Por José Bezerra Lima
Irmão
Zé Baiano -
José Aleixo Ribeiro da Silva - foi um dos cangaceiros mais famosos, mas também
um dos menos estudados. As histórias e referências a seu respeito são repetidas
por muitos autores sem a devida reflexão e sem preocupação com a verdade.
Nasci a uma légua do local onde Zé Baiano morreu. Ouvi dezenas de vezes o
relato desse episódio da boca de meus pais e tios. Minha mãe era comadre de
Pedro Guedes, um dos matadores de Zé Baiano. Meu tio Raimundo Bezerra era
concunhado de Antônio de Chiquinho, o homem que liderou o ataque.
Fiz várias viagens a Macururé e Chorrochó, no norte da Bahia, em busca de
informações sobre esse estranho personagem, sobrinho dos cangaceiros Cirilo e
Antônio de Engrácia.
Transcrevo, a seguir, o capítulo 198 do meu livro Lampião - a Raposa das
Caatingas, em que conto a aventura e desventura do chamado Carrasco Ferrador.
Faço essa transcrição com o propósito de assim contribuir para o registro
desses fatos da história do cangaço, porém lembrando que é proibida a sua
reprodução integral ou parcial sem a autorização prévia do autor.
Mitos e verdades sobre o carrasco ferrador
Há coisas assim: alguém faz uma afirmação, e todo mundo passa a repeti-la, como
papagaio.
Com relação a Zé Baiano, alguém afirmou que ele era negro e feio, parecendo um
gorila ou chimpanzé, e a partir daí todos os autores fizeram coro a isso,
partindo da ideia subjacente de que maldade e feiura são coisas de negro.
Estavam em voga àquela época certas concepções baseadas nas teorias de Cesare
Lombroso, nitidamente racistas. Para ser enquadrado na classificação
lombrosiana, teorizava-se, à moda de Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, que
criminoso era coisa de mestiço. Era a teoria da degenerescência racial. Para os
“cientistas” daquela época, a rigor só havia uma raça, a branca – uma raça
superior. As demais eram inferiores – sub-raças –, e ao se misturarem
abastardavam os descendentes, que se degeneravam orgânica, psíquica e
moralmente.
Alguns autores dão mais ênfase ao fato de Zé Baiano ser negro e feio do que a
seus crimes, que são postos em segundo plano.
Ranulfo Prata, condicionado pelos preconceitos de Euclides da Cunha e Nina
Rodrigues, descreve Zé Baiano como um negro grosso e malvado, de cabeça
disforme, grande nariz esparramado na face bestial, boca rasgada de sapo
cururu, de horripilante feiura.
A partir dessa deixa, passou-se a dizer que Zé Baiano tinha cabeça grande,
nariz apragatado, lábios grossos, voz gutural e pele de sapo, escamosa.
Nertan Macedo chamou-o de “orangotango hirsuto”.
Rodrigues de Carvalho, que só se refere a Zé Baiano chamando-o de negro, preto
e crioulo, exagera de forma absurda: Zé Baiano “não era negro apenas por fora”.
Qualifica-o assim:
“O negro Zé Baiano, miserável rebutalho humano, que monopolizava todos os
vícios e defeitos da raça negra e nenhuma das suas virtudes...” Não se cansa de
chamá-lo de “nefasto crioulo”, “o desgraçado do negro”, “urso preto”, “gorila”,
“crioulo horroroso (...) bem mais aproximado do chimpanzé do que da criatura
humana” (...), “mais preto por dentro do que por fora”, aduzindo que ele “Tinha
a alma mais negra do que a sua pele negra”. Considera que “Esse hediondo
crioulo foi, sem favor nenhum, um inqualificável monstro. Toda a sua
existência, negra como a sua pele negra, foi vazia de qualquer resquício de
sentimento humano”. Arremata o retrato do cangaceiro assim: “O negro Zé Baiano,
com as características que possuía, preto, alto e membrudo, despojado das
vestes e preso pela cintura com uma corrente, era perfeitamente negociável. Nas
mãos de um sujeito esperto, qualquer empresário de circo ou de jardim zoológico
o compraria por um gorila, sem desconfiar”.
Joaquim Góis segue a mesma toada, dizendo que Zé Baiano, por dentro, era “um
espírito que herdou toda a monstruosidade dos vícios de sua raça”.
Felipe de Castro sentencia: Zé Baiano era um homem mau, feio e “negro nojento”.
Por sua vez, Estácio de Lima diz que Zé Baiano era “um negro feio”, e em vez de
mãos parecia ter garras.
Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena não ficam atrás: ao desgraçado negro, para
ser a imagem do diabo, só faltavam os chifres, em tudo diferente, por exemplo,
de Luís Pedro, “alvo de olhos azuis, um homem bonito...”
Essas descrições contêm juízos inaceitáveis. Para se falar da personalidade de
uma pessoa, não há necessidade de vinculá-la à cor da sua pele – não importa se
ela é preta, branca ou azul!
Embora não seja relevante determinar qual a cor daquele cangaceiro, convém
registrar, a bem da verdade, o que disse o repórter d’O Estado de Sergipe que
presenciou a exumação do corpo de Zé Baiano: “O dr. Carlos Menezes lavou a
cabeça do facínora temido, que tantos males concebera e praticara,
transparecendo então uma fisionomia morena...”.
Zé Baiano não era negro, era moreno, caboclo, acobreado. Em Chorrochó, onde ele
nasceu, não há negros do tipo descrito por Rodrigues de Carvalho. Há caboclos,
mamelucos ou “curibocas”, e um ou outro mulato. Negros, mesmo, são raros, como
são raros os brancos – se é que existem “brancos” no Brasil.
Seu nome era José Aleixo Ribeiro da Silva. Pertencia à família dos Engrácia,
nome de sua avó – família Ribeiro da Silva. Era sobrinho de Cirilo e Antônio de
Engrácia, e primo de Zé Sereno, Mané Moreno, Antônio de Seu Naro, Sabonete e
vários outros cabras, em torno de quinze. Os Engrácia, mestiços de branco com
índio, eram indivíduos de pele bronzeada, “cor de formiga”, tostada pelo sol da
caatinga. Existem algumas fotografias de Zé Baiano. As fotos daquela época eram
em preto e branco. Branco era o papel. Queriam que Zé Baiano aparecesse de que
cor? Na foto mais divulgada, o rosto dele está na sombra do chapelão de couro,
tendo um lenço preto em volta do pescoço, o que dá a impressão de que o pescoço
seria negro. Note-se na foto o nariz afilado, os lábios finos – traços que não
correspondem aos do negro, que em geral tem nariz achatado e beiços polpudos.
