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domingo, 12 de outubro de 2014

VARIAÇÕES SOBRE A MESMA LÁGRIMA

Por Rangel Alves da Costa*

Lágrima. Nome bonito, pulsante, também triste. Palavra sentimento, também mistério. Termo vivenciado, e quase sempre fugido. Lágrima também poética, parecendo orvalho num pêndulo de sofrimento e numa folha de contentamento. Lágrima feito pingo de chuva, feito seiva que se derrama.

Lágrima que sem palavras diz tudo, que tem o dom de sintetizar a dor e a graça. E silenciosa grita, chama, brada, confessa. E se mostra no olhar como a chuva escorre na vidraça. Na vidraça a escrita da saudade, do adeus, do amor, do sentimento. E nos olhos a escrita revelada pelos mistérios da alma.

O lenço de despedida recolhe a lágrima para guardar na saudade. A mão trêmula recolhe a lágrima para que as mãos também chorem. Os travesseiros das noites saudosas ou dolorosas se tornam como canteiros encharcados que escorrem as solidões noturnas. E os olhos, frágeis demais e impotentes diante de sua chegada, simplesmente abrem seu leito deixando escorrer pela face.


Os olhos são como leitos apenas úmidos, e tantas vezes quase ressequidos pelas estiagens da alma. Igualmente às fontes que vão se enchendo segundo as chuvas que caem ou as águas que descem das ribanceiras, também os olhos vão sendo tomadas de água segundo o clima emocional existente em cada ser.

Nos leitos, nas fontes e córregos, são as intensidades das chuvas que determinam o momento e a quantidade de acúmulo de água. No ser humano, são as consequências dos encontros e desencontros, das realizações e das perdas, que passam a refletir a meteorologia da alma. E dificilmente haverá alguém que de repente abdique de seu deserto para fazer surgir nos olhos um oásis.

Conceitualmente, a lágrima é única, possui um só entendimento, eis que sempre vista como o líquido incolor que se derrama dos olhos como consequência de uma causa física ou emocional. É um fluído lacrimal que desce da nuvem dos olhos segundo a paisagem do instante seja de tristeza, alegria, comoção ou contentamento.

Assim, lágrima sempre denota líquido, fluído, um fio d’água que surge no olhar e vai se derramando, se espalhando na face. Contudo, de forma totalmente diversificada é a predisposição do olhar para fazê-la fluir, seja apenas como uma pequena gota ou como verdadeira enxurrada.

Muitas vezes, mesmo que somente os olhos fiquem marejados ou apenas um grãozinho lacrimal se esconda pelo canto do olho, ainda assim um verdadeiro oceano se esconde lá dentro. Noutras vezes, por mais que o mar se derrame inteiro não terá maior força e significado que aquele pinguinho que timidamente surgiu.

O mar chorado, o oceano derramado, a fonte jorrando, o grão de lágrima ou apenas sua réstia no olhar, nada disso consegue traduzir o sentimento brotado lá no nascedouro, no íntimo, nas correntes da alma. Por isso mesmo que chorar pouco ou muito não significa muito diante das motivações interiores, das causas predispondo ao pranto.


A dor íntima, o sofrimento interior, nem sempre precisam de lágrimas para se expressar. Muita gente chora, avermelha a face, afogueia os olhos, mas não derrama uma lágrima sequer. E não significa que sofra menos, que a sua dor seja inferior àquela chorada em rios. Pessoas assim sofrem ainda mais porque é o íntimo que pranteia, e ao fazer isto fragilizam todo o organismo.

O mesmo ocorre com a alegria intensa, com aquela surpresa tão boa surgida que a pessoa de repente se põe a chorar. É o avesso da dor que também desperta o sentimento e permite que organismo seja chamado a participar dessa alegria, sob pena de aprisionar os prazeres da vida. As lágrimas surgidas e derramadas são menos intensas, mais passageiras, mas ainda assim expressando toda a força do momento.

O choro, por mais triste que seja, faz desaguar os sofrimentos represados. E as lágrimas vão tomando seu rumo pelo curso adiante. Bom seria que igualmente ao rio suas águas não escorressem pelos mesmos leitos dos sofrimentos.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com


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LAMPIÃO NA BAHIA


Após sofrer sucessivas derrotas e ter o seu bando aniquilado pelas Forças Volantes pernambucanas... Lampião resolve tentar a sorte em solo baiano. Acreditava que tudo seria diferente e que teria tempo para recuperar-se das derrotas sofridas e novamente convocar novos membros para seu bando.

Ao entrar no estado da Bahia em 1928, durante algum tempo, Lampião adotou o critério da boa vizinhança e passou somente a fazer algumas extorsões a alguns fazendeiros e comerciantes locais, deixando de lado a população, de um modo geral.

Esse período de trégua duraria somente até a recomposição de sua hoste, o que não demorou muito para acontecer.

Pouco tempo depois com seu bando novamente formado, começa uma nova onda de crimes e levaria novamente o terror a toda população nordestina.

NAS QUEBRADAS DO SERTÃO...

Geraldo Antônio de Souza Júnior

Obs: Acima uma fotografia de Lampião e seu pequeno grupo no Estado da Bahia no ano de 1928, mais precisamente na cidade de Ribeira do Pombal.

Fonte: facebook
Página: Geraldo Júnior

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Existia amor no cangaço?


José Mendes, você nos apresenta um texto de Maristela Mafuz, no qual é abordado o tema do amor no cangaço. Belo texto. Aproveito o ensejo para fazer alguns comentários a respeito da participação de mulheres na vida cangaceira.

