significa o tal caderno das solidões, indagava a neta, ao que a velha senhora respondia: É a escrita mais triste que possa existir. Um caderno onde cada página conta uma história de dor e sofrimento, e tudo sempre causado pela solidão.

Não se esquecia de acrescentar: Bem que poderia ser apenas uma solidão, sobre um estado de distanciamento de tudo, mas de muitas solidões. A solidão de estar sozinho, a solidão da distância, a solidão da saudade, a solidão da ausência de tudo, a solidão em meio a tudo.

E também a solidão provocada pelo instante, pelo sentimento, pela modificação no estado de espírito perante diversas situações da vida. A pessoa tão afastada de si mesmo fica que de repente sequer se reconhece enquanto presença. E tudo se torna triste, vazio, desoladamente aflitivo.

A neta disse que não se preocupasse, pois jamais procuraria encontrar tal caderno. Então a avó, com olhos entristecidos, cabisbaixa e pausadamente afirmou que infelizmente ninguém poderia fugir de encontrá-lo. O caderno das solidões estava aberto em todo lugar.

Aberto em todo lugar e a todo o momento esperando uma escrita nova, vinda de qualquer um, de qualquer pessoa, mesmo assim como a neta que se achava demasiadamente segura de si para sofrer suas agruras.

Muita gente que sorri, que vive demonstrando alegria, que sempre parece envolvida pela felicidade, ainda assim tem o seu nome guardado naquelas páginas. Não só numa página, mas por vezes em sequências angustiantes.


A cada página uma descrição sofrida, melancólica, aflitiva. A cada descrição uma paisagem de medo, de vazio, de insegurança, de impossibilidade. A cada relato a sensação de desesperança, de fragilidade, de fim. Nas letras trêmulas leveza e o peso de sequer saber onde está e porque escreve.

“Chuva fina, sereno, mas que temporal em mim. A noite mais escurecida, molhada, mais triste e chorosa, não passa de um espelho daquilo que sou eu agora. E sequer tenho força ou ânimo para ir até a vidraça embaçada e escrever: morri!”.

“Não sei por que estou assim, assim tão distante de tudo e de mim mesma. Eu bem que poderia abrir a porta e sair, e cantar, e brincar. Mas não sei fingir minha dor, minha saudade, minha aflição. Queria novamente amar, ser alegre novamente, trazer a felicidade para pertinho de mim. Por nada disso conseguir é porque estou triste assim, tão distante de tudo e de mim mesma”.

“Somente agora sei por que as flores sofrem, choram e morrem. Somente agora sei por que os outonos vivem se repetindo em muitas folhagens humanas. Somente agora sei por que o orvalho chora na noite a amanhece oculto na sua solidão. Tudo assim acontece por que o destino nem sempre é de viver, mas muito mais de sofrer na solidão”.

“Quem dera um copo de veneno e uma fotografia do meu amor de um dia. Embeberia o retrato no veneno e sorveria, prazerosamente, a morte lenta. E morrendo assim, lentamente, aos poucos dissiparia o pensamento, a saudade e o amor ainda existente. Até fechar o solhos com sorriso no lábio. Porque ele foi beijado um dia”.

Assim os relatos no livro das solidões. Leituras muito tristes para quem se acha dela distanciado. Verdades que até supõem inexistentes, mas que são escritas a cada instante. Por mim, por você por qualquer um que esteja assim. Assim na solidão.

Poeta e cronista
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LAMPIÃO QUEM FOI


Virgulino Ferreira da Silva, conhecido popularmente pelo apelido de Lampião, foi o principal e mais conhecido cangaceiro brasileiro. Nasceu na cidade de Serra Talhada (PE) em 7 de julho de 1898 e faleceu em Poço Redondo (SE) em 28 de julho de 1938. Ficou conhecido como o "rei do Cangaço".

Biografia:

Nasceu numa família de classe média baixa.

Trabalhou com o pai, na infância e parte da adolescência, cuidando de gado.

Trabalhou também com transporte de mercadorias em longa distância, utilizando burros como meio de transporte de carga.

Envolveu-se em brigas familiares na juventude e entrou para um bando de cangaceiros para vingar a morte do pai.

Em 1922, passou a comandar um bando de cangaceiros.

Em 1922, seu bando efetuou assalto à casa da baronesa de Água Branca (AL).

Em junho de 1927, Lampião comandou seus homens na fracassada tentativa de tomar a cidade de Mossoró (RN). Chegaram nesta ocasião a sequestrar o coronel Antônio Gurgel.

Na década de 1930, Lampião e seu bando passou a ser procurado por policiais de vários estados do Nordeste. O bando passou a viver de saques a fazendas e doações forçadas de comerciantes.

Em 1930, conheceu Maria Déia (Maria Bonita) que ingressou no bando, tornando-se mulher de Lampião. Em 1932 nasceu a filha do casal, Expedita.

Em 27 de julho de 1938, Lampião e vários cangaceiros do bando estavam na fazenda Angicos, sertão de Sergipe, quando foram mortos por policiais da volante do tenente João Bezerra.

Fonte: suapesquisa

No ideário popular, Virgulino conquistou o apelido de Lampião num de seus embates com a polícia militar, quando gabava-se que - no decorrer de uma luta - sua espingarda não deixara de ter clarão, "tal qual um lampião".