Mané
Moreno, Zé Baiano e Zé Sereno
Aliás, o próprio Rodrigues de Carvalho diz que a pigmentação da epiderme de Zé
Baiano “era de uma tonalidade indefinida, entre o marrom e o preto”.
Entre os parentes de Zé Baiano não há um negro sequer. Seu tio Antônio de
Engrácia é descrito por Rodrigues de Carvalho como sendo “talvez o tipo mais
bem proporcionado da quadrilha, chegando a ser mesmo homem bonito,
fisicamente”. Por “homem bonito”, na concepção daquele autor, entenda-se “não
negro”.
Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena referem-se a Antônio de Engrácia como “um
cangaceiro garboso” e, plagiando literalmente Joaquim Góis (sem citá-lo...),
dizem que era “uma estampa mestiça de cores fixas. Amorenado da cor da terra
que o sol queimou devagar”. Já Cirilo de Engrácia, outro tio de Zé Baiano,
seria “moreno avermelhado”. Essa descrição de Cirilo coincide com a que foi
feita por Dadá ao pesquisador Antonio Amaury Corrêa de Araújo: Cirilo era “cor
de saúva” (formiga-de-mandioca, cabeçuda).
Zé Sereno, primo carnal de Zé Baiano, apareceu em vários documentários
cinematográficos, dentre eles O Último Dia de Lampião, produzido pela Rede
Globo de Televisão. Era moreno-claro, cabelo cacheado. É só ver.
Zé Sereno, no
documentário "O Último dia de Lampião"
Lídia, mãe de Zé Sereno e tia de Zé Baiano, é descrita por Antônio Amaury
Araújo como “uma cabocla”.
O celebrado Euclides da Cunha, ao falar do povo da região que margeia o Raso da
Catarina, observa que negro ali era coisa rara. Relatando o suplício dos
prisioneiros de Canudos, Euclides descreve a forma como foi preso e enforcado
“Um negro, um dos raros negros puros que ali havia”. Noutra passagem, ele
enfatiza que era “Raro um branco ou negro puro. [...] Predominava o pardo
lídimo, misto de cafre, português e tapuia – faces bronzeadas, cabelos
corredios e duros ou anelados”.
Entrevistei velhos coiteiros, e todos afirmam que Zé Baiano era um caboclo alto
e forte, de rosto comprido cor de bronze, sobrancelhas escassas, maçãs do rosto
salientes, nariz afilado, boca média, de lábios finos e bem ajustados, queixo
fino, olhos vivos, penetrantes, cabelo liso, de índio. Apesar de ser um sujeito
de poucas palavras, em situações normais falava de forma branda e cortês. Era
um tipo simpático. Nas festas, comportava-se de forma comedida. Nunca dançava.
Limitava-se a cantar, sentado, batendo palmas, o rifle atravessado no colo.
Tinha uma voz grave, afinada, maravilhosa. Gostava de modinhas românticas.
Metia-se a fazer trovas de improviso e tinha certo traquejo no fole de oito
baixos. Ao contrário dos demais cangaceiros, ele não bebia, não fumava e não
jogava baralho. Almoçava à mesa com os grandes fazendeiros da região de
Alagadiço, Gameleiro e Pinhão, todos seus amigos – Laurindo Gomes, Pedro Gato,
Zeca Ferreira, Etelvino Mendonça, Joãozinho de Donana Rego e seu irmão
Costinha, Napoleão Emídio, Josias Tabaréu, José Melquíades e os irmãos
Marcionílio e Gersílio do Gameleiro.
Zé Baiano era um rapaz comunicativo, mas não falador. Estava sempre tranquilo,
alegre. Usava óculos de grau. Foi um dos cabras mais fiéis a seu chefe,
obediente ao código do cangaço, tanto assim que quando os parentes romperam com
Lampião Zé Baiano ficou com ele.
Além dos grandes fazendeiros da região, ele mantinha contatos com figuras
poderosas da política estadual, usineiros da Cotinguiba e grandes comerciantes
de Aracaju, aos quais emprestava elevadas somas a juros. Certo dia, surpreendeu
o poderoso Otoniel Dória (Dorinha), chefe político de Itabaiana, em sua fazenda
São João, município de Carira. Trocaram cumprimentos. O fazendeiro convidou-o
para jantar, e a partir daí firmaram uma profunda amizade.
Infância e primeiros passos no cangaço
Zé Aleixo – o Zé Baiano – nasceu nas Areias, acima de São Saité, na zona de
Feira do Pau (atual Macururé). Era filho de Teodora e Faustino Ribeiro da Silva
(Faustino Mão de Onça), irmão de Antônio e Cirilo de Engrácia. Criou-se
ajudando o pai no manejo de bodes e ovelhas entre as Areias, Lagoa do
Esquixique, Lagoa das Vacas e Baixa do Ribeiro. Quando as lagoas e cacimbas
secavam, o último recurso eram os poços do Riacho Grande. Tinha jeito para
carpinteiro e pedreiro – naquele tempo as casas de pobres eram feitas de
madeira trançada e barro, com cobertura de palha, e as dos mais remediados eram
de adobe, cobertas de telha.
Quando o tio Antônio de Engrácia cometeu o primeiro crime, em 1925, toda a
família se viu envolvida, pois a vítima era um homem de posses. Os Engrácia
pediram proteção inicialmente a Inácio Grande, o maior fazendeiro de Chorrochó.
Depois foram viver sob a proteção de Gregório da Pedra da Chica, no outro lado
do São Francisco, em Pernambuco. Foi nessa ocasião que José Aleixo recebeu o apelido
de Zé Baiano, para se distinguir de outros José. Juntou-se ao bando de Lampião
pela primeira vez em setembro de 1926, desligando-se dois meses depois, após a
Batalha da Serra Grande. Reincorporou-se ao bando definitivamente em julho de
1929.
