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sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O SERTANEJO E O AMOR AO SERTÃO

*Rangel Alves da Costa

Amor ao sertão é a verdadeira expressão do verdadeiro amor. E amar o sertão acima de tudo, além do que sobre ele possa existir num momento. Amar o sertão da chuva e da seca.
Amar o sertão da colheita e dos campos esturricados de sol, o sertão familiar e aquele desconhecido, de forasteiro. Amar o sertão que tem lua grande, bela e majestosa, e um sol de mil sóis numa só fogueira de sina.
Amar o sertão desde o seu passado mais antigo, naqueles idos desbravadores, ao que ele no presente se mostra, com o moderno tantas vezes transformando tudo. Nada para no tempo, tudo caminha, bem assim no mundo sertão.
Minha identidade é sertaneja de raiz. No sertão eu nasci como a flor do mandacaru, o espinho da palma e a doçura do araçá. E sempre com imenso orgulho, ecoo por onde passo o grito de afirmação: sou sertanejo!
Sou sertanejo é o que sou. Mesmo estando longe ali estou, como andorinha que voou, mas que depois da seca voltou.
Sou sertanejo, e isso me faz orgulhoso. Sou feito umbu travoso, mas como o araçá saboroso, no fogão de lenha o cozido mais gostoso.
Sou sertanejo de vaquejada, de cavalgada, de cavalhada. De aboio e de toada, de canto vaqueiro na estrada, o eco da vaqueirama e da boiada.
Sou sertanejo de chapéu de couro e gibão, de peitoral e de cavalo alazão. Espora uso mais não nem açoito o animal da pele virar lanhão. O bicho é amigo, é irmão.
Sou sertanejo de casa de cipó e barro, ainda o carro-de-boi como carro e fumo de rolo no cigarro. Flor de plástico no meu jarro, à vida me lança e me agarro.
Sou sertanejo de moringa na janela, de rangido na cancela, de braseiro sob a panela e qualquer pão na tigela. Prato de estanho numa mesa tão singela e a humildade tão bela.


Sou sertanejo ainda de candeeiro, e eu mesmo bato tempero e colho pimento de cheiro. Nunca quis ser o primeiro, mas nunca o derradeiro, e tenho riqueza mais que dinheiro.
Sou sertanejo de porta aberta pra malhada, de carroça na sombreada, de poeirão na estrada. Mesmo a vida cansada, o rei sou eu nesse reinado de sol grande e luarada.
Sou sertanejo de semente e de grão, também de tristeza e de aflição se não chove no sertão. Quando o sol desce em clarão, entristecido eu penso no bicho em ruminação.
Sou sertanejo de leite bebido em curral, esguichado do peito animal, com um pouquinho de farinha e sal. Uma comida de sustança e que a ninguém já fez mal.
Sou sertanejo de graveto e cipó, de embornal e aió, da rolinha e curió, de laçadura e nó. Da pedra grande e do pó, em meio a tudo e tão só.
Sou sertanejo de sonhar com trovoada, de esperar a invernada, de orar pela chuvarada. Levo São José na estrada, procissão e caminhada para que do céu o trovão dê ribombada.
Sou sertanejo de um sertão tão sertão, de Padre Ciço e de Lampião, do Conselheiro e do Frei Damião. Tudo se revela ao coração não como apenas viver, mas como santa missão.
Sou sertanejo do mandacaru e xiquexique, da zabumba e do repique, da roupa de feira mais chique, de pinga da terra e alambique. E da perna de preá fazer piquenique.
Sou sertanejo da fé e da devoção, do rosário de contas e de oração, de oratório e de comunhão, do Padre Mário e seu sermão. E ouvir o que diz, e sentir emoção.
Sou sertanejo da terra de Dona Zefa parteira, do Mestre Tonho da aroeira, do Mestre Orlando da algibeira, de Naní nossa doceira, de Zé Leno e sua arte cangaceira.
Sou sertanejo de um sertão que é de Alcino, do caçador Mané de Tino, de Felipe o menino que faz do xaxado um destino. Um sertão assim, como na escrita de Belarmino.
Sou sertanejo do Velho Chico em ribeira, da história cangaceira, da pomada de peixe-boi ainda vendida na feira. E daquela panelada que o cheiro vai além da cumeeira.
Sou sertanejo do passado e da memória, do proseado e da história, do sofrimento e da glória, até daquele cigarro antigo, o Continental e Astória.
Sou sertanejo daquele forró do Miltinho, da novena em Curralinho, de toda estrada e caminho. Daquele leilão tão antigo que recordo com carinho.
Sou sertanejo como a Família Vito a tocar, como Geno a aboiar, como Niltão a ecoar a toada tão tristonha da vaqueirama que foi pro céu vaquejar.
Sou sertanejo daquele mesmo sertão que um dia foi de Zé de Julião e que hoje, com o merecido perdão, está entregue ao desvão, nas mãos de uma gente estranha que não é pai nem irmão.
Sou deste sertão que me faz caminhar pela terra nua em busca de suas raízes. E cada relíquia encontrada é como se eu estivesse espelhado desde os primeiros dias.

Escritor
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LAMPIÃO, COITEIROS E VOLANTES PEQUENO ESTUDO SOBRE O JOVEM VIRGULINO


Por Raul Meneleu

O sertanejo plantava milho no dia 19 de março, dia dedicado a São José. Logo depois, plantava o feijão. Plantava também algodão que vendiam ao coronel que tinha uma descaroçadora, e o restante, era usado pelas mulheres da casa, com seus teares rudimentares onde faziam mantas ou tecidos grossos para fazer redes. Havia sempre, ou quase, uma ou algumas vacas e cabras, criadas para o leite diário e vez em quando para a carne da mesa, juntamente com a macaxeira e o cuscuz.

Pois bem, nesse cenário, encontrava-se a propriedade da família Ferreira, pequena, de onde tiravam o sustento. Nessa família nasceu aquele que iria revolucionar o sertão, não pelo social, para trazer melhorias para a população sertaneja tão maltratada pela seca e pelas autoridades, que não forneciam a contra partida de investimentos com os impostos pagos pela população, mas revolucionar a metodologia criada por homens que pegaram em armas e juntaram grupos de cangaceiros para atacar a fazendeiros e transeuntes nas estradas, roubando-os.