Lira [LIRA, João Gomes de. Lampião: Memórias de um soldado de volante. Floresta (PE): PMF/SECD, 1997. vol. 1] admite quatro hipóteses para a alcunha famosa, como se segue:

A primeira delas surgiu após a retirada dos Ferreira para Alagoas onde fixaram residência no lugar Santa Cruz do Deserto, município de Mata Grande. Com eles foram muitos amigos e agregados, como: Pergentino Belxó, Luiz Gameleira, Manoel Tubino, e Cajazeira (estes dois últimos, já cangaceiros afamados). Por último, juntaram-se a eles os irmãos Benedito (José, Olímpio e Manoel). Foi exatamente na afirmação de Olímpio Benedito que no intervalo da marcha "ao meio dia, no descanso na Lagoa dos Soares, quando palestravam e brincavam, surgiu naquele descanso, naquela palestra, o vulgo de Lampião para Virgulino Ferreira." (1997 p.43)

A segunda deu-se, durante forte perseguição exercida pelo tenente Lucena (antes mencionado como sargento) sobre os Ferreira, quando do ingresso dos mesmos no bando de Antônio Porcino. Que, nas Alagoas, sob forte fogo cerrado em Pariconha; Virgolino "com o seu rifle peado, formando na boca do mesmo um grande e luminoso farol, dando a impressão de um lampião, surgiu o nome de guerra do famoso cangaceiro." (1997 p. 57)

A terceira foi em condições semelhantes à segunda, travada nas trevas de uma noite sem luar e, Virgolino salientando-se mais que os demais e "com toda a escuridão, entravam em feroz fuzilaria. Os bandidos jogavam balas como chuva em cima da polícia que, destemidamente, avançava contra os inimigos. A luta foi seriamente arrochada, apesar do número inferior de bandidos (doze homens), isto sem haver recuo, mas devido ao forte avanço do tenente Lucena os cangaceiros deram costas, deixando morto o cangaceiro Gafanhaque." (1997 p. 59)

A quarta e última versão tem origem num forte tiroteio onde foi morto o cangaceiro Pitombeira e ferido o bandido Lavandeira. Virgolino surpreendeu seu chefe de então, o famoso Sinhô Pereira, conquistando sua confiança e inspirando-a em todo o grupo. Indagado pelo mesmo, após um boa noite de descanso, sobre os requisitos que o mesmo teria para ser um cangaceiro de verdade e continuar em seu bando, respondeu "apenas que no seu rifle, no tiroteio da noite anterior, jamais faltou clarão. Ao ouvir estas palavras, os célebres cangaceiros Baliza e Cajazeira, gritaram: - Temos agora, um lampião! Temos agora um lampião! Não andaremos mais no escuro!. Daquele dia em diante, Virgulino passou a atender, por Lampião." (1997 p. 61)

Segundo Vassalo Filho [VASSALO FILHO, Miguel. Lampião - o grande cangaceiro.], Lampião fisicamente "tinha cerca de 1,70 de altura, tipo amulatado, compleição rígida e era cego do olho direito. Sua canga era composta, além das armas habituais, de carne assada, charque, bolachas e café, pedaços de queijo e rapadura, misturados com farinha de mandioca. Conduzia ainda algodão, tintura de iodo, casca de juá e aguardente alemã [schnaps]. Papel e lápis, além de muito dinheiro. Todos esses apetrechos de sua "canga" chegavam a pesar mais de 20 quilos, o que demonstrava a resistência de quem os conduziam, em longas caminhadas de léguas e léguas e durante tantos anos."

O cangaceiro e o escritor na terra do faz de conta

De quando Graciliano capturou Virgulino usando o poder da mente

RESUMO Antologia que reúne escritos de Graciliano Ramos sobre cangaço atribui-lhe entrevista fictícia com Lampião. Publicado sem assinatura no semanário "Novidade" e inédito em livro, o texto traz marcas que o associam ao autor de "Vidas Secas", colaborador do periódico, no qual pela primeira vez abandonou pseudônimos.
*
O sambinha não era tão popular quanto "Tico-tico no Fubá" ou "Com que Roupa?", seus colegas no "hit parade" de 1931, mas traduzia uma verdadeira obsessão nacional daqueles anos. A voz de Castro Barbosa apregoava com garbo nas rádios: "Adeus, Amélia/ vou decidir minha sorte./Eu vou pro Norte./Vou pegá o Lampião". (ouça abaixo)

Não havia quem não quisesse "pegá" Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o bandoleiro mais famoso do Brasil. A muitos poderia faltar sede de vingança, mas a ninguém cairiam mal duas ricas recompensas oferecidas por sua captura: tanto o governo da Bahia quanto uma empresa, a perfumaria Lopes (do sabonete Dorly e pó de arroz Lady), pagavam 50 contos de réis, cada um, por sua cabeça.

Embora o pescoço do cangaceiro tenha chegado intacto ao final daquele ano, coube a uma pequena publicação de Maceió cumprir, à sua moda, o desígnio da canção. Em sua edição de 16 de maio de 1931, um semanário chamado "Novidade" pegou Lampião.

É verdade que a revista alagoana talvez não tenha satisfeito o apetite dos leitores fiéis, que provavelmente haviam visto uma semana antes um anúncio na página 2: "No próximo número: uma entrevista de Lampião à ’Novidade’".

A conversa seria efetivamente publicada: perguntas e respostas ao "herói legendário do sertão nordestino". Mas o texto (reproduzido abaixo), esclarecia-se logo na abertura, era uma entrevista fictícia: feita por "via telepática".