Maristela Mafuz

Os cangaceiros eram homens rudes, mas não diferiam muito dos vaqueiros e pobres lavradores do seu tempo, na luta contra a miséria nas caatingas. Escrevi sobre esse tema, num capítulo intitulado "Mulheres no cangaço". Antes de Maria Bonita se juntar a Virgulino, não havia mulheres no bando. Como uma mulher não podia ficar sozinha no meio de muitos homens, Maria levou consigo uma cunhada, que se juntou ao cangaceiro Ângelo Roque. A terceira mulher a integrar o bando foi Dadá. Depois, um cangaceiro do grupo de Corisco chamado Azulão pediu autorização para trazer também a namorada, sua prima Maria, do Poço das Pedras, fazenda situada nas imediações de Várzea da Ema. Lavandeira trouxe Lili, nascida no Juá, que tinha parentes no arraial de Nambebé. Virgínio, cunhado de Lampião, viúvo (tinha casado com Angélica Ferreira), passou a viver com Durvalina (Durvinha), filha de Pedro Gomes, dono da fazenda Arrastapé, nas imediações de Paulo Afonso. Luís Pedro levou consigo uma moça chamada Neném, do Salgadinho, também perto de Paulo Afonso. A partir daí, perdeu-se a conta das mulheres cangaceiras. No curso do tempo, mais de 70 mulheres se tornaram cangaceiras. Relaciono no mencionado capítulo uma a uma, com nomes e apelidos, bem como os respectivos maridos.

Os cangaceiros viviam amasiados, mas houve um casal constituído formalmente e outro, quase: Cajazeira e Enedina casaram-se no civil e
na igreja, e Corisco e Dadá foram casados por um padre, mas sem as formalidades eclesiásticas (proclamas e assentamentos no livro próprio). Com a presença de mulheres no bando, um novo item passou a fazer parte do regimento disciplinar: o respeito. Os casais gozavam de privacidade nos acampamentos, com direito a barracas isoladas das demais. As mulheres deviam fidelidade absoluta aos seus homens.

Lampião não permitia promiscuidade, pois sabia que disputas no bando pelas fêmeas teriam consequências incontroláveis, perturbando a harmonia entre os seus cabras.

Os fatos mais notórios relativos às mulheres do cangaço foram as tragédias passionais envolvendo Lídia, Lili e Cristina.

Naquela quadra, a vida da mulher nordestina, como, aliás, a vida da mulher brasileira em geral, era restrita ao âmbito familiar e aos afazeres domésticos. Ainda não tinham soprado por estas bandas os ventos das transformações sociais decorrentes da revolução industrial. Os cargos e os empregos eram destinados quase que exclusivamente aos homens. Praticamente as únicas profissões 
femininas eram as de professora e costureira. As filhas dos 
fazendeiros eram preparadas para ser esposas prendadas: aprendiam a cozinhar, costurar, bordar, fazer rendas. Os coronéis do sertão mandavam as filhas para estudar nos colégios de freiras e nas “escolas normais”. As pobres, quando muito, só aprendiam a ler.

Nas zonas rurais, as mulheres eram em geral analfabetas. Muitos pais proibiam as filhas de estudar, para que não aprendessem a fazer carta para os namorados. As filhas dos moradores das fazendas trabalhavam 
nas roças desde meninas, ajudando os pais, e quando casavam 
continuavam a mesma lida com os maridos e os filhos. 

Trabalhos com 
gado e serviços de machado, foice e picareta eram para os homens. Mulheres e crianças encarregavam-se de serviços “mais leves”, 
como coivarar, plantar, limpar mato de enxada, quebrar milho, arrancar feijão, colher algodão, fava e feijão-de-corda, raspar mandioca.

Nas horas de “descanso” e nas épocas de falta de trabalho nas roças, sentavam-se diante de almofadas com seus bilros e alfinetes, para fazer rendas e bicos, fonte de receita complementar dos incertos 
e minguados ganhos da lavoura.

Ao contrário dos homens, que entravam para o bando porque queriam mesmo ser cangaceiros, as mulheres tornavam-se cangaceiras por força das circunstâncias, para estar com seus maridos ou namorados. Para elas, portanto, o cangaço não era uma “profissão”, mas uma contingência da vida. As garotas das roças e das pequenas 
povoações sertanejas, ao mesmo tempo em que tremiam de medo dos cangaceiros, paradoxalmente viam os cangaceiros como heróis românticos, príncipes encantados de um reino onde havia perigo e morte, mas que, por pior que fosse, não podia ser pior do que a 
triste situação em que viviam. No íntimo, sentiam-se fascinadas por aqueles homens valentes de que tanto se falava, como se fossem 
induzidas pelo instinto natural de fêmeas a querer parir um filho daqueles cabras machos como o diabo! 
Corisco era contra esse negócio de mulher no bando. Quando entrava 
um novato, ele avisava:

– Venha só. Nun traga muié. De muié pra dá trabaio já basta a minha.


Esses comentários, postos aqui em síntese, estão em "Lampião - a Raposa das Caatingas", páginas 373 a 380, num capítulo em que conto como Lampião conheceu Maria, a bonita primeira-dama do cangaço.

Peço que se alguém reproduzir o texto que acabo de expor, por favor cite a fonte.

Visite o blog do autor:

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Local onde os cangaceiros Corisco e Dadá foram baleados


Local onde os cangaceiros Corisco e Dadá foram baleados


Fazenda da família Pacheco, município de Barra dos Mendes BA, em companhia de Zélia Pacheco, local onde foi baleado Corisco e Dadá, em 25 de Maio de 1940, pela volante do Sargento Zé Rufino.


A casa de farinha era o local onde Corisco e Dadá estavam arranchados.

Fonte: facebook

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OS NORDESTINOS MUDARAM A HISTÓRIA DO NORDESTE E AJUDARAM A CONSTRUIR A GRANDEZA DO BRASI

Vez por outro a gente lê coisas de gente idiota, discriminando o povo sertanejo, gente guerreira, que criou os filhos, como se diz "puxando cobra pros pés", no chão seco das roças por esse sertão ardente, caatinga a dentro.

Dói quando gente metida a besta, ladrões de terno e gravata, políticos enrolados até o pescoço nessa onda de corrupção ou gente metida a rica, tripudia da sabedoria e da grandeza desse povo simples. 

Esqueceram estes que foi a força e a garra dos nordestinos que construiu São Paulo, Brasília e muito Brasil afora.


Eles escavaram túneis e construíram usinas hidrelétricas da Chesf a 80 metros de profundidade nas rochas de granito e mudaram a história do Nordeste 

Em homenagem a estes sertanejos "antes de tudo, fortes", como já dizia Euclides da Cunha, apresento estes versos de um mossoroense, que disse só um pouquinho da grandeza desse povo.