"Virgulino* era um destemido jovem, bom vaqueiro, inflexível na perseguição de uma rês barbatão, onde penetrava na caatinga, mato fechado, onde reinavam o xique-xique, a faveleira, o pião, o juazeiro. Era exímio e admirado. Nas festas populares era também admirado por todas as mocinhas, que reviravam os olhos e suspiravam na sua passagem. Dançarino dos bons tanto no xaxado quanto no forró. Tocava sanfona e era afamado repentista. Virgulino era um rapaz cheio de entusiasmo e participava de todas as festas da região. 

Fora das festas, era um excelente profissional do couro e do comércio. Trabalhou em almocrevia para seu pai e foi arrieiro do Dr. Delmiro Gouveia, onde conduzia cargas de couro em mulas e burros, de Pedra (atual Delmiro Gouveia, no estado de Alagoas) para Bom Conselho e Garanhuns, no agreste pernambucano, região que conhecia detalhadamente e palco de grandes combates entre cangaceiros e as forças oficiais. 

A sua família não era abastada como as dos seus antecessores Silvino e Sinhô Pereira. Pode-se dizer que era remediada. Vivia da criação e da agricultura. Seu pai, José Ferreira dos Santos, era pequeno proprietário rural. Não era pobre, "arrebentado", tinha recursos para prover regularmente a família. 

O fato histórico que registra o ingresso de Virgulino e de seus irmãos Livino e Antônio no cangaço, prende-se à inimizade alimentada entre os Ferreira e os Barros, apelidados de Saturninos*. Estes, com mais recursos e parentes influentes na política local, deram início a esbulhos no sítio pertencente a José Ferreira, de nome "Serra Vermelha". 

José Alves de Barros, vulgo Zé de Saturnino, e seu sogro João Nogueira, proprietários do sítio "Pedreiras", confinante com o dos Ferreira, acusavam os filhos de José Ferreira de lhe maltratarem animais e de furtarem chocalhos das suas cabras, avisando-os de se manterem afastados dos seus domínios, sob pena de sérias represálias. As rusgas entre as famílias começaram praticamente em 1916. 

Houve um dia em que Virgulino e seu irmão Livino passavam com o gado por um pasto de propriedade de Saturnino, e foi o bastante para serem admoestados pelos agregados do sítio Pedreiras, iniciando-se encarniçado tiroteio, do qual saiu vítima de morte um jagunço de Saturnino, e Antônio Ferreira, alvejado na coxa. Para apurar responsabilidade foi instaurado inquérito em 7 de dezembro daquele ano, cujo feito depois teve tramitação pelo Cartório do 12 ofício de Serra Talhada, em Pernambuco. O procedimento instaurado com o objetivo de apurar a autoria da infração à lei penal, foi arquivado. 

Os Saturnino, influentes econômica e politicamente, tiveram melhor tratamento pelas autoridades locais. As instituições, no sertão nordestino, eram fracas. As autoridades policiais eram nomeadas por indicação do chefe político regional, instrumentos dóceis aos seus caprichos. 

O Ministério Público era uma ficção jurídica: quando não desempenhadas as suas funções por leigos, ligados à política do lugar, os seus titulares recusavam abrir luta com os mandões da terra — os famosos "coronéis" — visto nela serem fatalmente derrotados com a remoção do promotor e a permanência da chefia situacionista. Melhor era contemporizar, não despertando processos que a polícia sabiamente adormecia... 

O júri, dominado pelas paixões da politicagem local, era fator preponderante de clamorosas injustiças, e os próprios juízes togados não tinham força de requisitar um soldado de polícia para o cumprimento de uma diligência. Viam-se, às vezes, na contingência de organizar bandos para o cumprimento das suas decisões. 

Na verdade, a família Ferreira começou a sofrer pressões, face ao comportamento de Virgulino e de seus irmãos Antônio e Livino, que eram fustigados pelo invejoso Zé Saturnino que se punha como vítima, sendo ele o motor de partida para assanhar a fera adormecida que existia no peito de Virgulino e de seus irmãos. A famíla foi sendo obrigada a transferir-se para o lugar conhecido por Nazaré, no município de Floresta, pouco distante de Serra Talhada. 

Com a efetivação da mudança, firmou-se entre a família Saturnino e a Ferreira um pacto, objetivando fossem cessadas as hostilidades entre elas. Pelo acordo, os Saturnino não circulariam por Nazaré e suas imediações e os Ferreira não iriam mais a Serra Talhada, evitando-se conseqüentemente um confronto que, na opinião de amigos comuns, seria sangrento, diante das antigas desavenças e constantes hostilidades. Entretanto, Zé de Saturnino e Nogueira, aliados, não cumpriram a parte que lhes tocava na convenção e passaram a frequentar com alguns cabras a feira semanal de Nazaré, amedrontando evidentemente os Ferreira. 

O fato é que certo dia Virgulino e seu tio Manuel Lopes trocaram tiros com Zé de Saturnino e Nogueira. A partir daí não se teve mais sossego. A falta de segurança da família era total, tendo em vista que a polícia passou a proteger o pessoal de Saturnino. Foi até destacado um soldado especialmente para essa tutela, uma vez que Ferreira, como era conhecido no início Virgulino, e seus irmãos estavam aterrorizando a localidade e causando sensíveis prejuízos ao comércio daquelas paragens. 

A essa altura já andavam armados e começavam a ter fama de valentes. Caracterizavam-se como cangaceiros: roupas de mescla, chapéus de couro com as abas viradas, lenços vermelhos no pescoço, punhais e facas, cartucheiras e rifles "papo amarelo" ou mosquetões. Virgulino já usava um punhal de cinqüenta centímetros de comprimento, com o qual sangraria mais tarde inimigos, delatores e estupradores. 