O bate-papo virtual poderia jazer só na memória de gerações de traças alagoanas, não fosse a suspeita de uma dupla de pesquisadores de São Paulo. Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla sustentam, em livro a sair no fim do mês, que a entrevista é criação de um dos maiores nomes da literatura brasileira: Graciliano Ramos (1892-1953).

O postulado constará do volume "Cangaços" [Record, R$ 34, 224 págs.], compilação de textos sobre o banditismo sertanejo publicados pelo autor alagoano entre 1931 e 1941, em veículos de seu estado natal ou do Rio de Janeiro, então capital do país. Organizado pela dupla de gracilianólogos paulistas, o livro é composto por 14 artigos de imprensa e por dois capítulos de "Vidas Secas".

A inclusão no volume de fragmentos do romance mais celebrado do autor (lançado em 1938, está atualmente em sua 124ª edição) não é fortuita. Além de tratarem diretamente do cangaço, os capítulos dão cor a um dos sustentáculos do livro de Lebensztayn e Mio Salla: o livre trânsito entre Graciliano o articulista e o ficcionista.

Emblema disso é uma frase empregada em "Cadeia", capítulo de "Vidas Secas", que pode ser lido como um conto (não à toa, o cronista Rubem Braga definiria o livro, anos depois, como "romance desmontável"). Nele, Fabiano, o protagonista, afirma: "Apanhar do governo não é desfeita".

No texto de apresentação e num alentado posfácio sobre Graciliano e o cangaço, os dois organizadores do livro mostram que o escritor já havia usado a frase, igual, em três crônicas sobre o tema, duas delas publicadas antes que o próprio Ramos sofresse vicissitudes nas mãos do governo -no fim do dia 3 de março de 1936 ele seria encarcerado, em meio ao cerco aos comunistas do governo Vargas, e só seria liberado em janeiro de 1937.

Mais do que incorrer no autoplágio, com o uso repetido da frase, Graciliano sublinhava seu "leitmotiv": a resistência às injustiças sociais. É num texto sobre Lampião, seu primeiro artigo dedicado em especial ao rei do cangaço, que o slogan aparece a primeira vez.

"Lampião nasceu há muitos anos, em todos os Estados do Nordeste", começa Ramos, que descreve o bandoleiro como "zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão má". Ele relata as mazelas da juventude de Virgulino Ferreira. "As injustiças e os maus-tratos foram grandes, mas não desencaminharam Lampião. Ele é resignado, sabe que a vontade do coronel tem força de lei e pensa que apanhar do governo não é desfeita", emenda o escritor, em texto para a mesma "Novidade" que publicaria a entrevista falsa com o cangaceiro.

FINA FLOR

A "Novidade" era o máximo. Feita nos fundos de uma livraria de Maceió, idealizada por dois jovens intelectuais da cidade, Valdemar Cavalcanti (1912-82) e Alberto Passos Guimarães (1908-93), a revista durou só seis meses, mas reuniu a fina flor intelectual da região. O romancista José Lins do Rego, o poeta Jorge de Lima, o futuro dicionarista Aurélio Buarque de Holanda e o antropólogo Manuel Diegues Jr. (pai do cineasta Cacá Diegues) foram alguns colaboradores regulares -de outras praças, viriam colaborações de figuras como o poeta Murilo Mendes.

Mas o grande feito, pouco sublinhado a respeito dessa publicação quase esquecida, foi o de ter sido, em mais de um sentido, o veículo de estreia de Graciliano Ramos.

Reeditada em 2012, a biografia mais conhecida do autor, "O Velho Graça", de Dênis de Moraes [Boitempo, R$ 52, 360 págs.], aponta que, aos 11 anos, o alagoano já publicara seu primeiro texto, o conto "O Pequeno Pedinte".

Mas, ao longo de décadas, a contar desta obra de engajamento mirim, publicada em "O Dilúnculo - Órgão do Internato Alagoano" em 1904, as dezenas de textos de sua lavra saíram sob pseudônimos. Eram assinadas por X, Lúcio Guedes, J. Calisto, Anastácio Anacleto ou Ramos de Oliveira.

Como aponta Thiago Mio Salla, em outro volume recente organizado por ele, que compila só textos do alagoano inéditos em livro, "Garranchos" [Record, R$ 52, 378 págs.], foi apenas a partir de 1931, em sua contribuição para "Novidade", que o autor passou a assinar como Graciliano Ramos.

Ele tinha 38 anos, já havia sido prefeito de Palmeira dos Índios, ainda não havia publicado nenhuma obra de ficção. "Caetés", seu primeiro romance, sairia só em 1933. Mas um dos capítulos desse livro, o de número 24, foi publicado em "Novidade" em junho de 1931, marcando oficialmente o começo do prosador.

Ieda Lebensztayn, 38, desbravou por quase sete anos a história da revista alagoana, tema de seu doutorado na USP. Como aponta em "Graciliano Ramos e a revista ’Novidade’: contra o lugar-comum", artigo publicado em "Estudos Avançados" (USP, nº 67, 2009), "se a ’Novidade’ se deseja como reação crítica ao lugar-comum da violência, aos estereótipos, à retórica dos bacharéis e políticos e expõe como problema o papel do intelectual num mundo de barbárie, os textos de Graciliano nela publicados, anunciando a obra posterior, são sua melhor expressão".