MEU BRASIL DE CANTO A CANTO, TEM SUOR DE NORDESTINO


Por Antônio Francisco (Música e interpretação Genildo Costa)

Quando a seca vem devora
Do Nordeste toda flora
Nordestino vai embora
Para o Sul a todo instante
Trabalhar como gigante
E ganhar como menino
Molhando o solo sulino
Com sangue, suor e pranto.
Meu Brasil de canto a canto,
Tem suor de nordestino.

Numa favela jogado
Lá no Rio de Janeiro
Sem emprego e sem dinheiro
Na sombra do Corcovado
Todo o tempo ajoelhado
Esse pobre peregrino
Pedindo a Jesus divino
Que lhe cubra com seu manto.
Meu Brasil de canto a canto,
Tem suor de nordestino.

Foi soldado da seringa
Lá pelas bandas do Norte
Brincou lá com sua sorte
Longe de sua caatinga
Seu suor ainda pinga
Dos galhos do cipó fino
Num testemunho divino
Que o nordestino é um santo.
Meu Brasil de canto a canto,
Tem suor de nordestino.

Por esse pau-de-arara
Brasília foi construída
Esse pedaço de vida
Tem ferida que não sara
Gastou o suor da cara
No governo Juscelino
Merecia estátua e hino
Quem trabalha do seu tanto.
Meu Brasil de canto a canto,
Tem suor de nordestino.

(*) Antônio Francisco é poeta e escritor mossoroense

Adendo: http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Conheça um pouco sobre a Vida do poeta potiguar Antonio Francisco Teixeira de Melo, filho de Francisco Petrolino de Melo e Pêdra Teixeira de Melo, nasceu em Mossoró-RN, a 21 de Outubro de 1949. Tem graduação em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. É poeta popular, xilógrafo e compositor. Um dado interessante é que, só após os quarenta anos, ele se dedicou ao ato de escrever. Sua produção cordelística está sendo muito elogiada pela crítica literária atual, que o considera a grande revelação dos últimos anos no campo da literatura de cordel. Tem mais de 50 folhetos publicados e três livros: Dez cordéis num cordel só, adotado para o vestibular da UFRN, Por Motivos de Versos, e Veredas de sombras, edições Queima-Bucha. No dia 15 de maio de 2006 tomou posse na Academia Brasileira de Literatura e Cordel - ABLC. 

http://voluntariosdaleitura.blogspot.com.br/2010/11/conheca-um-pouco-sobre-vida-do-poeta.html

Fonte: facebook
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O CANGAÇO - VOLANTES


A Coluna do Tenente Ladislau de Sousa, da polícia Baiana, chegando a cidade de Jeremoabo, após permanecer 15 dias nas caatingas a procura do bando de Lampião, no ano de 1933.

Foto e informações gentilmente cedidas por Robério Santos(Itabaiana-SE).

Fonte: facebook

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O PODER DA FÉ - Odisseia de um ferimento de Lampião (26 de março de 1924)

Material do acervo do pesquisador Raul Meneleu Mascarenhas

Muitas estórias se tem pra contar a respeito de Lampião. Quanto mais você estuda e ler sobre o cangaceiro, mas estórias você encontra. Umas verdadeiras e outras mentirosas, sendo essas últimas que fizeram mais e mais a fama dele e de seu bando.

Compete aos historiadores e pesquisadores ir a fundo nestas estórias para que as mesmas não se tornem lendas descabidas e no suprassumo das pesquisas, desçam escorrendo perante nossos olhos e mentes, a verdade através dos relatos dos que conviveram com ele. Isso muitos de nós apreciadores dessa saga agradecemos a presteza desse ilustres abnegados, que quase ou nenhum patrocínio dos museus públicos tiveram e a maioria colocando dinheiro de seu próprio bolso, pelo afã de amarem a História de Lampião, O Rei do Cangaço.

Trazemos a atenção mais um relato bem embasado de quem pesquisou a fundo os atos e as atitudes de Lampião, Frederico Bezerra Maciel. Nos relata com detalhes preciosíssimos a aventura contada abaixo, do poder da fé que Lampião tinha ao ser ferido em uma batalha na serra do Catolé. Vemos surgir pelas linhas do autor de 'Lampião, Seu Tempo e Seu Reinado'. Vamos acompanhar com bastante atenção esse relato, registrado no capítulo 21 do do livro II 'A Guerra de Guerrilhas' onde poderemos enxergar um pouco, o homem que era Virgulino Ferreira, o Lampião:


Diversos autores têm repetido o engano de Optato ao afirmar que a odisséia do ferimento do pé de Lampião se deu na serra das Panelas. A correção do engano foi confirmada, entre outros, pelo Coronel Alípio Pereira de Sousa. A serra do Catolé é, também chamada de serra do Padre.

Nas cumeadas do Catolé

Depois de Santa Maria, rumou Lampião, com aquele seu pequeno grupo de apenas nove homens, para a serra do Catolé nos limites do município de Vila Bela com a Paraíba. Considerando insuficiente o apoio de seu grande amigo, o coronel Zé Pereira, limitado exclusivamente dentro de seus interesses políticos em Princesa, enviou Lampião, logo ao chegar no pé da serra, seu irmão Livino, disfarçado em "fazendeiro maranhense", para comprar armas e munições pelos comércios distantes.

Ninguém como Livino para essa missão comercial: tipo vistoso e simpático, puxado na cor branca, maneiroso de trato e de boas falas convincentes, alto, moreno bem claro, liforme de brim caque, gravata manta, chapéu de massa, de abas largas e achatado na copa, botinas pretas, apresentando nome fictício, e dizendo-se filho de fazendeiro do Maranhão, assim se apresentou, esse tipão de moço, na casa comercial "A Sertaneja", de Pesqueira, a fim de comprar armas e munições, alegando que eram contra bandidos pelas bandas de sua terra. Naqueles tempos não havia ainda proibição de venda de armas e munições.