Ferração em Canindé
Todos os autores, sem exceção, copiando-se uns aos outros, se referem a Zé
Baiano como um sujeito que “tinha o hábito” de marcar mulheres a ferro quente
com as letras “J-B” (José Baiano).
Na verdade, isso aconteceu em Canindé, em janeiro de 1932, quando ele, por
vingança, ferrou de uma só vez três mulheres ligadas a soldados que haviam
espancado sua mãe. A história dessa ferração é a seguinte:
Um soldado chamado Vicente Marques – da família Marques, de Santa Brígida,
Marancó e Canindé – certa vez espancou a mãe de Zé Baiano para obrigá-la a
informar o paradeiro do filho e dos parentes cangaceiros. A velha ficou
irreconhecível, tantas foram as coronhadas de fuzil que recebeu no rosto.
Quando Lampião esteve em Canindé, em janeiro de 1932, onde moravam pessoas da
família Marques, Zé Baiano recebeu carta branca de Lampião para vingar-se do
que fizeram com sua mãe. Ao prender Maria Marques, irmã do soldado que
supliciara sua mãe, Zé Baiano decidiu deixá-la marcada para sempre e mandou que
um morador chamado Zé Rosa fosse buscar um ferro de marcar gado. Zé Rosa tinha
sido vaqueiro do finado coronel João Brito (João Fernandes de Brito). Trouxe o
primeiro ferro que encontrou, o ferro utilizado no passado para marcar os bois
de seu falecido patrão, que tinha as letras “J-B”, de João Brito. Além de Maria
Marques, foram ferradas no mesmo dia outras duas mulheres, ambas ligadas também
a soldados por casamento ou mancebia.
Balbina da Silva e...
Maria Marques.
Vítimas do ferro.
Por fim, quando observaram que as letras do ferro – “J-B” – eram as letras do
seu nome, o cangaceiro decidiu levar o ferro como recordação de sua vingança,
porém não há nenhum relato de fonte segura de que o tivesse utilizado outras
vezes. Na área que lhe foi reservada, compreendendo terras de Ribeirópolis,
Frei Paulo, Macambira, Pedra Mole, Pinhão e Carira, nunca se soube que ali Zé
Baiano tivesse ferrado ninguém, seja homem ou mulher.
Amaury Correia fez uma pesquisa nos jornais e revistas da época para apurar se
houve alguma notícia a respeito de outros casos de pessoas que tivessem sido
ferradas por Zé Baiano, e concluiu: só houve aquele caso de Canindé. Amaury
fala de notícias vagas de outras ferrações, mas todas sem comprovação.
Corisco é que quando fazia um refém tratava-o como “meu boi”. Dois integrantes
do seu grupo – Arvoredo e Calais – ferraram várias pessoas nos sertões de
Juazeiro, Jaguarari, Uauá e Várzea da Ema.
Houve quem dissesse que Zé Baiano “adquirira o hábito de ferrador” por ter sido
traído pela mulher, a cangaceira Lídia. Porém tal explicação não procede, pois,
seguramente, o caso de Lídia é posterior ao episódio de Canindé: as ferrações
em Canindé foram em 1932, e a morte de lídia foi em 1934.
Também é pura lenda a sua fama de estuprador e desonrador de mulheres. Não há
um caso sequer de tal prática efetivamente comprovado. Pelo contrário, Zé
Baiano era um tipo moralista, de acordo com os padrões da época, e, para impor
respeito no sertão, caía na palmatória toda mulher que ele encontrasse de
cabelo curto, ombros nus, vestido decotado ou muito curto. Sua palmatória
chamava-se Professora, pois servia para “dar educação a quem não tinha”. Outros
cangaceiros que não toleravam ver mulher com cabelo curto e roupa provocante
eram Mariano e Azulão – como, aliás, procediam em suas casas muitos pais e
maridos...
Por ocasião da morte de Zé Baiano, ao entrevistar Antônio de Chiquinho, seu
matador, o repórter Francisco de Matos conclui a matéria com a consideração de
que, apesar de todas as maldades que lhe eram atribuídas, Zé Baiano “não
fumava, não bebia, não deflorava, como atesta o testemunho de Antônio de
Chiquinha”.
Lídia: amor e desdita
No segundo semestre de 1931, depois de uma viagem por Alagoas e Pernambuco para
se reabastecer de munição, Lampião havia escondido a munição excedente na
fazenda Maranduba, perto da Serra Negra, indo descansar nas imediações do
povoado Poços, na entrada do Raso da Catarina. Ele conseguira também com seus
amigos em Pernambuco algumas armas, porém a maior parte apresentava defeitos.
Decidiu então levá-las para o seu amigo Venâncio Teixeira, residente em Olhos
d’Água do Sousa, nas imediações de Santo Antônio da Glória – Venâncio era muito
bom nesse negócio de armas velhas, deixava-as novinhas em folha.
No caminho, Zé Baiano começou a sentir dor de cabeça. Tinha febre. Tremia de
frio em pleno meio-dia. Estava saindo um caroço no pescoço. Não suportava nem o
chapéu na cabeça.
Lampião conhecia um velho chamado Luís Pereira, que morava no Salgadinho, ao
lado da Serra do Padre. A mulher dele, Maria Rosa (dona Baló), era costureira e
já havia feito muitas roupas para os cangaceiros. Lampião pediu ao velho que
cuidasse do doente, enquanto o resto do bando prosseguia a viagem.
Ruínas da casa
de Lídia
A casa de Luís Pereira tinha uma sala ampla, 3 quartos, cozinha espaçosa, e no
fundo ficava o chiqueiro dos bodes, pegado a um tanque. Zé Baiano passou uns 15
dias ali. O tumor era tratado com remédios dos matos – chás e emplastros de
ervas. Era bem cuidado por todos, inclusive pela filha caçula de Luís Pereira,
chamada Lídia, uma linda garota de 15 anos. Quando ficou bom, o cangaceiro
fugiu com a menina.
Lídia não foi propriamente raptada, mas, muito jovem, não sabia o que estava
fazendo, e no mesmo dia, ao perceber a vida que teria pela frente, tendo de
dormir nos matos e viver se escondendo como bicho, se arrependeu de ter saído
de casa. Mas aí já era tarde.
