Por André Luis Mansur
Chegada
de D. João VI a Salvador, de Cândido Portinari Foto:Reprodução
O
trajeto foi cheio de percalços, incluindo uma epidemia de piolhos que obrigou a
princesa Carlota Joaquina a raspar a cabeça.
Se atravessar o
oceano num barco à vela até hoje exige uma senhora coragem, imagine 200 anos
atrás. No início do século 19, cruzar o Atlântico era um desafio repleto de
perigos. Principalmente, levando-se em conta que os navios usados na mudança da
corte para o Brasil, em 1807, eram verdadeiras “latas-velhas” –
desconfortáveis, vulneráveis no caso de combate e carentes de reparos.
Ainda naquele
29 de novembro, dia da partida de Lisboa, a esquadra portuguesa – composta por
19 navios – encontrou-se com a frota britânica que a escoltaria até o Brasil –
outras 13 embarcações. Essa deve ter sido uma cena monumental, de ficar gravada
para o resto da vida na memória de quem a testemunhou: 32 barcos de guerra,
mais uns 30 navios mercantes, preparando-se para a travessia oceânica. Às três
horas da tarde, o comandante da Armada britânica, Sidney Smith, ordenou uma
salva de 21 tiros de canhão. Estava marcado o início da penosa jornada da
família real em direção à colônia.
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Rico sofre
Algo entre 10
mil e 15 mil portugueses – cerca de 5% da população do país – estavam
embarcados naqueles navios. Na maioria, era gente importante, muito afeiçoada
aos luxos da nobreza. No Afonso de Albuquerque, navio em que viajava
Carlota Joaquina, uma infestação de piolhos obrigaria todas as mulheres –
incluindo a princesa – a raspar o cabelo. Ratos eram abundantes nas
embarcações, o que só aumentava o risco de uma epidemia. Por causa da
alimentação precária, distúrbios intestinais tornaram-se comuns. Para os nobres
portugueses em fuga, a situação não poderia ser mais constrangedora.
Dom João e sua
mãe, a rainha Maria I, estavam no navio Príncipe Real – acompanhados de Pedro e
Miguel, os dois filhos do príncipe regente com Carlota. Quatro das seis filhas
do casal viajavam com a mãe, no Alfonso de Albuquerque. E as outras duas filhas
seguiam no Rainha de Portugal. Ainda havia uma tia e uma cunhada de dom João,
embarcadas no navio Príncipe do Brasil.
Navegação
arriscada
No dia 8 de
dezembro, perto da ilha da Madeira, uma violenta tempestade fez estragos
consideráveis. Na esquadra portuguesa, mastros foram quebrados e velas,
rasgadas. A péssima condição de visibilidade obrigou as embarcações a parar,
sobretudo porque aquela era uma área de navegação arriscada, cheia de rochedos
submersos. A frota dispersou-se e uma parte dela seguiu direto para o Rio de
Janeiro. Alguns navios britânicos já tinham voltado para a Europa, a fim de
reforçar o cerco à Lisboa, invadida por tropas de Napoleão.
Representação
da saída da frota em direção ao Brasil Wikimedia Commons.
Quando as
esquadras alcançaram a linha do equador, novo imprevisto: uma calmaria tornou a
frear o avanço, submetendo passageiros a dias de sol escaldante. Casos de
insolação e desidratação multiplicaram-se. Até que a calmaria se foi, a viagem
seguiu e 1807 chegou ao fim – uma triste passagem de ano para a corte
portuguesa.
Cajus e Pitangas
Depois de
tanta carne seca e biscoito, imagine qual não foi a alegria de dom João e sua
comitiva ao avistar, já bem perto da costa brasileira, um pequeno barco não
identificado. Era o Três Corações, um bergantim enviado por Caetano Pinto de
Miranda, então governador de Pernambuco, para dar as boas-vindas à Coroa
portuguesa. Dentro dele, um carregamento de frutas tropicais, como cajus e
pitangas, e muitos recipientes com refresco. Aquele certamente foi um momento
de glória – dom João e seus asseclas tirariam a barriga da miséria.
Àquela altura,
o príncipe regente já havia determinado que o destino da frota seria Salvador,
e não o Rio de Janeiro. Em 23 de janeiro de 1808, 55 longos dias depois de
zarpar de Lisboa, a comitiva finalmente desembarcou na Bahia, para uma escala
que duraria pouco mais de um mês. Estavam todos cansados e debilitados. Mas o
primeiro desafio tinha sido superado: o oceano Atlântico, agora, protegeria a
corte da fúria de Napoleão.