Comprou todo o estoque: seis rifles Winchester 44, papo amarelo, quatro revólveres Smith & Wess, niquelados, calibre 38, três revólveres Colt, cor preta, também, de calibre 38, toda a munição, cerca de 1.700 cartuchos, sendo mais de 1.000 só de bala de rifle. Pistola fogo-central ou comblain, não quis não. Pagou tudo à vista. sem discutir menos. Num dos três armazéns dos fundos da mesma casa comercial, virados para a atual rua Maestro Tomás de Aquino, fez a embalagem da mercadoria em caixões de cerveja Pilsen, entre garrafas encamisadas com palha. Despachou a "cerveja" pela Great Western, com destino a Rio Branco, para de lá seguir em lombo de burro.

Desejando mais munição, pediu o tal cidadão carta de apresentação para firmas da praça. Não podia o comerciante e dono da "A Sertaneja", Orestes de Almeida Maciel, que contou o presente relato com tanta minúcia, furtar-se de atender a tão excelente freguez e entregou-lhe duas cartas, para Herm Stoltz e o Armazem do Caboclo, não sabendo porém, se ele esteve por lá. Mais tarde, aquele comerciante, diante de um retrato do famoso Livino Ferreira, identificou nele os traços daquele "filho do fazendeiro", não querendo, entretanto, afirmar categoricamente, mas apenas com "quase certeza", que era o mesmo.

Carecia Lampião entregar-se a algum repouso. Subiu a lombada íngreme da serra, por motivo e razão de mais seguridade, sob afirmação garantida e repetida de Cícero Costa de que não havia volante por perto, todas em Vila Bela. Construídos no cocuruto da elevação, para arranchação, alguns quixós, com arcabouço de varas, revestimento e coberta de palha de catolé. Deslumbrante e maravilhoso o panorama descortinado de lá de cima.

De um lado, a serra da Pedra do Reino, com os dois gigantescos monólitos no cimo, esguios e irmãos, coroados de malacacheta faiscante aos raios do sol... — envoltos, esses grandiosos blocos, nos mistérios da lenda sebastianista do desencanto, ao bárbaro custo de sangue e vidas, de um rei outrora desaparecido... — ou envolvidos das névoas que, descendo se esgarçavam, se estendendo e se espalhando, pelas imensuráveis ondulações mansas dos vales e vargedos, até o desalcance da vista... Tudo agora verde com o inverno copioso, espelhando, também, em filetes de riachos e córregos e em conchas de lagoas, o prateado de suas águas abendiçoadas. O sertão virando mar... À noite, a cruviana, assobiando fino, varria de frio o cabeço do monte, encriquilhando até mesmo os chapéus de couro»...

A força da oração

Em surdina, partiram de Vila Bela, guiados por informações e no rumo da mesma serra, três poderosas volantes, sob o comando geral do próprio major Teófanes Torres. A sua, tendo como imediato o sargento Alípio Pereira e as outras duas sob o comando dos tenentes Ibraim e Amadeu. Coisa para mais de cem soldados.

Teófanes, ao passar com sua tropa pela casa do Tibúrcio Severo, prometeu-lhe dez contos se dissesse onde estava Lampião. Embora conhecendo o esconderijo, respondeu-lhe o fiel Tibúrcio: 

— "Ah! Se eu soubesse para ganhar agora tanto cobre!..."

Próximo da subida da serra, pegaram o coiteiro que transportava para Lampião carne de sol, farinha, rapadura, queijos, víveres e outras coisas mais, num jogo de malas de couro cru, carregadas em jumento encangalhado. Os oficiais apertaram o coiteiro, obrigando-o a levar as tropas até o esconderijo do grupo.

Os oito cangaceiros, embora arretados com suas armas e apetrechos, como era sempre de costume por maior precaução e seguridade, estavam ali bem descuidados. Uns deitados, outros jogando, nos doces esquecidos da vida.

Pela manhã do dia 26 de março, teve Lampião um de seus misteriosos e sempre certos pressentimentos. Deixou o fiango em que descansava e quando dava uma volta para fariscar os arredores da meia serra, apercebeu um roteio à sua direita. Que quando se volveu para espiar o que era, recebeu vários tiros lançados quase de uma vez só. Deu, de logo, queda de corpo e reagiu na bala, enquanto seus cabras, atentos desde à sua estranha saída, imediatamente, de suas boas posições, fizeram fogo nos atacantes, que iam subindo pelos arrastadores das covoadas.

Rebolando, coleiando e se arrastando, conseguiu Lampião acabar de descer a serra. Nesses entões, teve a estranha sensação de lhe faltar o pé direito. Realmente, estava ferido, e horrivelmente, por uma bala que lhe atingiu o mocotó, pelo lado de dentro, na região do astrágalo, esfachiando os ossos. A sangreira, sem parar, havia salpicado suas pegadas em todo o trajeto da descida. Tirou a camisa, rasgou-a pela metade e aplicou uma bandagem compressiva, enrolando com ela, e com bem de força, o pé estraçalhado, a modo de ver se estancava o sangue. E, cadê poder andar! Nem mesmo ficar em pé... de dor, de desapoio da perna e de fraqueza do corpo pela perda do sangue.

Nisto chegaram seus companheiros. Enquanto Antônio Ferreira, Luís Pedro, Sabino, Antônio Rosa e Meia Noite lhe davam cobertura, respondendo ao avanço desordenado dos soldados na mataria, os outros cabras trataram de conduzir seu chefe, revezando-se entre si no carrego, segurando-o pelas extremidades, ombros e pernas. Até que o hercúleo latagão negro vilabelense, Capuxu, tomou exclusivamente para si essa tarefa. Ele levava Lampião escanchado ou de mochila nas suas espadaúdas costas. Andava veloz deixando o ferido bem longe e voltava para a brigada. De novo pegava o baleado e repetia o mesmo, assim sucessivamente, até que  Lampião ordenou o deixasse escondido ali num pequeno balseiro coberto por densa moita de saia de ariú*, e depois, que fosse ele brigar e dissesse ao pessoal que abrisse a luta na direção oposta, para os lados da lagoa do Vieira, a modo de livrá-lo da sanha dos macacos. Nesse então, foram mortos Cícero Costa e Lavandeira. Era soldado só, os seiscentos, passando, correndo, gritando, atirando, berrando descomposturas e os piores nomes. Enquanto o pequeno grupo de cangaceiros se esbandaiava pra todos os lados.