De Nazaré, os Ferreira mudaram-se para Água Branca, em Alagoas, localidade próxima ao atual município de Delmiro Gouveia, não muito distante da cachoeira de Paulo Afonso. Com as finanças abaladas e sofrendo ainda perseguições dos antigos inimigos pernambucanos, os Ferreira estabeleceram-se num lugar chamado Olho d'Agua, em um sítio arrendado, extraindo da terra os recursos necessários à subsistência, auxiliados por comboios de peles e de cereais que faziam para a Zona da Mata. A esse tempo, Virgulino e seus irmãos já haviam aderido ao cangaço, acompanhavam Sinhô Pereira e Luís Padre. A alcunha de Lampião ele a ostentaria até a morte. Dizem que existem três versões relacionadas à origem do epíteto. 

A primeira dá conta de que, quando atuava como almocreve na condução de comboios de peles, ao entrar em Água Branca, uma de suas mulas esbarrou em um dos lampiões da iluminação pública, pondo-o abaixo. Foi o bastante para que entre os próprios camaradas, nascesse o apelido. 

A segunda e mais precisa talvez surgiu na sua iniciação no bando de Sinhô Pereira, em um combate com a polícia em Buíque, Pernambuco. Para demonstrar ao seu comandante que tinha habilidade com o rifle, Virgulino empenhou-se bastante na peleja. Depois, comentando a luta com Luiz Padre, outro componente do grupo e primo de Sinhô, expressou: 

— O meu rifle, no pega desta noite, não deixou de ter clarão! 

Sinhô Pereira aproximava-se dos cabras, interferiu na conversa e sentenciou:

— Home, se é assim, o rifle deste menino é que nem um lampião! 

Na boca dos violeiros, entretanto, circula uma outra versão, fantasiosa inclusive, cuja veracidade é muito discutida. 

— Até aí Lampião 
Se chamava Virgulino. 
Porém num fogo de noite 
O seu amigo Sabino 
Perdeu na escuridão 
Um cigarro, em aflição, 
Que tomara de Ponto-Fino. 

Então disse Virgulino: 
— Compadre, preste atenção, 
Meu fuzil o alumia, 
Você acha no clarão... 
Sabino, olhando no barro 
Em procura do cigarro Disse: 
— Acende, Lampião". 

E assim foi batizado, 
Seu nome foi Lampião 
Se caía num lugá, 
Queimava a população; 
De longe ele alumiava, 
Mas, quando perto chegava, 
Incendiava o sertão. 

Depois de atuar no grupo de Sinhô Pereira, em algumas incursões perigosas contra as volantes, não só as do estado de Pernambuco, como as de Alagoas, Lampião pretendeu retornar ao seio da família, reintegrando-se, socialmente. Voltou para Água Branca, mas já estava sendo procurado pela polícia alagoana, notadamente pelo sargento José Lucena e os seus soldados. A sua família já não tinha sossego, sendo forçada a mudar-se mais uma vez. 

Foi então que se juntou a Antônio Matildes e a Antônio e Manuel Porcino. Seu pai, já em estado de viuvez, dispersou os filhos e foi viver sob a proteção de Sinhô Fragoso, fazendeiro em Mata Grande. Os filhos João, Ezequiel, que viria a ser o famoso Ponto-Fino, e Angélica seguiram para Bom Conselho e passaram a viver amparados pelo "coronel" José Abílio, que os sustentou por mais de quatro anos, até quando João Ferreira veio estabelecer-se no comércio de Propriá em Sergipe. 

Iniciando a sua vida de bandido destacado, Virgulino e os seus novos chefes fizeram um ataque a Pariconhas, no estado de Alagoas. Logo após o ataque àquela povoação do semi-árido alagoano, o bando teve no seu encalço a volante do sargento José Lucena, da polícia de Alagoas. A volante esteve à procura dos bandidos por toda parte e foi até a fazenda onde morava o pai de Lampião, na suposição de que encontraria o bando. Os soldados cercaram a casa e começaram a atirar, matando José Ferreira e Fragoso, proprietário da fazenda. 

A morte de José Ferreira foi uma das maiores tragédias na vida de Virgulino. Tinha sido pai amoroso, consciente dos seus deveres, bom amigo. Morreu antes de completar cinqüenta anos de idade. Na retirada para Pernambuco, onde se achavam mais seguros, os bandidos atearam fogo no interior de Alagoas, sob a voz austera de Lampião: 

— Baixem o facho nas casas. Alagoas vai ficá de sentimento. 

A atividade dos bandidos endurecia a vida dos sertanejos, como endurecia, também, o cerco que as volantes faziam aos malfeitores. Matildes abandonou o grupo, seguindo para a Paraíba, tendo assumido a chefia Antônio Porcino. Tempos depois, os Porcino deixavam o banditismo e embrenharam-se na Bahia. Lampião tornou-se, por isso, chefe do grupo de bandoleiros, posto supremo em que se manteve até à morte. 

Reuniu, logo após agosto de 1922, os ex-cabras de Sinhô Pereira: Antônio Rosa, Meia-Noite, Joaquim Coqueiro, Plínio, Bem-te-vi, Patrício, Raimundo Agostinho, João Genoveva, Pedrão, Zé Dedé, José Melão, Laurindo, João e Antônio Mariano. O apoio logístico dispensado a Lampião foi o mais notável durante toda a época da existência do banditismo. 

O "grito do mateu" era a senha anunciadora da sua presença, transmiti-da de ouvido a ouvido do coiteiro. O coiteiro era o sertanejo que dava asilo ou protegia os cangaceiros. Havia coiteiros por sugestão, ou imitação, simpatizantes ou admiradores do bandoleiro, frutos do mesmo meio, vítimas do mesmo mal de crescimento social ou jurídico, impulsionados pelos mesmos fatores, sujeitos, portanto, à mesma prevenção ou repressão dada aos protegidos. Havia, porém, os coiteiros por interesse, traficantes do crime, cúmplices do cálculo, que auxiliavam os bandidos, visando lucros e vantagens.

Por outro lado, existiam coiteiros coagidos, os que, reconhecendo a impossibilidade de obterem auxilio das autoridades legais, ajudavam os bandidos para não perderem a vida ou a propriedade. Nessa última classificação figuraram inúmeros vaqueiros, que, por sinal, foram os mais eficientes coiteiros de Lampião: roceiros, pequenos e médios proprietários rurais, comerciantes, caixeiros-viajantes. 