Purgatório em
alto-mar
Eram terríveis
as condições a bordo do Príncipe Real, navio que trouxe dom João ao Brasil. Os
banheiros particulares eram exclusivos de oficiais e pessoas mais importantes,
o resto da tripulação contava com sanitários públicos e livres de qualquer
higiene. A presença de animais - porcos, galinhas, vacas e cabras que
garantiam a alimentação dos passageiros mais ilustres - também não ajudavam em
nada na higiene.
Enquanto
poucos se alimentavam de carne fresca, ovos e leite, a ração servida à maioria
dos passageiros era formada por carne salgada, biscoitos, lentilhas e ervilhas
desidratadas. A água era salobra e o vinho, péssimo. Resultado:
desarranjos intestinais freqüentes.
Os suprimentos
eram mantidos em barris, com todo o asseio possível, - o peso dos barris
ajudava a manter a estabilidade do navio -, mas acabavam atacados por
ratos, que roíam a madeira. Além disso, os barris de biscoito acomodados no
porão acabavam contaminados por vermes. Para eliminá-los, usava-se peixe morto:
eles eram atraídos pela carcaça, até que os biscoitos ficassem “próprios para o
consumo”.
Os navios
portugueses eram antigos e careciam de uma série de reparos. Eles deram
trabalho de sobra para carpinteiros e ajudantes durante toda a travessia.
Rachaduras, quando surgiam, eram preenchidas com estopa e piche.
Embarque da
família real portuguesa no cais de Belém, em 29 de novembro de 1807 Wikimedia
Commons.
Os chamados
“navios de linha” (capazes de entrar na linha de combate) podiam ter até 100
canhões, alinhados nas laterais de cada deque e geralmente de três calibres
diferentes. Cada canhão era operado por uma equipe de até seis homens. A
pólvora era armazenada em compartimentos no fundo, para evitar ser atingida
durante um combate. Manuseá-la era tarefa de alto risco, reservada a
especialistas.
Dom João
viajou na cabine do comandante, na popa. Era o lugar mais confortável do navio,
com gabinete de trabalho, sala de refeições e quarto. Até banho quente dom João
tomava – em uma bacia, com água da chuva aquecida num fogão. A corte teve de se
acomodar em redes estreitas e muita gente deve ter dormido no chão. Os deques
reservados aos nobres passageiros eram mal ventilados e não garantiam a menor
privacidade aos ocupantes.
Qualquer
descuido da tripulação podia resultar numa tragédia (como a disseminação de uma
epidemia). Por isso, a disciplina era mantida com rigor. Castigos corporais,
como chibatadas, eram punições rotineiras. O risco de infecções também era
altíssimo. As cirurgias mais comuns eram as de amputação.
Sofrimento no
Atlântico
Os perrengues
enfrentados pela família real em 55 dias de viagem.
29 de novembro
de 1807 - O embarque.
A esquadra
portuguesa zarpa do cais de Belém, em Lisboa, e encontra-se ainda bem perto da
costa, com as 13 embarcações britânicas que farão sua escolta até o Brasil.
8 de dezembro
de 1807 - A tempestade
Perto da ilha
da Madeira, o mau tempo obriga os navios a parar. Uma tempestade destroi velas
e derruba mastros, enquanto a falta de visibilidade torna a navegação perigosa
– a área é repleta de rochedos submersos. Algumas embarcações, no entanto,
retomam a viagem e seguem direto para o Rio de Janeiro. A frota acaba se
dividindo.
8 de dezembro
de 1807 - A calmaria
Ao cruzar a
linha do equador, uma calmaria submete os passageiros a dias inteiros de
sofrimento sob um sol escaldante. Mas dois navios portugueses e três britânicos
encontram ventos mais a oeste e seguem viagem até o Rio de Janeiro. Elas transportam
duas filhas de Carlota Joaquina e duas irmãs de Maria I.
23 de janeiro
de 1808 - A chegada
Cinquenta e
cinco dias depois de zarparem de Lisboa, dom João e Carlota Joaquina finalmente
desembarcam no Brasil. Em Salvador, permanecerão por pouco mais de um mês,
antes de se fixarem em definitivo na cidade do Rio de Janeiro.
Extraído da página facebook da pesquisadora Verluce Ferraz
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