*Saia de ariú conhecida, também, por folha de carne ou ainda sipaúba. Mofundo da família das combretáceas (dicotiledêneas das regiões quentes). Arbusto comum nas catingas, uma tormentosa em forma de cipó, formando moitas no chão em calotas de dois a três metros de diâmetro. Utilizado, na canícula do dia, como abrigo de dormir para gente, bichos, domésticos e cobras. Seu nome científico na classificação de Mártius: "Combretum ascandens".

Lampião, sozinho, de dentro da moita, botou bala na agulha de seu mosquetão e aguardou o desenrolar do cerrado tiroteio, distante e, aos poucos, raleando, até se findar. Mudou o pano ensopado de sangue, que não parava de correr. Sentia-se cada vez mais fraco, pálido sem um pingo de sangue, dores, extremas, insuportáveis, terebrantes ou verrumantes, produzindo uma ardência de queimadura em alto grau. Botou o pé para cima, apoiando-o na beira do buraco. A coloração do pé passava de roxo para negro. Era o começo da gangrena destruindo os tecidos pela necrose acelerada.

Observando que Lampião não estava na luta, deram os soldados de procurá-lo vasculhando por toda parte. Locas de pedra, moitas, pé de pau, subidas, descidas, buracos, valados... Bateram tudo. Sumiço misterioso! O major ficou indignado ameaçando ninguém sair dali enquanto ele não fosse encontrado ou se desse notícia dele. A busca redobrou, agora com rastejadores tirando as mínimas indicações dos rastos. De seu frágil e inseguro esconderijo, Lampião assistia a tudo: ao movimento dos soldados, falando e discutindo, reclamando e ameaçando, nos ires e vires, para lá e para cá, sem fim. Alguns grupos de soldados se aproximando, bem perto de seu esconderijo, dialogavam e passavam adiante: 

— "Que demora é essa, ninguém sai daqui hoje não?"

— "É orde do majó. Tem sangue por toda parte e é perciso pegá a pista principá".

Outros: "Tou c'uma fome danada". Comeram o resto de rapadura que tinha nos bornais e caíram fora.

Outros mais: - "Sargento Alípio, venha cá!

— "Que é?" — perguntou o sargento. -- "Por aqui tem cangaceiro ferido, já vi alguns pingo de sangue nas foias..." E se foram.

Finalmente, estoutros: O soldado Manuel Amaro se achegando mais de perto, obra de cinco metros da moita, disse: 

— "Aquele peste da bexiga tá é naquela moita!" E esquadrinhava com o olhar a moita, enquanto outro dois seus colegas diziam: 

— "Ele é lá cobra ou calango pra tá em moita?" 

— "Ele tá é na casa de Tibúrcio Severo, em Santa Rita". 

Compreendeu Lampião que havia chegado a sua hora. Nada poderia fazer. Nem sequer usar o mosquetão, de tão fraco, exaurido. Ele que todo o tempo passou pedindo a proteção de Deus e de sua Madrinha, a Virgem da Conceição, ia agora, nessa emergência suprema de sua vida e do seu destino, mais uma vez se valer do poder da fé.

Quebrou um talo de capim, segurou-o verticalmente na frente de seu rosto e rezou com toda a alma e fé a seguinte oração de envultamento, que lhe dera um preto velho, morador de Né Sinhô: 

- "Com o manto de Deus me cubro, com o manto de Deus me guardo, com o manto de Deus me escondo, com o poder de Deus vencerei meus inimigos". Avoou o talo de capim para trás, por cima do ombro direito, e encarou de frente o soldado, agora mais aproximado, os dois, ele e o soldado, se olhando fixe um para o outro. Espantoso! O soldado olhou, fixou bem nos olhos de Lampião e não o viu!... Uma força misteriosa o cegara. Nesse momento , alguém gritou: - "Cuma é? vamo enterrá Lavandeira e Cirço Costa?"

Desviando a atenção da moita, voltou-se o soldado para um companheiro que respondia ao primeiro:

— "Ninguém é coveiro de cangaceiro não. Deixe eles malas-sombrando a serra".

E os três se retiraram...

Não suportando mais a tensão emocional, torturado por um complexo de terríveis sofrimentos produzidos pelo pé ferido, pelo sangue esvaído, pela febre, pela fome e pela sede, Lam-pião foi sentindo, numa zonzeira de bêbado, a cabeça rodar em confusão, a vista tornar-se alazã, as vozes que ouvia se sumirem... Terminou lhe dando a grangulina. Ao tempo que tudo isto sucedia, conseguiu Antônio Ferreira, tiroteando a espaços, puxar as volantes para o lugar chamado Barros, uma légua mais além, adonde, emboscado com seus cinco companheiros, surpreendeu as volantes, ferindo três soldados, dois deles gravemente, que logo passaram a pronto. Isso foi o bastante para Teófanes suspender a persiga e voltar a Vila Bela.

Medicina sertaneja

Quanto tempo ficou Lampião desmaiado, nunca pode ele saber calcular. Apenas percebeu, quando deu acordo de si, que era o dia seguinte, já sol alto. Apesar de esmaecido de tanto sofrer, viu que ali, naqueles esquisitos, não podia ficar. Morreria à, míngua. O pé ferido tinha apodrecido com a gangrena bacteriana. Moscas e outros insetos do mato depositaram na ferida seus ovos e os incubaram. Suas larvas ou tapurus — os bichos de mosca —, proliferavam em abundância. O mau cheiro era nauseabundo e estonteante.

Com esforço sobre-humano, movido apenas por sua espan-tosa vontade de ferro, foi Lampião se arrastando penosamen te, conservando a perna direita levantada, por cima de pedras, espinhos e tocos, numa extensão que parecia sem fim, de Urnas trezentas braças (1.320 metros!), até chegar perto de uma vareda. Todo rasgado, sujo, o corpo lapiado, arranhado e ferido, batendo o queixo de febre e frio, clorótico, as feições contrafeitas de dores desde a cabeça aos pés, irreconhecível... Abrigou-se sob outra moita, pelos sinais, vasculhada pela polícia. O suplício da sede, o pior dos mais. Uma agonia louca, de matar.