João Barroso, por exemplo, coiteiro de grande prestígio junto a Lampião, que tinha atuação em Alagoas, certa ocasião, num rasgo de coragem, desabafou: 

— O governo não pode com Lampião! Nós matutos não podemos. Nem as cobras podem com ele. Quem é o grande? Lampião! Então, eu vou ficar com ele." 

* Veja o comentário abaixo.

** Com quase certeza, isso fez que Zé Saturnino, sentisse inveja de Virgulino. 

Fonte: pequena parte em aspas, do livro de José Anderson Nascimento, CANGACEIROS, COITEIROS E VOLANTES. 

MEMÓRIA DO CANGAÇO


Lembram do Cineasta Paulo Gil Soares que entrevistou Zé Rufino? Conseguimos o documentário completo e sem cortes. Relatos históricos de médico, oficial de Volante, Soldados e Cangaceiros. Vale a pena ver.


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A INTRICANTE MORTE DO CHEFE CANGACEIRO “BOM DE VERAS”


Por Sálvio Siqueira

Entre os anos de 1919 a meados de 1927 o Sertão nordestino viveu o seu maior ciclo de terror. Nesse período foi quando mais se alastrou o banditismo rural com a formação de muitos grupos cangaceiros. Desde o Alagoas até o Cariri cearense, passando pela Paraíba e Pernambuco, os grupos de cangaceiros infestavam as caatingas e de quando em vez invadia Vilas, Povoados, pequenas cidades e sedes de algumas fazendas furtando, roubando, matando e extorquindo.

É sabido de que sem a proteção, o apoio e a colaboração de alguns “coronéis”, os mandachuva regionais, a sobrevivência dos bandos cairia à zero. A partir de 1922 um jovem pernambucano, natural de Vila Bela, começa a destacar-se dentre os vários chefes cangaceiros impondo táticas de guerra de movimentos deixando a Força Pública de vários Estados meio zonzas em suas missões.

Esse jovem chamava-se Virgolino Ferreira, o qual herdou o bando do chefe cangaceiro Sinhô Pereira, transforma-se naquele que seria o mais temido pelos sertanejos. Quando planejava uma ‘empreitada’ de grande porte, Virgolino, já alcunhado de Lampião, mandava convites para alguns chefes de bandos para que se juntassem ao bando chefiado por ele, no que era acatado sem muita demora ou contradições.

Surge o bando dos “Marcelino” composto pelos irmãos Manuel, Vicente e Pedro Marcelino que logo passam, respectivamente, a chamarem-se “Bom de Veras”, “Lua Branca” e “Vinte e Dois”.

Bom de Veras participou mais intensamente das ações do grupo de Lampião, pois, em determinada época, fez parte e foi chefiado pelo mesmo. Registros literários nos mostram que Bom de Veras estava em Juazeiro do Norte, CE, no dia 4 de março de 1926 junto a Lampião quando esse recebe a patente de Capitão Provisório dos Batalhões Patrióticos. No decorrer desse ano Bom de Veras, ou seu nome, aparece constantemente junto ao de Lampião em várias ações praticadas pelos cangaceiros; foi denunciado em 1º de agosto daquele ano no processo instaurado sobre o ataque a fazenda Serra Vermelha; também é citado como participante do ataque a fazenda Tapera em 28 de agosto quando da chacina de alguns integrantes da família Gilo e é referido que tomou parte no combate da Serra Grande em novembro de 1926.

O bando dos Marcelinos, sob o comando de Bom de Veras, formou um bando que, segundo as informações de alguns autores, chegou a ser composto por, aproximadamente, vinte ‘cabras’ em determinada época..
Em setembro de 1926 o bando atacou a fazenda Granito. Tiveram participação no ataque a cidade de Cabrobó em 2 de setembro e, em 23 de novembro, teve participação no ataque a Vila de São Francisco.

Bom de Veras é abatido na véspera do natal de 1926, próximo à cidade de Salgueiro, PE, pela volante comandada pelo cabo Alfonso Rodrigues comandado por Theófenes Ferraz Torres. Como em quase toda morte de uma personagem de destaque nas hastes cangaceira, sua morte também é envolta em mistérios e possui mais de uma versão.

Principiando, mostraremos parte do depoimento de um parente do coronel Chico Romão, senhor dominante do Vale do Pajeú das Flores em Pernambuco, até o sul cearense, o qual é citado como mandante ou delator do chefe cangaceiro o qual encontramos na obra, livro, Os Fuzilados do Leitão:

“(...) Sobre o cangaceiro Bom de Veras, o que eu sei da história é que, o ponto principal era a fazenda que pertencia ao seu amigo e compadre (amigo e compadre do coronel Chico Romão), naquela localidade ( a fazenda Branquinha no município de Serrita, PE). Só que existe duas fazendas com o mesmo nome. Uma era do coronel Chico Romão e a outra era do herdeiro do coronel Agemiro Sampaio de Barbalha, que na época era esse amigo e compadre de tio Chico. Foi lá que se deu o roubo. Naquela época não tinha carros por aqui. Os ricos, em vez de carros possuíam cavalos(...). Sobre o tal roubo deu-se o seguinte, a fazenda ficava entre Serrita e Salgueiro(por um desvio) depois que roubou os animais, acampou a 3 km depois de Serrita. Um vaqueiro do compadre, seguiu o bando de Bom de Veras até o esconderijo. Voltou para Serrita e passou a informação para o patrão. Esse, dirigiu-se imediatamente para a casa de tio Chico em busca de ajuda. Meu tio mandou de imediato alguns homens de sua confiança selar os animais e acompanhá-lo, lá encontra o cangaceiro e seu pequeno grupo:

- Bom de Veras, eu vim resgatar os cavalos do meu compadre e amigo que você roubo!

Bom de Veras não esboçou reação nenhuma naquela hora.

Tio Chico corajosamente, fez uma advertência:

- Retire-se imediatamente do município de Serrita e entregue já os cavalos do meu compadre!