No exame da íntegra das 24 edições de "Novidade", conteúdo recém-incorporado à Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional (hemerotecadigital.bn.br), nota-se que só três entrevistas foram publicadas pelo semanário. A quarta conversa editada pelo veículo, aquela com Lampião, foi a única entrevista fictícia, gênero no qual se sobressairia depois o dramaturgo Nelson Rodrigues.

BATE-PAPO

Fora da ficção, não era moleza entrevistar Lampião. Autoridade reconhecida no tema do cangaço desde os anos 1980, o historiador recifense Frederico Pernambucano de Mello, 66, conta apenas duas entrevistas confirmadas com o cangaceiro-mor.

A mais conhecida é uma dada em Juazeiro do Norte ao médico e jornalista Otacílio Macedo (jornal "O Ceará", Fortaleza), feita em 1926, ano em que Lampião passou a ser conhecido em todo o Brasil.

A outra, sustenta ele, foi dada a Demóstenes Martins de Andrade e teria saído originalmente em "O Serrinhense", de Serrinha (Bahia), e depois no "Diário de Notícias", de Salvador. "Nela, Lampião chega a elogiar as pastilhas Valda."

Há ainda um depoimento, dado a Benjamin Abrahão. Célebre por ter fotografado e filmado Lampião, o sírio-libanês radicado no Brasil foi tema do longa "Baile Perfumado", dos cineaastas Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1996), e de livro de Pernambucano de Mello, "Benjamin Abrahão: Entre Anjos e Cangaceiros" [Escrituras, R$ 45, 352 págs.].

Graciliano, o "entrevistador" de Lampião, também não era dos mais entrevistáveis. Lebensztayn e Mio Salla estão concluindo uma pesquisa sobre os bate-papos feitos com o escritor alagoano. Eles serão publicados em livro, no segundo semestre, também pela Record, editora que concentra a obra do escritor desde o início dos anos 1970. Com nome provisório de "Falas", o volume terá estimadas 22 entrevistas e deve sair à época de uma mostra audiovisual sobre o escritor prevista para o Museu da Imagem e do Som, de São Paulo.

Mio Salla, 34 (e desde os 19 estudando a obra do escritor), diz que não há registros de outras entrevistas ficcionais de Graciliano, como a de Lampião que atribuem a ele.

No entanto, o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP diz que desde a primeira vez que bateu os olhos em "Lampião entrevistado por ’Novidade’", na Biblioteca Nacional, no Rio, em 2005, não teve dúvidas de que o texto era de Graciliano.

"São inúmeros elementos que indicam sua autoria. Desde uma ironia muito peculiar, uma pilhéria presente em textos publicados por ele em jornais, até o deboche do chamado ’lampionismo literário’", afirma.

Com linha semelhante de argumentação, um dos principais gracianólogos do Brasil, o professor Wander Melo Miranda, da Universidade Federal de Minas Gerais, concorda com a atribuição.

"Sua visão lúcida e bem-humorada -no caso da entrevista imaginária, da qual podem ter participado também Lins do Rego e Jorge de Lima- é uma ’novidade’ para a época e até hoje. Sem estereótipos, sem a visão artificial de literatos e da ’gente do asfalto’ sobre o assunto, Graciliano trata o ’amável facínora’ como um astro pop ’avant la lettre’, percebendo muito bem o que o mito popular revela e esconde: uma sociedade injusta, economicamente atrasada, submetida a desmandos de toda ordem e à aparição de heróis ou bandidos salvadores", afirma, em depoimento à Folha.

SURPRESA

Em janeiro de 1938, Graciliano Ramos escreveu, em crônica também recolhida em "Cangaços": "A polícia do Nordeste continuará a perseguir o bandido, provavelmente o agarrará de surpresa e mostrará nos jornais a cabeça dele separada do corpo".

Seis meses depois, "pegaram" Lampião. Ele, sua mulher, a Maria Bonita, e outros nove cangaceiros do bando foram mortos e degolados -as 11 cabeças foram expostas na escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas.

No artigo "Cabeças", publicado dois meses depois, e também incluído em "Cangaços", Graciliano Ramos sentenciou:

"Cortar cabeças nem sempre é barbaridade. Cortá-las no interior da África, e sem discurso, é barbaridade, naturalmente; mas na Europa, a machado e com discurso, não é barbaridade. O discurso nos aproxima da Alemanha. Claro que ainda precisamos andar um pouco para chegar lá, mas vamos progredindo, não somos bárbaros, graças a Deus".
*
Lampião entrevistado por "Novidade"

Como o célebre cangaceiro, o herói legendário do sertão nordestino, encara certas coisas brasileiras: os direitos de propriedade, o progresso, a justiça, a família, o sertão, os coronéis, o cangaceirismo e a sua própria vida

Lampião é hoje uma das criaturas mais interessantes do Nordeste. Não apenas do Nordeste: do Brasil todo*. Vagamente conhecido há dez anos em alguns municípios sertanejos, pouco a pouco foi adquirindo um prestígio terrível e tornou-se famoso e temido em vários Estados. Cresceu extraordinariamente, entrou no folclore, na poesia e no romance. É um nome nacional. Ultimamente, com a projetada aventura do capitão Chevalier1, o célebre cafuzo está na ordem do dia. - Com o intuito de bem servir aos seus bons fregueses e amigos, como se diz na gíria de negociantes, ’Novidade’ imaginou entrevistar Lampião. Para isso pediu o concurso de alguns oficiais de polícia, mas todos eles, por modéstia, recusaram a incumbência, alegando que não são repórteres. - Na impossibilidade de obtermos um encontro com o notável salteador, recorremos a um truque: um dos nossos redatores, antigo sócio de centros esotéricos, deitou-se, acendeu um cigarro, fechou os olhos e conseguiu, por via telepática, a seguinte entrevista.