Zé Baiano fazia de tudo para agradá-la. Cobria-a de presentes. Quando iam
comer, ele reservava os melhores pedaços de carne para ela, cortava a carne em
pedacinhos e punha-os na boca de sua beldade. Só tinha olhos para ela.
Nada, porém, era capaz de tirar da mente da garota a mágoa por ter sido
arrancada do convívio de sua família. Não escondia de ninguém a revolta com o
seu destino. No fundo, odiava Zé Baiano, o causador de sua desgraça.
Havia no bando um cangaceiro chamado Ademórcio, que Lídia conhecia desde criança,
nascido e criado no Arrastapé. No bando, ele recebera o apelido de Bentevi.
Aquele era o rapaz com quem ela gostaria de viver, e se ambos não tivessem sido
arrastados para o cangaço poderiam, quem sabe, ter casado, pois seus pais eram
amigos. Com o tempo, Lídia e Bentevi passaram a corresponder-se.
Encontravam-se às escondidas sempre que Zé Baiano estava viajando.
Lídia Pereira de Sousa foi possivelmente a mais bonita das mulheres que
participaram do cangaço. Era uma morena cor de canela, de cabelo liso, rosto
bem delineado, lábios carnudos, olhos negros, com uma dentadura que parecia um
colar de pérolas.
Um cangaceiro chamado Coqueiro apaixonou-se por ela. Vivia seguindo-lhe os
passos. Certo dia, viu-a mantendo relações sexuais com Bentevi. Coqueiro deixou
que os dois terminassem o ato. Bentevi vestiu-se, foi embora. Lídia ficou só.
Então, Coqueiro apresentou-se, dizendo:
– Eu vi tudo, do cumeço até o fim. E eu quero tamém...
Lídia refugou:
– Vai-te pros inferno, cabra nojento! Nun tá veno qui eu nun me passo pra um
canaia da tua marca? Nun seja besta!
– Ou resorve ou vou contá tudo a Zé Baiano... E tem qui sê agora...
– Pode ir contá até pro diabo! Eu já diche qui não, e pronto!
Isto foi na segunda semana de julho de 1934. O bando estava acoitado perto de
Poço Redondo, nas Pias das Panelas, junto ao Riacho do Quatarvo, em terras da
fazenda Paus Pretos do coronel Antônio Caixeiro. Lampião tinha chegado de
Alagadiço, onde havia matado um filho de Cazuza Paulo. Zé Baiano havia ficado
por lá para fazer umas “cobranças” junto a fazendeiros daquela região. Quando
ele chegou às Pias das Panelas, Coqueiro decidiu contar o que tinha visto. À
noite, os cangaceiros estavam sentados no chão, uns vinte ou trinta, inclusive
as mulheres, em volta do fogo onde assavam carne de bode. O delator expôs o que
viu, omitindo, porém, a parte que o comprometia. Zé Baiano franziu a testa, os
olhos arregalados, como se não estivesse escutado direito, e rosnou para a
companheira:
– O qui esse sujeito tá dizeno é verdade, Lida?
– É verdade, Zé – sustentou Lídia, com voz firme. – Só qui esse canaia nun
diche a histora toda... Ele dexou de dizê o preço qui izigiu pelo segredo. Ele
quiria qui eu desse a ele tamém, pra nun lhe contá. Se eu tenho qui morrê, qui
morra, mais um cabra safado desse nun me come!
Um silêncio de chumbo caiu sobre o acampamento. Zé Baiano ficou olhando para
Lampião, aguardando ordens.
Lampião levantou-se, andou de um lado para outro, remoendo o terrível problema.
Depois, sentenciou:
– O causo dela aí o cumpade Zé Baiano é qui resorve. Ela é dele, faça o qui
achá qui deve fazê.
Fez uma pausa, ajeitou os óculos, e continuou:
– Agora, Coquero e Bentevi é cum a gente mermo. Gato, mate esses cabra!
Gato puxou o parabelo, aproximou-se de Coqueiro e deu-lhe um tiro na cabeça.
Coqueiro, colhido de surpresa, não esboçou nenhuma reação. Não teve tempo
sequer de pedir clemência.
Chegada a vez de Bentevi, percebeu-se que ele havia fugido. Os cabras queriam
ir procurá-lo, mas Lampião mandou que tivessem calma:
– Deixem ele. Bentevi é subordinado a cumpade Virgínio, qui nun tá presente.
Vou dexá qui ele dicida a sorte desse fio dũa égua.
Zé Baiano mandou que Demudado amarrasse Lídia num pé de imburana. Ele, que já
supliciara tantos homens e mulheres com a sua palmatória de baraúna, de repente
estava sem saber o que fazer. Lídia era tudo para ele. Passou o resto da noite
acordado, sem falar com ninguém. Quando o dia amanheceu, pegou um cacete, foi
até o pé de imburana, desamarrou a mulher e matou-a a pauladas, quebrando-lhe
vários ossos. Lídia não emitiu uma palavra sequer, não gritou, nem ao menos
gemeu. Como arremate, Zé Baiano esmagou a sua cabeça, como se faz com uma
cobra. Sangue e massa cefálica esguicharam pela boca, narinas, olhos e ouvidos.
Depois, sem pedir ajuda a ninguém, o cangaceiro cavou uma cova rasa, enterrou-a
e, não suportando mais, chorou.
Junto ao pé de imburana, no sangue coagulado, começou a juntar formigas.
O povoado Alagadiço
Na divisão do reino do cangaço, coube a Zé Baiano parte dos atuais municípios
de Ribeirópolis, Frei Paulo, Macambira, Pedra Mole, Pinhão e Carira, em
Sergipe. Seu coito predileto era um serrote próximo do povoado Alagadiço.
Zé Baiano se
afeiçoou pelo Alagadiço por duas razões.
A primeira era de ordem sentimental,
pois estava de olho numa filha de Antônio de Chiquinho. A segunda razão era de
ordem estratégica, haja vista que o povoado ficava numa região de serras, com
muitas matas e esconderijos naturais.