E acrescentou ainda (que) logo que chegar a Serrita mandaria buscar um reforço policial em Salgueiro.

Um doa cangaceiros ainda disse para o seu chefe Bom de Veras:

- Bom de Veras, nós vamos deixar esses homens sair daqui vivos?

Ele disse:

- Vamos cumprir o que o coronel está dizendo!

E entregou os cavalos de estimação do amigo de tio Chico Romão(...).” (VM, Pg 51 a 52,2012)

Seguindo a narração, o Sr. Lebom Ximenes Maia, sobrinho do coronel Chico Romão, acrescenta:

“O Coronel Chico Romão ao chegar a Serrita mandou rapidamente o pedido de reforço à polícia de Salgueiro. A volante chegou rápido a Serrita. Tio Chico mandou alguns de seus homens acompanha-la. Seguindo o rastro do bando até o esconderijo num local chamado Cachoeira da Miséria, no minadouro, onde teve início um tiroteio infernal. Bom de Veras foi morto(...). Só foi encontrado dias após. Já em estado de putrefação do corpo ( o mau cheiro teria chamado a atenção dos moradores). Seu bando foi disperso. Uns capturados e feridos. Outros, evadiram-se.” (VM, 2012)


Já o escritor José Peixoto Júnior, através de seu livro “Bom de Veras e Seus Irmãos”, nos conta dessa forma a morte do terrível cangaceiro:

“(...) Na ribeira do Riacho do Cachorro integrantes do grupo assaltaram um eleitor de Chico Romão, levando vinte e seis mil réis em dinheiro e peças de ouro. O eleitor correu até Serrita para queixar-se ao chefe amigo. Sem perder tempo, o coronel passou a perna na montaria do queixoso, por sinal cavalo de sela esquipador, e saiu em busca dos bandidos. Mandou um positivo ao Salgueiro comunicar o desaforo ao delegado civil de polícia Levino Barros(...).”

Notamos aqui uma contradição, entre uma e outra citação, sobre o produto do roubo e, na última, a não participação do chefe Bom de Veras. Continuando, o autor nos revela:

“(...) Na sede da Fazenda o grupo havia-se acomodado ocupando a casa sentados no chão. Aproxima-se, sozinho, o coronel Chico Romão e Bom de Veras vai recebe-lo no terreiro. Desapeia e, sem rodeios nem saudações, vai dizendo:

- Cadê o ouro e o dinheiro que os cabras seus roubaram no Riacho do Cachorro!?

Não foi difícil ao chefe da cabroeira encontrar os culpados.

Eram dois novatos, ainda titubearam, porém não se contiveram ante a ameaça da revista. Bom de Veras passou-lhes descompostura, pois estavam todos avisados de que nos domínios do cel. Chico Romão ninguém punha a mão em nada.

Nisso, o cabra Criança, muito atrevido, indagou de Bom de Veras:

- Padim, num tá no tempo de nós acabar o nim dos Romão?!

E Chico Romão de semblante sisudo, o olho fechado mais arregalado que o olho bom, respondeu com ares de mofa:

- Menino, esse ninho é muito grande!

Montou no cavalo, deu de rédeas e saiu sem se despedir, com o roubo recuperado. Talvez, não fosse esse assunto do ninho, e os soldados mandados de Salgueiro sido aconselhados a voltar(...).” (JP. 2009)

O chefe cangaceiro Bom de Veras jamais imaginou que seu protetor, o coronel Chico Romão, deixaria a polícia persegui-lo dentro dos seus domínios. Continuou na fazenda e esperou pela noite com todos se divertindo, jogando cartas e tomando cachaço. Chegando a Serrita a volante comandada pelo cabo Afonso Rodrigues, o mesmo se dirigiu ao coronel a procura de informações sobre o paradeiro do bando. Passado as informações, o cabo segue com cautela e planeja um cerco e um ataque aos cangaceiros.

O cabo dar ordens para que sua tropa cercasse a casa e dá voz de prisão ao chefe cangaceiro dando-lhe garantia de vida. Em resposta, o cangaceiro descarrega seu mosquetão de dentro da casa em direção aonde se encontrava o cabo Afonso. O mundo fechou-se e tiroteio foi tremendo. Pessoas dentro da casa se feriram e depois de certo tempo os cangaceiros furam o cerco e caem dentro da caatinga. Três dias depois o corpo do chefe cangaceiro Bom de veras é encontrado por uma senhora chamada Neném Alexandre.

A posição em que foi encontrado o corpo do cangaceiro é que nos chamo bastante atenção. Certamente não foi ferido no combate com a Força Pública naquela noite, apesar da imprensa noticiar de que sua morte deveu-se ao combate contra a volante do cabo.

O Jornal Pequeno, da cidade do Recife, em sua edição do dia 27 de dezembro de 1926 tráz a seguinte notícia:

“ No dia 24 do corrente, em Salgueiro, o cabo Afonso Rodrigues, um dos mais destemidos servidores da força do major Theophanes Torres, com 11 praças cercou um grupo de 18 bandoleiros, chefiados por Manoel Marcelino, vulgo “Bom Deveras”, depois de Lampião o mais terrível do grupo. O combate foi prolongado, oferecendo os bandidos uma tenaz resistência”.

Segundo o José Peixoto, o corpo do cangaceiro foi encontrado na seguinte posição: “Dobrado sobre o ventre, sentado na batata das pernas, tórax curvado para frente até a cabeça apoiar-se no chão, cotovelos afastados, pois as mãos seguravam firme o mosquetão, ora separando coxas do abdômen e servindo de espeque para o corpo não cair de lado, jazia Bom Deveras. Um furo entupido de sangue no barbicacho passado na testa, do seu chapéu de couro, mostrava o caminho da bala.”

De maneira alguma uma pessoa recebe um tiro de fuzil na esta e tem reflexo para ficar na posição em que foi encontrado o corpo do cangaceiro. Tiveram que decepar, cortar fora, os dedos da mão que segura sua arma, mostrando que foi morto com uma arma de calibre menor. Até pode ter sido abatido por um dos próprios companheiros... mas esse será mais um dos mistérios contidos na saga cangaceira.