Lampião recebeu-nos com o punhal na mão direita e o rifle na esquerda. Vestia roupa de mescla, calçava alpercatas, trazia cartucheira, chapéu de couro enfeitado, camisa aberta, rosário, retrato do padre Cícero na lapela. Ofereceu-nos uma pedra para descansar, sentou-se numa raiz de baraúna e perguntou:

- Que anda fazendo por esta zona?

- Aqui marombando, capitão, assuntando, tomando a maçaranduba do tempo. Eu sou representante de "Novidade".

- "Novidade"? Pois eu não quero saber de novidades. Aqui ninguém conta novidades. Foi por causa das novidades que o Sabino 2 levou o diabo. E não gosto de gente que assunta. O senhor é macaco ou bombeiro?

Sentimos um baque no peito.

- Deixe disso, capitão, não se afobe. "Novidade" é um jornal.

- Um jornal?

- Sim, senhor, um papel com letras para embromar os trouxas. Mas o nosso é um jornal sério, um jornal de bandidos. É por isso que estou aqui. Um jornal sisudo. Temos colaboradores entre as principais figuras do cangaço alagoano, temos correspondentes...

Lampião mostrou a dentuça e grunhiu:

- Uhn! Anda procurando um chefe.

- Ah! não! protestamos. Já temos. O lampionismo em literatura é diferente do seu. O que eu quero é entrevistá-lo, entende?

- Que quer dizer isso?

- É uma tapeação. O senhor larga umas lorotas, eu escrevo outras e no fim dá certo. É sempre assim. Às vezes, como agora, nem é preciso que a gente se encontre.

- Por quê?

- Por quê? Porque se eu fosse escrever o que o senhor diz não escrevia nada.

Lampião matutou, balançou a cabeça e concordou.

- Bom. Vamos começar. Pegue no lápis.

E começamos:

- Quais são as suas ideias a respeito da propriedade?

O amável facínora tirou da patrona um pedaço de fumo e entrou a picá-lo com o punhal.

- Eu, para falar com franqueza, acho que essa história de propriedade é besteira. Na era dos caboclos brabos, como o senhor deve saber, coisa que um sujeito agadanhava era dele. Depois vieram os padres e atrapalharam tudo, distribuindo terra para um, espelho para outro, volta de conta para outro... Fechou-se o tempo e houve um fuzuê da peste, que está nos livros. Mas meu padrinho padre Cícero não vai nisso. E eu também não vou. Isso por aqui é nosso: gado, cachaça, mulher, tudo. É de quem passar a mão, entende?

- Perfeitamente. E que me diz do progresso?

- De quê?

- Do progresso, da civilização. Roupas bonitas, sapatos, frascos de cheiro, conhaque, doutores, vitrolas...

Lampião fez um cigarro de palha de milho, tirou o binga, bateu o fuzil e pôs-se a fumar. Depois falou:

- Sapatos, como o senhor vê, não uso, mas o conhaque eu bebo. E gosto das vitrolas, são engraçadas. Quanto aos doutores, até hoje não me fizeram mal. Estudam nos papéis e falam muito. Creio que são uns inocentes. Enfim, não tenho queixa da civilização.

- Como considera a justiça?

- Aqui no sertão, quando um camarada tem raiva de outro, toca fogo nele. E vai um filho do defunto, agarra um mosquetão e uma rapadura, esconde-se por detrás dum pau, dorme na pontaria, espera 15 dias e queima o sobredito. É a justiça mais usada e não falha. Temos também a dos autos, demorada, mas que não é má, porque os promotores se enrascam sempre e os jurados são bons rapazes.

- Sua opinião sobre a família?

- De quem?

- De todo o mundo. A família em geral. A mulher, os meninos, a rede, o baú, o rancho, o papagaio, o saguim, a trempe, as panelas, isso tudo.

Lampião coçou o queixo e resmungou:

- Para dizer a verdade, nunca pensei nisso. E o senhor é danado de fuxiqueiro. Mulher, meninos... Eu sei lá! Quando um sujeito é miúdo, nunca deve dizer que os filhos que tem em casa são dele. E quanto a mulher, hoje a gente pega uma, larga amanhã, arranja outra, casa aqui, descasa acolá, e assim vamos indo. Isso de mulher é bichinho que não falta. E se um homem fosse se lembrar de todas com quem fez vida, estava arrumado.

- A sua vida assim agitada lhe dá grandes lucros, capitão?

- Lucros, lucros, não são lá grande coisa. Nem roubo hoje dá lucro. Não se tem mesmo o que roubar. Isso de dinheiro aqui, homem, uma bobagenzinha de nada. Nesse tempo parece o povo até nem aprecia ter dinheiro pra gastar tanto quanto se gasta com a vida de hoje. Agora o que eu não faço, nem pelo diabo, é deixar minha vida de agora pra ir trabalhar na enxada, que eu não sou...

Lampião estacou, passou o lenço pelo pescoço.

- Que calor danado!

E nós, aproveitando a deixa:

- E com todo esse calor, o senhor gosta mesmo do sertão?