Esta última tinha sido também a razão pela qual, no passado, tinham sido
atraídos para aquele pé de serra os escravos fugidos dos engenhos da Cotinguiba
e outras pessoas perseguidas pela justiça. Com efeito, Alagadiço foi
originariamente um quilombo. Os antigos moradores viviam em palhoças feitas de
galhos de árvores e cobertas de palhas de coqueiro. As primeiras casas foram
construídas por João Pereira da Conceição e Quinca Rego, considerados os
fundadores do povoado, no final do século XIX. Mesmo depois da Abolição da
Escravatura, o local continuou com sua fama de quilombo, ponto de refúgio de
foragidos de toda espécie. Um desses foragidos foi um homem chamado João Sabino
dos Santos.
João Sabino chegou ali em 1897. Era um sujeito misterioso. Ele e a esposa eram
muito reservados. Não diziam de onde tinham vindo. Porém os moradores
terminaram descobrindo que se tratava de um alferes que havia desertado das
tropas republicadas enviadas a Canudos, no sertão da Bahia, para combater o
beato Antônio Conselheiro – ele fizera parte da terceira expedição, comandada
pelo coronel Moreira César, que morreu em combate, morrendo também poucas horas
depois seu substituto, o coronel Pedro Tamarindo. Depois da destruição do
arraial de Canudos, em outubro de 1897, o governo passou a procurar os
desertores para puni-los.
Alguém o denunciou e uma força foi enviada para prendê-lo. João Sabino estava
em casa quando a força chegou. Não tendo como fugir, vestiu sua farda, pôs
todos os petrechos de alferes que conservava guardados e foi entregar-se,
enquanto a esposa se apegava com Nossa Senhora da Conceição, prometendo
construir uma capela se o marido escapasse daquela atribulação. Quando ele se
apresentou, uniformizado, com aquela farda estranha, cheia de debruns, galões,
distintivos e enfeites, os soldados se intimidaram e prestaram continência. O
cabo que comandava o troço considerou que não podia prender uma autoridade de
patente superior. Terminaram fazendo amizade com o casal. João Sabino deu uma
festa, reuniu os moradores, a soldadesca amanheceu o dia dançando ao som de
gaitas e zabumba, com o acompanhamento de um instrumento nunca visto por ali –
uma corneta.
A mulher de João Sabino, dona Angélica dos Santos, assegurava que o marido não
foi preso graças a Nossa Senhora da Conceição. Cumprindo a promessa feita,
mandou construir uma capela.
Por volta de 1930, o arraial estava em fase de grande progresso. Por questões
políticas, o padre Madeira, vigário de São Paulo (hoje, Frei Paulo), chegou a
mudar-se para o Alagadiço. O homem mais rico do lugar, Zezé Melquíades,
importou do estrangeiro uma máquina de descaroçar algodão, chamada
“bolandeira”. Um irmão dele, que era padre – padre Elpídio Teixeira –, tendo
estudado música em Roma, veio passar uns tempos no povoado e trouxe o seu harmônio.
Homem culto, ensinava aos moradores a cantar hinos a três e quatro vozes. Os
jovens recebiam lições de música, aprendiam a solfejar, a tocar instrumentos. O
padre Elpídio dirigia peças teatrais, chamadas “dramas”. Organizava folguedos
populares, especialmente um fandango conhecido como marujada, que noutros
lugares é conhecido como chegança, um auto popular baseado nas tradições
ibéricas, tendo por tema as lutas entre cristãos e mouros, com personagens
vestidos de marinheiros, cantando e dançando ao som de instrumentos de corda,
ao estilo da Nau Catarineta, xácara portuguesa de temática marítima. Ele e o
padre Madeira (José Antônio Leal Madeira), que era português, eram homens
comprometidos com a cidadania. Nas festas cívicas e religiosas, ensinavam as
pessoas a discursar, a declamar versos. O povoado chegou a ser visitado pelo
bispo de Aracaju, Dom José Tomás Gomes da Silva.
Esse surto de progresso foi interrompido quando Lampião iniciou seu assédio ao
povoado. Muitos moradores se mudaram para São Paulo (Frei Paulo) e Itabaiana.
Os que ficaram tiveram de sujeitar-se à condição de coiteiros. As escolas
deixaram de funcionar. Aurelino Guimarães, o subdelegado, que tinha um pequeno
comércio no povoado, tendo de fazer compras em Frei Paulo para reabastecer o
estabelecimento, sofreu vários assaltos na estrada e sua casa comercial foi
saqueada. Desgostoso, mudou-se para Itabaiana. Zezé Melquíades, o homem mais
rico do lugar, vendeu a fazenda a Donana Rego e foi embora também.
Alagadiço nunca mais seria o mesmo.
Até o padre
Madeira esteve em apuros.
Certo dia, viajando a cavalo para o povoado Altos Verdes, aonde ia celebrar
missa, ao passar pela fazenda Lagoa Nova, quando parou para abrir a cancela da
fazenda foi abordado pelo bando de Zé Baiano. O vigário protestou:
– O que é isso? Será que não posso mais levar a palavra de Deus neste sertão?
Eu sou o padre Madeira!
Zé Baiano tirou o chapéu de couro e pediu a bênção:
– A bença, seu pade. Me perdoe. Eu nun sabia qui era seu vigaro.
– Está abençoado em nome de Deus, mas procure deixar essa vida criminosa para
que possa salvar a sua alma, rapaz!
O próprio cangaceiro foi abrir a cancela.
O amigo Antônio de Chiquinho
Depois da morte de Lídia, Zé Baiano fixou-se em Alagadiço. Ele viajava pelos
seus domínios, mas seu ponto de referência era Alagadiço. Costumava acoitar num
serrote que até hoje é conhecido como Coito. Viria a ser morto perto dali, na
fazenda Lagoa Nova, em 1936, por cinco rapazes liderados pelo coiteiro Antônio
de Chiquinho.
Antonio
de Chiquinho
Antônio de Chiquinho, depois de Zezé Melquíades e Aurelino Guimarães, era o
homem mais importante de Alagadiço. Quando Maurício Ettinger foi intendente de
São Paulo (Frei Paulo), em 1931, Antônio de Chiquinho foi nomeado comissário do
povoado Alagadiço. O comissário municipal tinha a incumbência de resolver no
povoado todos os negócios locais em nome do intendente – era uma espécie de
subintendente.
Muito se especulou na época acerca dos motivos que levaram Antônio de Chiquinho
a matar Zé Baiano, seu amigo do peito. A razão óbvia era a pressão da polícia,
que chegou a prendê-lo três vezes por acoitar cangaceiros. Depois se veio a
saber do interesse de Zé Baiano por uma de suas filhas. Mas fala-se também das
vantagens pecuniárias decorrentes da morte do famoso cangaceiro.