De novo saiu se arrastando apenas umas três braças para comer um mato chamado "alva" e trincar Lins frutos tempo-rãos de imbu, verdes, azedos, murchos e duros, achados por acaso, atirados, talvez, de badoque, por algum menino brincando de caçar. A boca amargava só fel. A língua grossa, saburrosa. A garganta seca de estalar. De mansinho apareceu uma vaca reboleira pastando por perto. Com um ramo de mato, balançando para chamar, conseguiu Lampião atraí-la para junto de si. Mesmo deitado, tentou mungir o leite, sem peia nem cuia, diretamente por esguicho da teta para a boca. A vaca estranhou e deu-lhe violento coice na boca do estômago. Lampião, estatelado de dor, enroscou-se no próprio corpo quase perdendo os sentidos...

Com muito tempo, arquejando, voltou à moita. A tardinha, passava pela vereda um menino chamado Tonho Terto, de cerca de doze anos de idade, com uma cuia vazia do leite de freguezia, que fora entregar. Lampião lhe avoou uma pedra de advertência e chamada, porque não tinha força para falar alto. O menino se assustou e correu. Parou e ficou espiando de longe. Não divulgava o desconhecido que, deitado, fazia acenos com a mão, chamando-o. Precavido, apanhou uma pedra,. cujo tamanho lhe encheu a mão, e, confiado na velocidade de suas pernas, foi se achegando. Parecia-lhe o homem estar doente. Quase não reconhecendo e repugnado com o mau cheiro, perguntou admirado: 

— "seu Lampião?? — "Me acode, esse menino, sou eu mesmo. Vai logo dizer a teu pai pra trazer uma cabaça d'água e um taco de rapadura". Dando engulho, saiu o menino correndo. E dentro de meia hora estava de volta com seu pai, o mezinheiro Zeca Terto, o Ingá, que além de água e rapadura levava uma garrafinha com leite.

Diante do velho que se mostrava penalizado, disse Lampião: 

— "É a vida, Zeca". Do jeito que estava com sede, compreendeu Lampião que, se tomasse água, morreria. Tomou, então, alguns goles de leite em uma quenga de coco. O estômago engrolou, não sustentou e grumitou tudo. Soprando de cansaço, agoniado, e dando massagem circular no abdômen ainda muito dolorido do coice, deixou passar uns cinco minutos. Bebeu, de novo, mais uns goles, que o estômago segurou. Mas, o leite deu na fraqueza, vindo-lhe um suor de bica e uma gastura que parecia ia morrer, quase um esfalecimento.
Pediu a Zeca:

— "Veja se descobre alguém, se é que sobrou, desse ataque dos macacos".

Enquanto mordiscava o taco de rapadura e ia molhando a garganta com água, a noite descia, apavorante de escura e triste, ameaçadora com os silvos das cobras e os miados de gatos selvagens, agoirenta com os pios lúgubres dos caborés e o voo rasgado das corujas. Noite fria. Deitado em chão úmido, dores abrasadoras como fogo, os bichos lhe devorando o pé e lhe tomando o corpo todo até pela boca, nariz e olhos, assim passou Lampião a noite, a pior de toda a vida sua. Terrível noite de sofrimento além de toda a imaginação! Pouco antes do quebrar da barra do terceiro dia, chegou Antônio Ferreira com seus cinco restantes companheiros (Luís Pedro, Sabino*; Capuxu, Antônio Rosa e Meia Noite), todos conduzidos por Zeca de Terto, ao lugar em que estava Lampião.

Começou Antônio a chorar vendo seu irmão em tão lastimável estado.

Já afeito aos horrores do sofrimento, disse-lhe Lampião: 

— "Pensei não ter mais ninguém vivo de vocês. Se os macacos tivesse cabeça, tinha pegado a gente tudinho na unha. Antônio, vá logo me arranjar ácido feno, creolina e sabão". 

Enquanto Capuxu, montado num animal em osso, emprestado por Zeca, partia a todo o galope atrás das três mezinhas, Antônio e os outros começaram a prestar os primeiros socorros possíveis ao ferido.

*Havia pouco Sabino Gomes entrara no grupo de Lampião, vivendo quatro anos no cangaço. Baixo, moreno, robusto, cria de Marçal Fiorentino Diniz, proprietário da fazenda Abóboras, em Vila Bela, limitando-se com Triunfo. Sabino era vaqueiro da fazenda e cambiteiro de cana. Uma particularidade sua: falava tão manso e tão baixo que era preciso esforço para ouvi-lo. Tornou-se um dos mais famosos cangaceiros, dotado de grande coragem, chegando a pertencer ao Estado Maior de Lampião no cargo de lugar-tenente. 6. A creolina é muito usada no sertão para evitar o bicho da mosca.

Transportaram-no para debaixo de copado pé de imbuzeiro ali à pequena distância da lagoa Vieira. Desenrolaram o pano imundo, entufado de postema e com bandas coladas ao pé negro, putrefato, e aos ossos quebrados, expostos. Tiraram-lho a roupa. A perna esquerda da calça foi preciso ser rasgada para poder sair pelo pé doente e dolorido. Com galhos finos de mato foram lho raspando os tapurus do pé e os espalhados polo corpo. A fedentina era repelente. Quando Capuxu chegou, procederam primeiro à limpeza. Banho com sabão e muita água trazida, em potes, da lagoa. Ficou uma grande poça d'água no local. Mudaram o ferido para o -outro lado do imbuzeiro, deitando-o sobre um colchão do folhas de carne. E, enquanto o corpo enxugava com o ar, aplicaram no pé necrosado a creolina, empapando bem as partos, em estado de putrescência, e pulverizaram-no com ácido fênico. Sob esse duplo tratamento, Lampião quase morria. Chegou a esmorecer e revirar os olhos. Aperreado, Antônio Ferreira lho friccionou ativamente a testa e vigorosamente o peito, reanimando-o. Apesar das grandes dores, foi se acalmando. A poderosa ação bactericida do fenol e do creosoto, simultâneos, deteve, o andamento da gangrena gasosa de segundo grau.