- Gostar, eu gosto, moço. Isso de calor é coisa com que a gente se acostuma depressa. Um coronel noutro dia me disse que o povo da cidade acha isso ruim, porque é deserto e quente por demais. Cidadãos que nunca viram o sertão falam dele como se tivessem vivido nele uma porção de tempo. É isso que estraga essa terra, não é outra coisa não.

- E relativamente aos coronéis, que pensa o senhor?

- Homem, eles até não são ruins. Há realmente alguns metidos a bestas, mas também existem pessoas direitas. Tenho boas relações com um bando deles.

Estava finda a nossa missão. Despedimos-nos.

- Muito obrigado, capitão Virgulino. E adeus. Desejo-lhe muitas felicidades nos seus negócios.

Notas:

* Originalmente publicado, sem assinatura, no semanário "Novidade" (Maceió: Livraria Vilas-Boas, n. 6, p. 7, 16.mai.31), este artigo sairá em livro pela primeira vez na coletânea "Cangaços", que reúne textos de Graciliano Ramos sobre o tema, que será lançado pela Record. A autoria é atribuída ao alagoano pelos organizadores da antologia, Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla. Para publicação na "Ilustríssima", foram mantidas somente as notas com informações essenciais à compreensão dos fatos citados no texto.
1. Carlos Chevalier, oficial do Exército que utilizou armas, sistemas de rádio em comunicação com muitos policiais e até aviões para capturar Lampião.
2. Sabino Gomes, homem de confiança de Lampião, que, no bando, ocupava o posto de lugar-tenente. Foi morto em março de 1928, na fazenda de Antônio Piçarra, no Cariri cearense.
CASSIANO ELEK MACHADO
GRACILIANO RAMOS
ilustração ANA ELISA EGREJA
Fonte: Folha de São Paulo, 13/04/2014

http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Lampi%C3%A3o&ltr=l&id_perso=135

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O CANGAÇO: 12 FOTOS E 7 FATOS IMPRESSIONANTES SOBRE UM BRASIL FORA DA LEI

Zé Sereno e outros três cangaceiros de seu bando, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).

Essa é uma parte do país que por séculos se manteve oculta, um Brasil quase mitológico de tamanha particularidade. À própria sorte desde que se tem notícia, onde o Estado só comparece para cobrar tributos e a escassez está sempre por perto. Cidades e minúsculos distritos são controlados por figuras que muito bem se assemelhariam a senhores feudais, os coronéis, como eram conhecidos, eram autoridade máxima. Autoridade quase sempre incompatível com as péssimas condições de vida do sertão nordestino.

Foi nesse contexto que surgiu o Cangaço. Um banditismo digno dos clássicos filmes de faroeste, onde criminosos itinerantes driblavam a lei atravessando fronteiras estaduais. Sempre acompanhadas de sangue, as histórias do Cangaço remetem a pessoas muito humildes que, por um motivo ou outro, se recusaram a seguir a inércia de permanecer sob controle dos coronéis, optando por um caminho incerto que tratava com especial truculência aqueles tidos como seus inimigos. 

Mas o Cangaço não possuía apenas inimigos, entre fazendeiros estrategicamente aliados e outros pobres sertanejos, a opinião pública se manteve dividida. Se os miseráveis insatisfeitos com os abusos dos coronéis se sentiam representados na contestação desaforada daqueles homens e mulheres fora da lei, os frequentes requintes de crueldade e frieza garantiam o medo e a tensão permanente nas cidades por onde passavam os bandos de cangaceiros. 

Maria Bonita, mulher de Lampião, posa para o fotógrafo libanês Benjamin Abrahão junto aos seus dois cães, Guary e Ligeiro, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).


#1 - O poder absoluto dos coronéis no Sertão. 

Desde os tempos do Império, a falta de interesse do Estado pelo Sertão obteve efeitos sangrentos na região. Entre os mais devastadores episódios de clara resposta à situação negligente e única presença para cobrança de tributos, destaca-se a Guerra de Canudos e o fenômeno de banditismo conhecido como Cangaço. Ambas as experiências possuíam em sua essência o sentido de contestação das figuras conhecidas como coronéis.

Em meio a uma vasta extensão territorial de pouco interesse público, o Império instituiu a titulação de Coronéis da Guarda Nacional para grandes latifundiários Brasil a dentro. Na prática, o governo passou a legitimar uma relação de domínio que já se fazia efetiva desde os tempos coloniais. Os coronéis eram, quase sempre, pessoas que possuíam total influência na atividade econômica de cidades inteiras. O que representava poder absoluto em uma região onde a opção era se submeter ou sucumbir.

Os coronéis eram homens acima da lei. Além das tradicionais forças policias, também submetidas aos seus interesses, eles tinham sua própria "polícia", eram capangas conhecidos como jagunços: figuras armadas que tratavam de fazer a guarda de terras, castigar e executar inimigos de seus chefes. Foi a truculência desses jagunços que deu origem à jornada de diversos cangaceiros motivados pelo desejo de vingança. 

Virgínio Fortunato, cunhado de Lampião, posa sorridente junto aos "cabras" e mulheres de seu bando para as lentes de Benjamin Abrahão, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).

#2 - A vida criminosa como alternativa à miséria e submissão. 