Zé Baiano talvez fosse o mais rico dos cangaceiros, depois de Lampião. Havia
amealhado uma fortuna em dinheiro vivo, ouro e objetos vários. Dizem que tinha
mais de setecentos contos de réis enterrados em garrafões de vidro, em algum
lugar na Serra das Campinas. Não jogava baralho, como os outros, para não
perder dinheiro. Era extremamente sovina. E agiota. Emprestava dinheiro a
fazendeiros de todo o Estado, a senhores de engenho da zona dos canaviais e a
grandes comerciantes de Aracaju. Era bem relacionado. Cansou de ir a Frei Paulo
(ex-São Paulo), disfarçado, onde ficava até altas horas da noite conversando
com grandolas da região.
Passeava de automóvel pela cidade na fubica de Gileno Ferreirinha – que ia
buscá-lo em Alagadiço – sem que os moradores desconfiassem que ali estava o
temido cangaceiro. Chegou a assistir ao encerramento da festa do padroeiro, São
Paulo, na praça da igreja em construção, da janela de Sinhá Dondom, viúva do
Tenente Manezinho, na esquina da praça com o Beco do Mamão. Avalia-se que, por
ocasião de sua morte, o total de dinheiro emprestado, somente a casas
comerciais de Aracaju, girava em torno de uns 200 contos de réis.
Quem instruiu Antônio de Chiquinho sobre como proceder para matar Zé Baiano foi
o comerciante Antônio Conrado, que era compadre do coiteiro. Antônio Conrado de
Sousa morava em Aracaju, mas tinha vínculos familiares e propriedades em
Carira. Dois anos antes, a 10 de março de 1934, havia sido assassinado um tio
dele – tio e sogro –, o velho Martinho de Sousa Freire, dono das fazendas
Venturosa e Espinho, nas imediações do povoado Cipó-de-Leite. Martinho vinha da
fazenda Espinho para o Carira acompanhado de seu vaqueiro Joãozinho de Vítor e
mais duas pessoas: o pai e a esposa do vaqueiro. Os cangaceiros estavam
emboscados no oitão da sede da fazenda São Luís, de Janjão de Tertino. Zé
Baiano liberou a mulher do vaqueiro e levou os outros para o fundo da casa. Os
três foram mortos à queima-roupa – cada um recebeu um tiro no ouvido.
Antônio
Conrado de Sousa, quando prefeito de Carira
Fonte:
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Outra vítima,
também em 1934, foi um homem chamado Zé Galdino, dono da fazenda Cachoeira, na
estrada velha de Carira para Bebedouro (Coronel João Sá), assassinado quando
tirava leite no curral.
Em abril de 1936, Zé Baiano matou Pedro Chico, que morava em Fazendinha, acima
de Altos Verdes: como o homem custasse a arranjar certa quantia, os cangaceiros
amarraram-no a um cavalo e puseram o animal para correr, e depois o fuzilaram.
Atribui-se também a Zé Baiano a morte de 6 pessoas naquele mesmo ano, na
fazenda Bom dos Aires (Buenos Aires). Ele costumava pedir dinheiro a
Dominguinho de Vito, dono da fazenda Boa Vista, vizinha da Chafardona, ao
poente de Monte Alegre. Certo dia, ele mandou Dominguinho fazer umas compras,
porém não lhe deu o dinheiro. Dominguinho foi levar as compras. Cansado de ser
explorado pelo bandido, no mesmo dia ele informou à polícia o local do coito e
ainda serviu de guia à tropa. Porém Zé Baiano, assim que recebeu as encomendas,
mudou de local. Quando a polícia chegou, o lugar estava limpo. Os cangaceiros
estavam acoitados perto e viram tudo. Jurado de morte, Dominguinho fugiu para
Itabaiana. Zé Baiano vingou-se na família do coiteiro. O pai de Dominguinho, o velho
Vito, dono da fazenda Bom dos Aires, nas imediações da Lagoa do Roçado, foi
pego na roça. Os cangaceiros mataram o velho Vito, 4 filhos e um genro.
Conta-se que no caminho de casa o chapéu do velho caiu com o vento e ele queria
pegá-lo. O cangaceiro disse: “Dexe aí. Você nun vai mais pricisá de chapéu”.
“Se acabou-se o home de Segipe”
A rotina era essa: Zé Baiano extorquia dinheiro de uns para emprestar a outros,
a juros.
Na região de Alagadiço, quem mais devia a Zé Baiano era Ioiozinho Capitinga, dono
da fazenda Jiboia. Havia poucos dias, o cangaceiro tinha-lhe emprestado 20
contos de réis.
Antônio de Chiquinho também devia dinheiro a Zé Baiano. Não se sabe quanto.
Segundo Alcino Costa, estes empréstimos geraram a suspeita de que a traição do
coiteiro tivesse sido motivada por interesses de seus devedores, entre eles
Ioiozinho Capitinga e o próprio Antônio de Chiquinho. “O que se sabe de real e
verdadeiro” – escreveu Alcino Costa – “é que a morte do cangaceiro chega no
momento em que Ioiozinho, por exemplo, mais que depressa se desfaz de seus
burros e compra a maior loja de tecidos de Frei Paulo; tudo fazendo crer que o
dinheiro de Zé Baiano o empurra para o caminho da riqueza. Muda-se para a
capital, Aracaju, aumentando a sua grande fortuna com os lucros obtidos com a
Casa da Seda. Tempos depois, vende a loja de Frei Paulo ao empregado Justiniano
Batista de Oliveira e deixa Sergipe, indo residir no oeste da Bahia com o ramo
da pecuária.”
Alcino Costa prossegue dizendo que Antônio de Chiquinho, que era o homem da
maior confiança de Zé Baiano, fazia de tudo para agradá-lo, promovia bailes e
festas em sua casa. “As reuniões são quase todas na fazenda Baixio; pode-se
dizer que eram festas familiares, tão grande era a afinidade e a intimidade dos
bandidos com aquele povo”. Depois de falar da forma bárbara como o cangaceiro
havia matado sua mulher, Lídia, passando dias amargurado, pois sem dúvida era
apaixonado pela morta, a mais bonita de todas as cangaceiras, o autor
prossegue: “Mas agora o seu coração de homem estava amando. Amava e queria
justamente uma das filhas do amigo Antônio. Moça também bonita, amorenada, alta
e esbelta, cabelos grandes e pele macia. O cangaceiro a cada dia mais deseja
aquela mulher”.
