Por Crônicas
& Artigos - João Adolfo Guerreiro
Tenente João Bezerra da Silva
No crime existe
sempre a versão da polícia e a do bandido, sendo que a verdade, por vezes,
transita perdida por entre essas duas.
No crime
existe sempre a versão da polícia e a do bandido, sendo que a verdade, por
vezes, transita perdida por entre essas duas. Como escreveu Millôr Fernandes,
“não pergunte quem atira, procure sair da mira, entre bandido e polícia, só a
bala é verdadeira, e a vida uma mentira” (*1). Entendo ser justamente o caso do
PM Cão Coxo e do bandoleiro Cego.
Os nomes que estavam por trás das alcunhas pejorativas pelas quais um zombava
do outro são respectivamente tenente João Bezerra da Silva e “capitão”
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. Possuíam aspetos biográficos comuns
esses dois “silvas” antagonistas que, apesar do mesmo sobrenome, não eram
parentes: ambos pernambucanos, nascidos em cidades (Afogados da Ingazeira /
Serra Talhada) localizadas na Microrregião do Pajeú naquele estado, vindos ao
mundo no mesmo mês e ano (julho de 1898), Cão Coxo no dia 24 e Cego no dia 4,
portanto, vinte dias mais velho. Como esse texto é sobre a versão da polícia,
focará na vida de Cão Coxo, pois já escrevemos sobre o capitão Virgulino na
crônica publicada aqui no portal dia 27 de julho passado.
O oficial da PM de Alagoas João Bezerra era caçador de cangaceiros, comandante
de volante, denominação dada aos grupos policiais que perseguiam tais bandidos
nas décadas de 1920 – 30 pelo nordeste. O nome se devia à especificidade de
tais forças: não possuíam quartel e se deslocavam constantemente. A biografia
de Bezerra é longa, não é o caso de abordar minúcias num texto curto. Todavia,
um episódio é interessante, para o caso, ser lembrado...
No início de sua carreira policial estava na cidade de Princesa Isabel – PB,
trabalhando para o importante militar coronel José Pereira (1884 – 1949). Os
fazendeiros da região eram acossados por uma onça que, além de matar animais,
vitimara uma pessoa. Ninguém conseguia pegar o felino, mas João Bezerra viera a
esse mundo para ser alguém. Embrenhou-se no mato atrás do gatão e somente
retornou com a pata dianteira do bicho decepada como prova de seu feito.
Veremos que esse modus operandi macabro seria repetido em bravuras de maior
importância nos anos que viriam.
Vamos dar um salto nessa história até julho de 1938, quando encontramos Cão
Coxo já como afamado tenente de volante, ele e Cego com 40 anos
recém-completos. Caguetaram a João Bezerra que Lampião e seu bando estavam
acoitados próximos a Piranhas – AL, justamente a cidade onde o tenente residia.
Anos atrás, ela fora atacada pelos cangaceiros Gato (Santílio Barros, + 1936) e
Corisco (Cristino Cleto, 1907 – 1940), na tentativa de libertar da prisão a
esposa do primeiro. O delator diz que os irmãos e coiteiros Pedro de Cândido
(Pedro Rodrigues Rosa, + 1941) e Durval de Cândido (Durval Rodrigues Rosa, 1920
- 2003), filhos do fazendeiro Cândido, sabiam o local exato do coito do
Capitão. “Coiteiro”, cabe explicar, eram os que acoitavam os cangaceiros, sendo
“coito” o esconderijo cedido. Bezerra manda um comandado seu buscar Pedro em
sua fazenda Angicos no dia 27, mas este volta relatando que Pedro estava com a
mãe doente e não viria. Enfurecido, o tenente passa uma carraspana no soldado e
o manda voltar, acompanhado de outro, para trazer o coiteiro na marra.
Entretanto Pedro, ao chegar, faz, por medo ou lealdade a Lampião, jogo duro.
Bezerra arranca uma de suas unhas à faca, mas ele resiste. Contudo, ao tenente
enfiar a faca por baixo de uma de suas costelas, sair por cima e apoiá-la na
costela seguinte, Pedro preferiu correr o risco de encarar a morte mais tarde e
dedurou que Lampião estava em Angicos, informando porém que apenas Durval
conhecia o local exato do coito. Esse, um rapaz de 17 anos, foi pego em sua
casa e, junto com o irmão, teve de levar a volante até onde estava o Rei do
Cangaço (*2).