Vestiram-lhe a roupa, depois de lavada e enxugada ao sol. Arado de fome, e ainda zuruó, tomou a primeira refeição após três dias de completo jejum: angu de milho com leito, raspa de rapadura e uma xícara de café. Em vez de levar seu irmão para a casa, ali perto, de Zeca de Terto, o que poderia comprometer o amigo e sua familiar diante da polícia, resolveu Antônio Ferreira transportá-lo para mais longe. Para uma grande furna de onça, existente naquelas quebradas, com capacidade de abrigar umas vinte pessoas, lugar fechado e seguro. Como o animal, em que tinha viajado Capuxu, estava exausto e todo estropiado, ofereceu Zeca de Terto um chorão no qual Lampião foi montado e puxado devagarinho, sustentado pelos acompanhantes. Já tardinha, o sol pendendo, teve receio Antônio Ferreira de não acertar o caminho no escuro. Ordenou aos outros pros-seguissem mais devagar, que ele iria correndo, quebrando à direita, chamar um amigo para guiá-los.
Na gruta

Terminada a janta, sentara-se o velho João Menezes no largo banco de aroeira sob o copiá de sua casa. Descansando dos labores da roça, espairecendo e tirando gostosas baforadas de seu paisano. Nesse quando, despertou-lhe a atenção um forte assobio prolongado, de alarme, que ouviu partido de debaixo de uns pés de canafístula. Botou a mão em pala sobre os olhos a modo de divulgar quem. Sua vista, cansada e curta pela idade, apenas percebeu um vulto indistinto que acenava, chamando-o. À medida que o velho tomava chegada, ia verificando se tratava de um cangaceiro bem arreado. Finalmente, reconheceu Antônio Ferreira, que lhe deu as horas e pediu para conduzi-lo, naquela hora, para a grande furna de pedra, inclusive porque, sem dizer quem, levava gente doente. O bom do velho, prestativo, acedeu. Com bem quinhentas braças deixaram os dois a estrada, e, por um atalho, embrenharam-se na catinga. Palmilhadas mais umas duzentas braças, encontraram o grupo dos cinco conduindo Lampião. Depois de salvar o velho João, disse-lhe Lampião:

— "Preciso passar uns dias na furna me tratando. Mas, não tenha medo não, que ninguém vai na sua casa. Todo negócio é aqui nesse lugar. Não se faz compra em Pernambuco, mas no Riacho de Santa Inês" (hoje Inês, povoado de Conceição, PB). Seu João prontificou-se a ajudá-lo. Chegando à furna, Lampião lhe deu dinheiro para as despesas, dizendo que, no dia seguinte, voltasse com cabaças d'água, carne já assada, víveres e meizinhas para tratar dele, bom curandeiro que era o velho João, conhecido naquelas redondezas.

No pé da serra das Abóboras, que extrema com a, serra da Bernarda, mesmo na fazenda Abóboras (Vila Bela), existe a Gruta do Cangaceiro. - E em Triunfo existe a Furna de Lampião. Distante da cidade uma légua, como quem vai para Jericó (hoje Iraguaçu). Depois da serra de Jardim, vem a de Santo António e aí, no sítio Bartolomeu, pertencente a Marçal Paulino e perto de Periperi, a 1.060 metros de altitude (onde instaladas recentemente as antenas de micro-ondas), fica a Furna. Formada por três pedras, duas na frente e a outra atrás, fechando. Em seguida à entrada, descendo mais de um metro. Dentro há um salão de 3x4 metros. Por trás há saída. Junto à gruta, outra pedra, grande, redonda, apoiada em pequenas pedras e com inscrições indígenas.

Sabedor de seu tio Cândido Ferreira passando dias com Cornélio Soares, na Cachichola*, grande fazenda situada do outro lado do rio, em Vila Bela, escreveu-lhe Lampião pedindo uns remédios, entre os quais terebentina. Cândido mostrou a carta a seu amigo Cornélio que mandou aviar os medicamentos na farmácia de Diocleciano Epaminondas Maciel. Portador expedito e secreto, tanto da carta como da resposta, foi Tibúrcio Severo.

* Em consequência dos acontecimentos de Nazaré, no ano de 1923, resolveu Cândido Ferreira, a conselho de seu compadre e amigo Cornélio Soares, ir morar na propriedade deste, chamada Cachichola, onde chegou a 16 de agosto de 1923. Fugia das perseguições. Ademais não era nada bom ver seus filhos crescendo no meio de ódios, vinganças e lutas. Certo dia, Cândido fora visitar Cornélio, que se achava bastante doente, na rua. Agradeceu o enfermo o oferecimento dos préstimos de seu compadre, prometendo mandar chamá-lo caso piorasse. Alta noite, Cândido ouviu bater na porta de sua casa na fazenda. Maginou tratar-se de Cornélio. Mas, era Macário, seu morador, que viera para ensinar sua casa a Lampião. Cândido, espantado, perguntou: —"Que tanta gente é essa?" — "São seus sobrinhos que vim trazer" — respondeu Macário. Cândido, agastado com uma noite mal dormida, preocupado com a doença do amigo, replicou: — "Hoje é dia de azar. Queimou-se o meu cercado e agora vocês chegam com tanta gente!" Um inimigo de Lampião, chamado Lúcio Ferraz, ali refugiado, saiu escondido pelos fundos da casa, ganhando a catinga. Lampião e seus cabras entraram, conversaram com Cândido, já calmo, e com o pessoal da casa, tomando café bem acompanhado. Nessa ocasião, todos no mais absoluto silêncio, ouviram dos próprios lábios de Lampião a narrativa minuciosa e patética, conforme o presente capitulo, do balaço no tornozelo e como foi tratado, inclusive por Tibúrcio Severo, na fazenda Santa Rita, município de Vila Bela. Em seguida, despediu-se com os seus e rumou na direção de Floresta sob a claridade leitosa e tranqüila do luar. Quanto a Lúcio, vamos encontrá-lo, no dia seguinte, em sua casa, em Vila Bela. "Parecia um ouriço-cacheiro, todo cheio de espinhos de quixabeira, mandacaru e macambira. A gente não podia se encostar nele..."