Felipe de Castro vai além, afirmando que Zé Baiano se amancebou com uma filha
de Antônio de Chiquinho, chamada Zefa.
Sujeito destemido, conceituado, Antônio de Chiquinho vivia incomodado com o
futuro de sua filha, uma menina, que corria o risco de ser arrastada para a
perdição sem volta. Juntando tudo, o coiteiro concluiu que matando Zé Baiano se
resolviam três questões: seu problema com a polícia, a confusão com sua filha e
a quitação das dívidas.
Há exageros e equívocos nessas informações. Antônio de Chiquinho não tinha
nenhuma filha chamada Zefa. As filhas de Antônio de Chiquinho chamavam-se
Lindinalva (Lindô), Luísa, Salvelina (Salva) e Avilete. A mais velha era Lindô,
e a mais bonita era Luísa. O interesse do cangaceiro seria por Luísa. Porém os
antigos moradores de Alagadiço não confirmam nada que desabone aquelas moças. O
que havia era muito fuxico, e talvez inveja, pois Zé Baiano era rico e muitas
jovens eram loucas para se arranjar com ele.
Quanto às insinuações envolvendo dinheiro, não se tem notícia se Ioiozinho
Capitinga, Antônio Franco e os grandes devedores ofereceram ou deram alguma
vantagem pecuniária ao coiteiro pelo seu “trabalho”.
Seja como for, uma série de fatores contribuiu para que Antônio de Chiquinho
tomasse a decisão que tomou. Ele vinha sendo vigiado e perseguido pela polícia.
Depois de ser preso duas vezes, ele passou uns tempos escondido na fazenda de
Totonho do Mulungu (Antônio Joaquim de Andrade), foi para a Usina Central e em
seguida para a Usina São José, na Cotinguiba. Quando voltou ao Alagadiço, foi
preso novamente pela volante de Zé Rufino e levado para Carira, dizendo o
comandante que ia enviá-lo para Jeremoabo, na Bahia. Donana, a esposa de
Antônio de Chiquinho, viajou para Laranjeiras a fim de pedir a Zezé do Pinheiro
para interceder pelo marido junto ao governador do Estado. Zezé do Pinheiro e o
coronel Antônio Franco, poderosos usineiros da Cotinguiba, conseguiram barrar a
ida do coiteiro para a Bahia – no último minuto, chegou a Carira um telegrama
do interventor federal ordenando a liberação do preso.
Consta que o plano de eliminação de Zé Baiano foi combinado por Antônio Conrado
com o tenente Afonso Antônio da Mota, que era o comandante das forças volantes
sergipanas. O tenente queria envolver a polícia no plano, mas Antônio de
Chiquinho não concordou – não confiava em macaco.
Antônio de Chiquinho tinha um pequeno comércio e era marchante. Havia sido
preso pela terceira vez em abril de 1936. Ao ser solto, ele voltou a Alagadiço
disposto a matar Zé Baiano, de acordo com o plano traçado por Antônio Conrado.
O mais difícil era a escolha de outras pessoas para ajudá-lo, pois Zé Baiano
nunca andava sozinho. Antônio precisava procurar uns quatro ou cinco amigos da maior
confiança, e estes teriam de ser cabras dispostos, que não fossem se acovardar
na hora da verdade. Primeiro pensou em Pedro de Nica, um sujeito valentão,
temido naquelas paragens – ninguém sabe como já não tinha se tornado
cangaceiro. Pensou também em Pedro Guedes, um rapagão enorme, de 24 anos.
A seleção foi mais fácil do que Antônio esperava. Pedro de Nica e Pedro Guedes
disseram que topavam. Os outros escolhidos eram empregados de Antônio de
Chiquinho: Toinho (Antônio de Júlia) e Dedé de Lola, que trabalhavam em sua
fazenda, e Birindim, seu ajudante de marchante.
Escolhidos os companheiros, passou-se a aguardar uma oportunidade propícia.
Pedro Guedes,
Toinho, Birindin, Dedé,
Antonio de
Chiquinho e Pedro de Nica
Zé Baiano tinha uma grande e respeitosa estima pela professora Prazeres, que
lecionava na fazenda Altamira, de Antônio de Inês. Ele costumava acoitar nessa
fazenda. No início de junho, Antônio de Chiquinho soube que a Festa de São João
na Altamira ia ser um sucesso. Na zona do Guedes e das Pias só se falava então
no baile da professora. Com certeza Zé Baiano estaria lá. Antônio de Chiquinho
pensou em surpreender Zé Baiano durante a festa. O problema é que nessas festas
costumavam aparecer também os grupos de cangaceiros chefiados por Zé Sereno e
Canário. Não ia dar certo. A coisa teria de ser feita ou antes ou depois.
Foi quando, no dia 3 de junho de 1936, quarta-feira, Antônio recebeu um recado
de Zé Baiano dizendo que estava precisando de mantimentos, os de costume –
jabá, feijão, farinha, café, sal, açúcar, fumo, rapadura, querosene...
Antônio de Chiquinho decidiu que era chegada a hora. Mas precisava saber
quantos cangaceiros estavam com Zé Baiano. Para verificar isso, enviou Dedé,
numa missão aparentemente inocente: Dedé iria dizer ao cangaceiro que Antônio
de Chiquinho estava custando a levar a encomenda porque vinha sendo vigiado
pela polícia, mas no domingo à tarde, depois da feira, a encomenda seria
entregue, sem falta.
Dedé encontrou Zé Baiano na fazenda Preá. Deu o recado. Notou que ele estava
com apenas dois cangaceiros, Demudado e Chico Peste.
Ao saber que Zé Baiano estava somente com dois cabras, Antônio de Chiquinho
animou-se. Ia ser fácil.