Fonte Obras Citadas
Jornal Pequeno do Recife – 27/12/1926
Foto “Os Fuzilados do Leitão – Uma Revisão Histórica” – MACIEL, Vilma. 2ª Edição. 2012.
Identificação:
1 - Coronéis Heráclio e Chico Romão
2 - Coronel Chico Romão
3 - Bando de Lampião em 1926

A PALAVRA SERTÃO E UMA HISTORIA POUCO EDIFICANTE SOBRE O BRASIL

O texto é da professora e pesquisadora Heloisa Starling : O trabalho aborda Euclides da Cunha e os conflitos de Canudos e a arte acima de  Karina Freitas.

Sertão é uma palavra carregada de ambiguidade. Não sabemos sua origem. Talvez seja uma contração do aumentativo desertão, e tenha chegado até nós, embarcada na África, durante o século XVII. Mas aclimatou-se bem no Brasil: seu sentido tornou-se combinado e múltiplo. Por muito que se entre pelo Sertão afora, ele ainda mais se prolonga, como se a realidade que a palavra nomeia não tivesse um princípio nem um fim exatos. O Sertão era outro mar ignoto, iria resumir esplendidamente Raimundo Faoro, em seu livro Os donos do poder: a terra firme além da costa, a inevitável solidão em meio a pedras agressivas, o abismo do desconhecido.
Sertão pode indicar a formação de um espaço interno, a fronteira aberta, ou um pedaço da geografia brasileira onde a terra se torna mais árida, o clima é seco, a vegetação escassa. Mas a palavra é igualmente utilizada para apontar uma realidade política: a inexistência de limites, o território do vazio, a ausência de leis, a precariedade dos direitos. É o espaço em que a imaginação cultural brasileira se encontrou com um de seus campos simbólicos mais ricos e os grandes explicadores do Brasil identificaram ali um condicionante histórico e político da formação do país. O fato de que o sentido da palavra Sertão transcende o de uma delimitação espacial precisa possibilitou sua transformação em um enunciado original capaz de considerar a existência de uma continuidade temática e de uma perspectiva original de interpretação do Brasil sempre fincada numa situação de ambivalência. Sertão é, paradoxalmente, o potencial de liberdade e o risco da barbárie – além de ser também uma paisagem fadada a desaparecer.

Heloisa Starling

Levou algum tempo, mas o escritor Euclides da Cunha se encarregou de escancarar para os brasileiros a ideia do que pode ser o “Sertão”. Em 1897, Euclides da Cunha foi enviado como repórter, para o interior da Bahia, encarregado de cobrir para o jornal O Estado de S. Paulo o deslocamento das tropas republicanas durante a quarta e última expedição contra o Arraial de Canudos. Republicano convicto, ele assumiu a reportagem convencido de que a República iria derrotar uma horda desordenada de fanáticos maltrapilhos, acoitados em um povoado miserável – e, ainda por cima, monarquistas. Desembarcou na Bahia certo de que Canudos era a nossa Vendéia, como, aliás, já tinha escrito em matéria anterior publicada pelo jornal – fazia referencia à guerra civil na França, no século XVIII, que opôs os camponeses da Bretanha marchando sob a bandeira branca da monarquia Bourbon, à República em Paris. Euclides da Cunha permaneceu na região durante as três semanas finais do conflito, tendo presenciado o dramático desfecho da guerra, com o massacre dos sertanejos.

Voltou para casa atormentado. Estava cheio de dúvidas e incertezas diante do que havia visto: uma República inegavelmente disposta a eliminar aquele outro e inteiramente diverso habitante do mesmo Brasil. “Era terrivelmente paradoxal”, escreveu incrédulo, “uma pátria que os filhos procuravam armados até os dentes, em som de guerra, despedaçando as suas entranhas a disparos de Krupps, desconhecendo-a de todo, nunca a tendo visto”. Nesse paradoxo, Euclides da Cunha alinhavou sua descoberta e seu principal argumento: a barbárie não estava confinada num recanto desconhecido e esquecido nos confins da Bahia, o litoral não se opunha ao sertão. O mesmo traço de fanatismo que alimentava a oratória delirante do Conselheiro fazia balançar, no peito dos soldados republicanos, os breves e as medalhas religiosas com a efígie de Floriano Peixoto. Pior, no insistente brado com que esses soldados invocavam continuamente a memória de Floriano havia um entusiasmo doentio e fanático análogo ao que os jagunços de Belo Monte utilizavam para saudar o Bom Jesus – “o mal era maior”, intuía Euclides, “não se confinara num recanto da Bahia. Alastrara-se. Rompia nas capitais do litoral”.


Anotou tudo o que viu e ouviu. O repórter descobriu, nos sertões baianos, uma guerra longa e misteriosa, um adversário com enorme disposição para o combate, um refúgio sagrado, uma comunidade autogovernada que oferecia aos seus habitantes melhores condições de vida do que outras regiões do sertão nordestino – deparou-se com um Brasil desconhecido. No impacto da descoberta, Euclides da Cunha trocou de certezas, adotou nova perspectiva e tornou-se um grande escritor. Sua história assumiu um tom de denúncia. Foi muito além da reportagem de guerra: insistiu em revelar o efeito provocado pelas secas na paisagem arruinada do sertão baiano e a devastação do meio ambiente produzida pelas queimadas no semiárido nordestino; reconheceu no mundo sertanejo uma marca do esquecimento secular e coletivo do país. 
Euclides da Cunha desenhou na região de Canudos, no nordeste do estado da Bahia, em 1897, um mundo que permanecia inacabado, aquém da história e da geografia da nação republicana. E então, incorporou os elementos que lhe permitiram introduzir na palavra Sertão, a ficção de uma terra mergulhada em tristeza profunda, imersa na ausência de valores do mundo público, nas linhas desviantes do progresso, na irracionalidade dos homens, no choque provocado por uma visão da barbárie possível – um “chão que tumultua, e corre, e foge, e se crispa, e cai, e se alevanta”, anotou.