No Saco dos Caçulas

Deixando seu irmão em bons cuidados, partiu Antônio Ferreira, a toda a brida, para Princesa, onde participou ao coronel Zé Pereira o ocorrido. Dentro de cinco dias, precisamente no dia 3 de abril, chegou de volta Antônio Ferreira com um grande grupo de cinquenta cangaceiros, fornecidos pelo coronel Zé Pereira, da sua cabralhada, a fim de transportar Lampião, com toda a segurança, para a fazenda Saco dos Caçulas, em Patos de Princesa, pertencente a seu cunhado Marcolino Pereira Dinis. Ali, às expensas de Zé Pereira, foi Lampião operado pelo médico Dr. Severiano Dinis, de Triunfo, na recomposição dos ossos esfacheados da fratura cominutiva. Além de aplicar tratamento pelo espaço de três meses, inclusive na convalescença. Outro médico, também de Triunfo, Dr. José Cordeiro, na ausência daquele, assistia ao enfermo.

Durante todo esse tempo, Lampião era guardado por cangaceiros que, de espaço em espaço e em pontos estratégicos, montavam incessante e rigorosa sentinela, demonstrando assim seu apreço e estima ao grande Chefe. Recebeu Lampião, em caráter sigiloso, muitas visitas de "gente fina": do coronel Zé Pereira e seus correligionários, de autoridades, de doutores, de coronéis, de fazendeiros e até dos reverendos padres Floro Dinis, vigário e prefeito de Princesa, Eliseu Dinis e José Leal (vulgo Padre Bezeca), respectivamente esses dois últimos vigário e prefeito de Triunfo. Todos por solidariedade, cortesia ou curiosidade. Durante sua convalescença, duas esbeltas e despachadas caboclas, rivais em carnagem e beleza, Ciça e Mailurde, cuidavam de Lampião. A primeira, alta e alva, longos cabelos castanhos claros, lhe costurava as camisas, serzia a roupa, que também lavava e passava a ferro, entregando-a sempre perfumada com água de cheiro. A segunda, baixa, olhos esbugalhados e bunduda, amorena-da, lhe preparava papas, quitutes, o de comer. Ambas, cada qual por sua vez, lhe penteavam o cabelo, botando brilhantina para brilhar e cheirar.:. cortavam-lhe as unhas... num desvê-lo minucioso em tudo. Mormente, emprestavam-lhe todo o carinho e ternura feminina, sem restrição. Certa vez, houve entre as duas uma cena de coirana, apaziguada pela interferência de seu bem-amado. Os cangaceiros gostavam de ver que, nessas xumbregações, sutilezas e doçuras femininas do amor, a recuperação de seu Chefe se apressava.

Durante as folgas amorosas, escrevia Lampião em um caderno a sua vida, desde a infância, em forma de diário*. Cometia poesias sentimentais decantando as belezas do sertão e suas legendas heróicas nas figuras dos vaqueiros, beatos e cangaceiros... Aos cantadores seus amigos, que foram visitá-lo, cedeu esse farto material poético. Muito folheto da literatura de cordel, vendido nas feiras, com o nome de certos cantadores, até de celebridade, tinha sido da lavra de Lampião, que, com seu nome, não deixariam as autoridades da época publicar.**

* De se lamentar, para a História, a perda desse diário de Lampião, assim como, mais tarde na tragédia de Angico, a perda das cartas e bilhetes que recebia de seus amigos coiteiros — o Arquivo de Lampião!

** Alguns manuscritos de Lampião para publicação em folhetos de feira, fazendo parte da literatura de cordel. tinham os seguintes títulos: "Gibão dourado", "Cacimba nova do boi apadrinhado", "Minha Flor Morena", "Alegrias da casa paterna"... talvez, se publicados, com nomes mudados.

Tentação de Lampião

Comparando essa nova vida de tranquilidade e amor, tão diferente da vida no cangaço cheia de perigos, nasceu sutilmente em Lampião forte tentação de se entregar às autoridades, mediante garantia de vida para si e todos os seus comandados. Apresentou sua pretensão a seu irmão Antônio, que concordou. E quem melhor intermediário do que Padre José Kehrle, além de digno sacerdote, seu amigo e conselheiro? Enviou-lhe, pois, um positivo secreto com carta e minuciosas instruções suplementares. Mandou o Padre José chamar Teófanes que estava ausente, em sua fazenda. O major quis logo saber onde estava Lampião e muitas outras coisas.

— "Compreenda, major — disse o padre. Não insista. Seria eu um perjuro se revelasse. Teria de renegar meu sacerdócio quebrando um sigilo. E isto nem com a morte!" Abufelado, respondeu o major: — "A vida de Lampião e seus irmãos eu posso garantir. Mas não a dos cabras. Mato sem deixar um".

Escreveu o padre uma carta a Lampião com o resultado do entendimento. Aliás, sempre prevenido, não revelou Lampião nem mesmo ao padre José onde ele realmente se encontrava. O secreta enviado pelo vigário deveria entregar a determinada pessoa a correspondência. Esta pessoa por sua vez, sem saber onde se encontrava Lampião, teria de passar a carta a outro mais adiante. E assim sucessivamente, de mão em mão, em cadeia de portadores, exceção do último, todos desconhecendo o esconderijo do Chefe.

Lamentou Lampião lhe negarem oportunidade de reabilitação...

Foi quando ele escreveu o poemeto que assim começa: — "Para minha infelicidade Entrei nesta triste vida..."

Semanas depois, o Padre José encontrou, no lugar Saco da Roça, seu amigo Lampião, montado a cavalo, no coice da tropa. Estava ele muito manco. Sugeriu-lhe o padre ir, de caminhão, com ele, até Recife, a fim de se entregar ao próprio Chefe de Polícia. Antes de qualquer resposta do irmão, revoltado retrucou Antônio ao padre: — "Não! E não! Teófanes manda matar a gente no caminho quando nós tiver de voltar para o juri em Vila Bela". E resoluto virando-se para Lampião: — "E depois, meu irmão, prefiro te ver morto, até mesmo pelas minhas mãos, do que te ver desmoralizado nas grades de um xadrez! ..."

Diário de Guerra

9 de julho: Num tiroteio na fazenda Situação, na ribeira do riacho São Domingos, foi morto o famoso Antônio Rosa, e ferido outro cangaceiro, que se evadiu, com o grupo, para a Paraíba.

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