Saíram na madrugada do dia 28 com o objetivo de chegar à Grota de Angicos, onde
ficava o coito, ao raiar do dia para surpreender os cangaceiros ainda dormindo.
Poucos policiais foram informados sobre a identidade do caçado, pois Lampião
metia muito medo. Beberam um trago antes de iniciar a marcha para fortalecer a
coragem. Bezerra escreveu um livro em 1940 sobre esse episódio, confessando
possuir dúvidas se ia para fazer uma emboscada ou cair numa. Olhava para trás e
pensava em quantos daqueles homens não voltariam daquele combate. Pelo caminho,
uma ocorrência pitoresca: os soldados ouvem barulhos na mata à retaguarda e se
prepararam para o confronto iminente, quando um inocente e desavisado pangaré
surge. Eles, apesar da tensão, conseguem rir baixo.
Chegaram silenciosamente à Grota de Angicos e dividiram a volante em três
visando cercar o acampamento. O último grupo ainda não havia tomado sua posição
quando o cangaceiro Amoroso levanta e vai buscar água para o café. Um policial
dispara contra ele, fazendo com que os cem soldados atirem em uníssono com seus
fuzis e quatro metralhadoras contra o coito, numa infernal carga contínua de
cerca de quinze a vinte minutos. Ao fim, onze dos cerca de trinta e seis cangaceiros
e cangaceiras acoitados jazem sobre o solo rochoso e pedregoso da Grota, dentre
eles Lampião e Maria Bonita que, ao contrário do que diz a letra da canção (*3)
gravada pelo ex-cangaceiro Volta Seca (Antônio dos Santos, 13.03.1918 –
02.02.1997) em 1957, acordou, levantou mas não fez o café; certamente este
foi passado e bebido pelo tenente para curar a ressaca do trago. Amoroso e os
demais sobreviventes só escaparam devido ao terceiro grupo militar ainda não
estar devidamente posicionado.
Se matou a onça, tem de mostrar a pata; se matou o cangaceiro, tem de mostrar
a... Cabeça! Elas valiam promoção para os policiais. E assim fez Cão Coxo,
cortando-as e exibindo-as em Piranhas e outras cidades da região antes de
enviá-las para a capital. Como Lampião há muito era notícia em todo o mundo,
sua morte repercutiu em jornais da França, Inglaterra e Estados Unidos,
tornando igualmente famoso o comandante da tropa que o liquidara. João Bezerra
foi convidado a ir ao Rio de Janeiro para passar um dia inteiro com o
presidente Getúlio Vargas, onde teve seu grande feito louvado e prestigiado.
E assim terminou a história dos pernambucanos do Pajeú Cão Coxo e Cego (*4).
Bezerra faleceu em 4 de dezembro de 1970 em sua fazenda na cidade de Garanhuns
– PE, vítima de um AVC.
Notas:
* - Título em
português do filme americano do gênero de western “The man who shot Liberty
Valence” (1962, John Ford), com John Wayne, James Stewart e Lee Marvin no
elenco.
*1 - Poemeu
olhando a bela paisagem de São Conrado do alto da Rocinha. Diário da Nova
República, Volume III, L&PM, 1988, p. 108
*2 - Essa
versão, a da polícia, é contestada por alguns pesquisadores. Para eles, há
indícios que Pedro e Durval delataram Lampião em troca de vantagens oferecidas
pela PM alagoana e que essa história de tortura e coação foi inventada para
protegê-los de futuras represálias de cangaceiros.
*3 –“Acorda
Maria Bonita / levanta, vai fazer o café / que o dia já vem raiando / e a
polícia já está em pé”.
*4 - Existe um
grande debate entre pesquisadores do cangaço sobre os fatos ocorridos nos dias
27 e 28 de julho de 1938, com significativa controvérsia. Assim, você poderá
encontrar algumas narrativas com detalhes diferentes, conforme os autores. Por
outro lado, no texto fiz uma versão sintética, omitindo minúcias que,
entretanto, não comprometem ou distorcem o que se tem por consenso acerca do
assunto.
https://www.portaldenoticias.com.br/ler-coluna/711/o-homem-que-matou-o-facinora.html#:~:text=Bezerra%20faleceu%20em%204%20de,PE%2C%20v%C3%ADtima%20de%20um%20AVC.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com