Mas ele estava apenas começando. Acima de tudo, Sertão é uma imagem do deserto, advertiu. Pode surgir tanto no cenário seco, retorcido e violento do Arraial de Canudos, quanto em meio à solidão e ao abandono produzido pelas grandes massas hídricas existentes na fronteira amazônica do Alto Purus. Também entre os seringais da Amazônia, o Sertão é apreendido como solidão, isolamento e perda, a força primitiva de uma região ainda em trânsito entre natureza e cultura, dominada pela resistência ao moderno e imersa na tradição: “A História não iria até ali”, concluiu Euclides da Cunha. E com essa afirmativa ele traduzia tanto uma representação da República no Brasil com sua abissal dimensão de vazio quanto sua convicção de que, sugada por essa perigosa, mas atraente barbárie, a própria República corria o risco de recuar no tempo e dissolver sua capacidade política de ação em impunidade, selvageria e tragédia.


Na escrita de Euclides da Cunha, o significado de Sertão segue muito além de Canudos. Nomeia uma “paisagem sinistra e desolada”, que se consome sempre antes de se formar plenamente; uma terra sem nome ou história marcada por uma combinação sinistra: isolamento geográfico, povoamento rarefeito, homens errantes, memória perdida e linguagem dispersa. A palavra Sertão conta uma história pouco edificante sobre a República brasileira instalada em 15 de novembro de 1889 – e que se revelou uma forma de governo oligárquica, excludente e sem nenhuma sensibilidade para a questão social. Para Euclides da Cunha, talvez essa seja a história de uma República vazia de compaixão, marcada pela indiferença entre homens e natureza, entre homens e coisas, entre o iluminismo civilizatório, a euforia do progresso técnico e o destino de uma gente que, excluída da cidadania, em Canudos, não se rendeu: “exemplo único em toda a história, resistiu até o esgotamento completo (...) caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores e todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.

Euclides incluiu na imaginação política do país a consciência sobre a existência dos brasileiros párias – essa gente anônima e insignificante, simples e obscura, que se movimenta, precariamente, no vazio da nação, à mercê de uma República que não os reivindica nunca na condição de cidadãos. São “homens sem plumas”, escreveu quase um século depois, o poeta João Cabral de Melo, habitantes de uma paisagem natural e histórica “onde a fome/estende seus batalhões de secretas/e íntimas formigas”. Uma população que vive isolada de um intenso sentido de História insiste João Cabral, relendo poeticamente o argumento de Euclides da Cunha – a República ainda não chegara até o Sertão. Homens sem plumas, explica o poeta, não tem nome próprio, nem direito à sua personalidade legal de cidadãos, não são protegidos por ela e nem conseguem agir por seu intermédio na cena pública. São vítimas de uma dupla injustiça – a injustiça da urgência da sobrevivência e a injustiça da vergonha da obscuridade.
Guimarães Rosa

Mas foi outro escritor, João Guimarães Rosa, quem retomou o argumento de Euclides da Cunha e, no diálogo com ele, logrou obter na palavra Sertão uma expansão de significado. Sertão é o que não se vê. O fundo arcaico projetado sobre uma sociedade primitiva que vive longe do espaço urbano e o que é aparentemente seu avesso: uma cidade brasileira qualquer e todas as outras cidades do país, a que se deixou perder de seus princípios civis e a que já é apenas degradação de seus lugares públicos, a cidade concebida para expressar a modernização e a periferia miserável que fixou seu perfil. Ou, no argumento do próprio Guimarães Rosa: “Sertão é o sem-lugar que dobra sempre mais para adiante, territórios”. Sertão é dobra: nem um nem outro, mas o que se dá entre; não vai a lugar nenhum, refaz-se sempre no meio do caminho. Logo no início da narrativa de Grande sertão: veredas, o jagunço Riobaldo Tatarana, define a palavra com precisão: “Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade”. O mundo onde todas as coisas ainda estão por fazer, e seu avesso, a terra onde o Arraial de Canudos foi massacrado, o rio no qual o seringueiro do Alto Purus se arruína, a história de uma República em que uma grande oportunidade se perdeu irremediavelmente.

Nesse Brasil encharcado de ficção, Sertão é um topos literário, político e histórico que se inicia com Euclides da Cunha. Tornou-se uma perspectiva original de interpretação do Brasil capaz de combinar o encontro da imaginação literária com alguns temas complexos da formação social brasileira: aponta para uma República de formato instável, cujos ideais normativos ainda estão por consolidar-se. Não mudou quase nada. Entre nós, a República segue sendo um arremedo. Mas a palavra Sertão está aqui quase desde sempre. Talvez seja uma boa hora para ler Euclides da Cunha – e pensarmos sobre o que estamos fazendo hoje. Ou vamos enterrar o nosso vazio republicano em desatento individualismo?

Por: Heloisa Murgel Starling (Arte: Karina Freitas)
PERNAMBUCO-Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado

RUBEM BRAGA E LAMPIÃO


Do acervo do João Filho de Paula Pessoa

“Lampião, que exprime o cangaço, é um herói popular do Nordeste. Não creio que o povo o ame só porque ele é mau e bravo. O povo não ama à toa. O que ele faz corresponde a algum instinto do povo. [...] Os métodos de Lampião são pouco elegantes e nada católicos. Que fazer? Ele não tem tempo de ler artigos do Sr. Tristão de Ataíde, nem as poesias do Sr. Murilo Mendes. É estúpido, ignorante. Mas se o povo o admira é que ele se move na direção de um instinto popular. Dentro de sua miséria moral, de sua inconsciência, de sua crueldade, ele é um herói - o único herói de verdade, sempre firme. A literatura popular, que o endeusa, é cretiníssima. Mas é uma literatura que nasce de uma raiz pura, que tem a sua legítima razão social e que só por isso emociona e vale.”

Rubem Braga.
Crônica “Cangaço” publicada pelo Diário de Pernambuco de 2 de fevereiro de 1935 (número 28). 

(João Filho de Paula Pessoa, Fortaleza/Ce.) 12/12/2019.