As condições naturais do Sertão são especialmente infavoráveis à vida humana. Os longos períodos de estiagem castigam seus habitantes através dos efeitos consecutivos que a falta d'água produz. O gado morre e as plantações ficam comprometidas, assim, famílias inteiras tentam se equilibrar num contexto de subsistência precária. Quando havia oferta de emprego, ou melhor, de trabalho, ela era ligada ao coronel da região, figura nem sempre louvável.

"Inteiramente só, o sertanejo é um homem abandonado a sua própria sorte, nada lhe resta senão a desesperança. Ou a rebeldia, que é um simples efeito de causas profundas, da ausência de justiça, analfabetismo, precariedade de comunicação, baixos salários, débil capitalismo e um lentíssimo desenvolvimento das forças produtivas."

Pensar nas autoridades da região como figuras de violência e senso de justiça similar aos dos temidos cangaceiros faz com que se compreenda melhor como tantos sertanejos optaram por esse caminho. A vida criminosa não era nada cordial, mas entre fugas e investidas, oferecia o poder de ter tudo aquilo que passava longe da realidade da maioria: ouro, respeito e mulheres (e sobre este último ponto, como é de se imaginar, o estupro era algo recorrente).

Corisco, o primeiro a esquerda, tendo ao seu lado a companheira Dadá e integrantes do seu grupo, 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).

#3 - O sangrento preço da vida entre os cangaceiros. 

O vermelho é uma cor muito compatível com o trajeto do Cangaço, não apenas pelo coro de luta ou coragem, mas principalmente pelo sangue. Se entre os coronéis, representantes da lei no Sertão, a violência já era evidente, no Cangaço ela era uma assinatura. O traço hediondo da tradicional execução por sangramento era regido pelo punhal, introduzido em pontos vitais de suas vítimas. Para lidar com tamanha rotina, outra característica chamava atenção: a frieza aterrorizante. 

Ao passo que se comandava torturas e execuções, as histórias também falam dos cangaceiros como figuras musicais e risonhas. Como se a vida e a morte fosse (e era mesmo) parte do dia-a-dia daquelas pessoas. 

Já dizia o mítico Rei do Cangaço, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião:

"Três coisas eu trago de Pernambuco: dinheiro, coragem e bala."

Bem como a tradição oral transmite, em certa ocasião um sujeito estava cometendo incesto e foi flagrado por Lampião, o cangaceiro separou os dois irmãos e trouxe o rapaz para conversar. Ele falou para o homem que ele devia colocar os seus testículos dentro da gaveta e fechar com chave. Em seguida, Lampião colocou um punhal sobre o criado-mudo e disse "Volto em dez minutos, se você ainda estiver aqui eu te mato".

Assim se construiu uma lenda, e essa é só uma das histórias que se contam até hoje. 

O lendário cangaceiro Lampião posa para foto segurando uma edição de um dos jornais que costumava ler, "O Globo", 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).


#4 - A opinião pública dividida entre amor e ódio.

Lampião já era uma lenda viva antes mesmo de sua vida ser documentado pelo corajoso jornalista sírio-libanês, Benjamin Abrahão.  Tratado pela polícia dos estados como uma verdadeira praga a ser exterminada, temido por onde passava, ainda assim ganhou a simpatia de muita gente.Virgulino tinha a confiança de gente de diversos setores da sociedade: coronéis, sertanejos e até mesmo a igreja, representada pelo inigualado Padre Cícero, a quem se deposita regionalmente o prestígio de uma santidade. 

A situação de considerável apoio da sociedade pode se amparar no senso de justiça em crítica à força oficial vigente. O respeitado historiador britânico, Eric Hobsbawn, em uma de suas obras (Bandidos/1969), apontou o Cangaço brasileiro como um exemplo claro do fenômeno do banditismo social, que se alinhava ao princípio de contestação, como um sentido primitivo de revolta. 

“O ponto sobre bandidos sociais é que eles são criminosos camponeses a quem o senhor feudal e o Estado enxergam como criminosos, mas que permanecem dentro da sociedade camponesa, e são considerados por seu povo como heróis, como campeões, vingadores, lutadores pela justiça, talvez até mesmo líderes de libertação e, em qualquer caso, homens para serem admirados, ajudados e apoiados. Esta relação entre o camponês comum e o rebelde, bandido e ladrão é o que faz o banditismo social interessante e significativo.”
Eric Hobsbawn
  
Volantes do estado da Bahia em registro de Benjamin Abrahão, circa 1936. (Benjamin Abrahão/Acervo Abafilm).

#5 - Volantes: a polícia especial dos estados treinada com as mesmas práticas dos cangaceiros.

Por décadas a República simplesmente amargou a inferioridade de suas forças diante do preparo e conhecimento preciso dos bandos cangaceiros. Equipados com cangas de madeira e utensílios metálicos (daí o nome cangaço: canga+aço), esses grupos eram compostos por homens (e também, muito raramente, mulheres) de invejável experiência de combate, sempre furtivos e ágeis.

Nas cidadelas invadidas, a polícia costumava ser ínfima e sem a menor condição para impedir investidas tão bem articuladas. Quando chegava algum reforço capaz de enfrentá-los, os cangaceiros simplesmente desapareciam em rotas de fuga que os levavam para outros estados, onde somente as forças policiais correspondentes poderiam atuar.

A reação dos estados foi precisa: responder na mesma moeda. Foram constituídas as chamadas forças volantes, o braço cangaceiro da polícia, formadas por homens (alguns deles até ex-cangaceiros) de preparo e práticas de combate idênticas às dos bandos criminosos. Assim, rotas de fuga, abrigos e investidas furtivas estavam mais sujeitas a falhas. 