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LAMPIÃO E O TENENTE CASACA PRETA




O Sr. Augusto Gouveia residia em Recife e através dos jornais, lia as proezas de Lampião no Sertão. Achava ele que tudo aquilo era alarme dos jornais. O homem incutiu o desejo de ir ao Sertão, enfrentar o cangaceiro e seu bando. Para isso, apresentou-se ao Dr. Eurico de Souza Leão, chefe da Polícia de Pernambuco. Aquela autoridade estranhou aquele desejo, sabia que o homem estava mal informado a respeito de Lampião. Argumentava Augusto Gouveia, quero mostrar que tiro a fama do furioso cangaceiro. Para a sua captura, só precisava de seis ou sete soldados, cada um com cinco cartuchos e um maço de cordas para amarrá-lo. Garantiu que o traria preso para o Recife. Dr. Eurico duvidou, achando aquilo inteiramente impossível. Procurou fazê-lo desistir da ideia tão absurda, inclusive disse que, ele era um civil sem conhecimento militar, principalmente das guerrilhas do Sertão, que retirasse do pensamento aquele desejo. Respondeu Augusto Gouveia que na realidade era um civil, sem conhecimento militar, mas queria mostrar que era homem e que vestia calça. Considerando a forte insistência do homem, o Dr. Eurico de Souza Leão resolveu mandá-lo para o Sertão. O Governo o comissionou no posto de Tenente, mandando-o apresentar-se ao Major Theophanes Torres, em Vila Bela (atual Serra Talhada), onde foi duramente aconselhado pelo Major a desistir dessa ilusão, inclusive disse que ele estava seriamente enganado com Lampião, que o mesmo não era de brincadeira. Nada fez o novo oficial desistir, passou então o Major Theophanes à sua disposição sete soldados e todo armamento exigido pelo homem. Por só usar calça marron e paletó preto, foi logo batizado por Casaca Preta, com esse apelido, ficou Augusto Gouveia conhecido no Sertão de Pernambuco. Através de informações, seguia o Tenente Casaca Preta e seus companheiros a procura de Lampião. Próximo ao distrito de Roças Velhas, no atual município de Calumbi, encontraram-se duas Forças, uma da cidade de Custódia, comandada pelo Sargento Maurício Vieira de Barros e outra da cidade de Flores, comandada pelo Sargento Wanderley, que vinha em perseguição aos bandidos. Entraram em palestra. Terminada a mesma o Sargento Wanderley despediu-se, dizendo que ia voltar para Flores, pelo mesmo caminho, que nada tinha a ver com Lampião. Seguiu o Sargento Maurício na trilha dos bandidos, ao chegar à Fazenda Barreiros, município de Vila Bela, avistaram distante, um homem dando com os braços. Por não saber de quem se tratava, a força ficou na expectativa. O homem vinha montado em burro, outros vinham armados, e a pé. Aproximou-se o referido homem do Sargento Maurício, perguntou pelos cangaceiros. Respondeu o Sargento Maurício que estavam por perto, apontou para o lado que os mesmos se encontravam. O homem vinha tão exaltado e revoltado que o Sargento Maurício, sem conhecê-lo, pasmou diante de tanta exaltação e revolta. Ficaram pensando de onde vinha aquele louco, comandando aquela Força. O Sargento Maurício perguntou com quem estava falando. O homem respondeu: Está falando com o Tenente Augusto Gouveia (conhecido por Casaca Preta). O Sargento Maurício disse: Seu Tenente Casaca preta, se quiser brigar siga nessa direção, o senhor vai encontra quem procura. Avançou Casaca Preta, falou muito alto, ao depara-se com Lampião, dando voz de prisão, dizendo que não fizesse ação que ele estava de frente com o Tenente Augusto Gouveia (o famoso Casaca Preta). Lampião, que nunca tinha visto aquilo, estranhou e disse: Seu Casaca Preta da peste te prepara para correr, se você nunca viu homem, vai ver agora. Você é doido, mas na minha volta vai criar juízo, e já! Gritou Lampião para cabroeira: Pega! Pega este Casaca Preta! Nas minhas costas, Casaca Preta não cria fama de valente. Nesse momento, a pipoqueira de tiro foi tão grande em cima de Casaca de Preta que o homem ficou desorientado sem saber para onde correr. Deixou a força sem comando, ardendo-se nas unhas de Lampião. O bravo Tenente, vendo a situação esbugalhou os olhos de forma que ficou completamente deformado. Jogou o burro nas águas de um açude existente. Os soldados gritavam: Senhor Tenente, pegue o homem! Desenrole as cordas! Amarre o homem! Pegue o homem! Dentro do açude, deixou o burro atolado, com todo equipamento, saiu nadando, molhado como um pinto. Os olhos em tempo de saltarem da caixa, fazendo medo a quem o visse; a sua fisionomia não era de gente deste mundo. O homem corria que nem bala pegava. O próprio Lampião foi quem saiu no encalço, gritando: Não corra Casaca Preta! Não corra! Espera para brigar com Virgulino Ferreira! Escuta o golpe do rifle de Lampião! Na carreira que ia, mesmo sem freio, Casaca Preta entrou em uma casa pela porta da frente saindo por outra. Lampião, que vinha no seu faro, foi entrando na casa e virando tudo, pensando que o homem estivesse escondido dentro de casa. Como não encontrou, perguntou à dona da casa para onde ele tinha corrido. A mulher apontou para um lugar diferente. Seguiu Lampião, não encontrando. Assim aquela mulher, salvou a vida do tenente. Quando a mulher disse que o homem havia saído correndo, Lampião disse: Homem não, um cabra safado. Lampião gritava que tinha tirado e acabado com a mandinga e o catimbó de Casaca Preta. O capote do famoso Tenente, os cangaceiros conduziram pendurado na ponta de uma vara, fazendo a maior anarquia. Na carreira, o Tenente Casaca Preta foi sair em Vila Bela de onde voltou para o Recife

Do livro: Memória de um Soldado de Volante
De: João Gomes de Lira
Fotografia do site: Farol de Notícias.
Na foto, Casa da Fazenda Barreiros do Coronel Manoel Pereira Lima, na porta o furo da bala que tinha como alvo o tenete Casaca Preta.
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