O encontro de Abrahão com o bando de Virgulino, em foto tirada pelo cangaceiro Juriti. Da esquerda para a direita: Vila Nova, não identificado, Luís Pedro, Benjamin Abrahão (à frente), Amoroso, Lampião, Cacheado (ao fundo), Maria Bonita, não identificado, Quinta-Feira, foto de 1936. (Acervo Abafilm).

#6 - O jornalista libanês que documentou a vida dos cangaceiros.

Figura responsável pelos mais preciosos registros iconográficos do Cangaço, Benjamin Abrahão Botto conheceu de perto, por vários meses, a rotina de diversos bandos cangaceiros, inclusive os dos notáveis Corisco e Lampião. Ele foi por muitos anos secretário de Padre Cícero em Juazeiro do Norte, no interior do Ceará, até que com a morte do sacerdote em 1934, colocou em prática seu projeto mais ambicioso: filmar e fotografar Lampião e seu bando.

Se aproveitando da ligação de Lampião com Padre Cícero, Abrahão facilmente se aproximou do cangaceiro. Lampião era uma figura extremamente vaidosa, característica que o consolidava como Rei do Cangaço, se deixando acompanhar pelo jornalista. O material coletado ao longo de cerca de 2 anos (1936 e 1937) era de extrema preciosidade e foi recebido nas grandes metrópoles como um verdadeiro escândalo. O Cangaço era uma ofensa ao Estado Novo de Getúlio Vargas, que tratou de censurar e confiscar o registro de Benjamin. 

“As fotos e filmes de Benjamim eram um atestado da incompetência das forças policiais e uma afronta ao Palácio do Catete”
Frederico Pernambucano de Mello


O sírio-libanês Benjamin Abrahão trouxe a público relatos detalhados sobre a rotina e características dos bandos cangaceiros, o que pode ter sido nocivo à estratégia dos bandos, cada vez mais combatidos em esfera interestadual. Em menos de três anos a maior parte dos principais bandos foi desmantelada, inclusive com a execução de Lampião (1938) e Corisco (1940). O próprio Benjamin também teve seu fim em 1938 (dois meses antes da morte de Lampião e seu bando), vítima de nada menos que 42 facadas em um assassinato até hoje não esclarecido. Segundo o historiador Frederico Pernambucano de Mello, a mesma força que matou Lampião, matou Benjamin: o desmoralizado Estado Novo. 

“Antes que o Estado Novo espatifasse o sistema de poder do sertão, era alto negócio para qualquer fazendeiro comercializar com o cangaceiro. O Estado Novo acabou com esse colaboracionismo. A morte de Benjamin foi, sobretudo, uma queima de arquivo histórica.”

Frederico Pernambucano de Mello

Cangaceiro Barreira posa junto à cabeça de seu ex-companheiro de bando, Atividade, como prova de lealdade à volante. 


#7 - Um cerco que se fechava: a falência dos bandos e o fortalecimento do combate ao cangaço.

Com o passar dos anos, a forma que o Estado tratava o Cangaço era cada vez mais madura. A segunda metade dos anos 1930 foi especialmente difícil para os bandos cangaceiros. Um a um, os criminosos iam sucumbindo ou se entregando em troca da anistia. O marco do fim dos tempos do Cangaço foi a emboscada que executou Lampião, Maria Bonita e diversos membros de seu bando. Suas cabeças foram expostas ao público em muitas cidades do Sertão nordestino.

“Naquela época, Lampião mobilizava grossos capitais. Travava com coronéis da região que financiavam seus roubos e recebiam parte do lucro. Seu bando era a imagem do sucesso da organização fora da lei."
Frederico Pernambucano de Mello

O fim do Cangaço foi causa direta da insatisfação com tamanha desmoralização do Estado Novo causada pelas imagens de Abrahão. Não só como atividade marginal, mas também como exemplo escancarado da corrupção de coronéis colaboradores, o Cangaço era uma afronta a Vargas e sua proposta ideológica. E sistematicamente pagou o preço da visibilidade que adquiriu.
  
Cadáver do cangaceiro Cirilo de Engrácia, morto por civis e usado como exemplo pela volante alagoana. A cabeça de Cirilo já havia sido decepada, foi recolocada para a foto. 1935. (Autor desconhecido/Acervo Sociedade do Cangaço).

Cabeças cortadas de membros do bando de Lampião, incluindo o próprio e sua parceira, Maria Bonita, mortos em uma emboscada em Porto da Folha, Sergipe. Elas foram expostas como troféu na escadaria da Prefeitura de Piranhas, no estado de Alagoas, este episódio simbolizou o fim dos tempos áureos do Cangaço. Foto de 1938 (Autor desconhecido/Acervo Sociedade do Cangaço).


Cabeças dos cangaceiros expostas em Santana do Ipanema/AL, 1938. (Autor desconhecido/Acervo Sociedade do Cangaço).

O médico legista Charles Pittex segura as cabeças mumificadas de Lampião e Maria Bonita, elas ficaram expostas por muitos anos na Faculdade de Medicina da Bahia, foto de 1939. (Autor desconhecido).

Fontes:
Graduando em História pela Universidade Católica de Pernambuco. 

http://www.historiailustrada.com.br/2014/11/o-cangaco-12-fotos-e-7-fatos.html

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