No domingo, 7 de junho de 1936, Zé Baiano, acompanhado de Demudado, Chico Peste
e um cangaceiro novato chamado Acilino, passou de manhã pela fazenda Altamira
para saber como iam os preparativos para a festa. A professora Prazeres o
recebeu com alegria, disse que ele não poderia faltar e mandasse chamar também
os primos de Poço Redondo. Zé Baiano disse que viria, com certeza, e ia mandar
chamar Zé Sereno e Manoel Moreno. Zé Baiano tinha encomendado presentes para
algumas moças. Só pelo feitio de um vestido tinha pagado 30 mil-réis.
Despediu-se da professora e foi para a fazenda Baixio, do amigo Antônio de
Chiquinho.
Antônio de Chiquinho não se encontrava na fazenda porque, sendo domingo, dia de
feira no povoado, ele estava ocupado, pois era marchante. Porém, ao dar
meio-dia, Zé Baiano começou a ficar desconfiado da demora do coiteiro, pois a
feira de Alagadiço terminava antes do meio-dia, Antônio de Chiquinho só matava
um carneiro e um porco, e portanto já devia estar na fazenda. Zé Baiano deixou
um recado para que Antônio de Chiquinho fosse encontrá-lo na fazenda Lagoa Nova
– a Lagoa Nova pertencia justamente a Pedro de Nica, um dos homens que Antônio
de Chiquinho tinha convidado para a melindrosa empreitada.
Antônio de Chiquinho e os companheiros chegaram ao Baixio logo depois com as
encomendas. Ao tomarem conhecimento de que os cangaceiros tinham ido para a
Lagoa Nova, rumaram para lá. Conheciam o esconderijo, que ficava não muito
longe da estrada, a meia légua do Baixio.
Antônio ia um pouco apreensivo. Desde que fora preso, nunca mais tinha se
encontrado com Zé Baiano.
Além dos mantimentos, os coiteiros levavam também uma pá e uma picareta. Perto
da Lagoa Nova, esconderam as ferramentas no mato. Apenas Antônio de Chiquinho
ia armado – portava um parabelo. Dedé levava um facão metido na bainha, preso
na cintura.
Deixaram a estrada e seguiram por uma vereda do gado. Logo adiante, avistaram
os cangaceiros, sentados no chão, debaixo de umas baraúnas. Zé Baiano e seu
cangaceiro de confiança, Demudado, vieram ao encontro dos coiteiros. Zé Baiano
estava aborrecido com a demora. Antônio justificou-se explicando que seus
passos estavam sendo vigiados, tinha sido preso...
– Não, Antonho, você nun tem discupa, andou munto má!
Demudado emendou:
– Cuma é qui você fais nóis isperá nun sei quantos dia? Tá pensano o quê? E
pere aí: pur qui é qui aquele cabra tá cum um facão?
Dito isto, Demudado tomou o facão de Dedé e deu-lhe uns safanões, segurando-o
pela abertura da camisa, chegando a rasgar a jabiraca que o coiteiro usava no
pescoço. Zé Baiano também queria saber para que Dedé queria o facão.
Dedé explicou que era carreiro e precisava tirar uns paus a fim de fazer uns
canzis e fueiros para o carro de bois. A resposta não convenceu Demudado, que
objetou:
– Mais qui mintira é essa, cabra? Hoje é dumingo... Ninguém trabaia no dumingo!
Nun é pecado?
– Cortá ũas varinha nun é trabaio... – justificou-se Dedé.
Antônio de Chiquinho contemporizou:
– Voceis tão fazeno ũa tempestade num copo d’água. Pra qui diabo serve um
facão? Acho qui Demudado nun pricisava dismoralizá o meu carrero...
– Nóis nun gosta de vê coitero armado! – disse Zé Baiano.
– Apois eu tou armado – avisou Antônio de Chiquinho. – Tou cum meu parabelo.
– Ora, Antonho, você é meu amigo! Você pode! Agora, me diga ũa coisa: qui diabo
tá haveno hoje, Antonho? Pur que você veio cum tantos home?
– Oxente! E cuma era qui eu pudia trazê essas coisa toda sozim? Eu nun sou
jegue não... Eles viero pra me ajudá...
– Hum! Já vi você sozim carregá munto mais coisas, Antonho!
– É qui eu tou ficano véio... – brincou Antônio de Chiquinho.
Todos riram. Zé Baiano conformou-se. Estava entre amigos. Conhecia Pedro
Guedes, Toinho e Birindim. Só nunca tinha visto Pedro de Nica. Perguntou quem
era. Antônio de Chiquinho respondeu que Pedro de Nica era justamente o dono
daquele lugar onde eles estavam, e era gente de confiança, tinha vindo para
ajudar. Zé Baiano comentou:
– É... cabra forte... dava um bom cangacero...
Antônio de Chiquinho aproveitou a oportunidade e observou, meio
desinteressadamente:
– Tou notano qui você tá cum um cabra novo. Eu só cunheço Demudado e Chico
Peste. Quem é o outo?
Zé Baiano respondeu que o novato se chamava Acilino. Era da fazenda Pulgas, ao
lado das Cotias, na zona do Gameleiro. Tinha ingressado no bando no dia
anterior. Parente de Chico Peste, nascido e criado no Bandeira.
Passados aqueles momentos de tensão, todos relaxaram. Antônio de Chiquinho
mandou que os companheiros acendessem o fogo, pois ele tinha trazido uma
buchada de carneiro já pronta, bastava esquentar. Tinha trazido também três
litros de conhaque.
O plano era este: embriagar os cangaceiros para facilitar o ataque; Antônio de
Chiquinho seguraria Zé Baiano, Toinho e Birindim pegariam Demudado, e Dedé de
Lola ficaria com Chico Peste; bastava agarrá-los, para que Pedro Guedes e Pedro
de Nica, que ficavam sobrando, pudessem matá-los. O problema é que encontraram
um cangaceiro a mais. Enquanto acendiam o fogo, numa trempe de pedras, Antônio
de Chiquinho falou baixo para os companheiros:
– Tem nada não. Pedo Guede ajuda Toinho, e Birindim fica cum o discunhicido. Pedo
de Nica mata tudo sozim.
Alegando que
estava fazendo muito calor, Antônio de Chiquinho tirou a jabiraca do pescoço e
depois a camisa. Lutar sem camisa era mais fácil. Tirou também o parabelo e
colocou-o ao pé de uma árvore. Como haviam combinado, os companheiros também se
queixaram do calor e tiraram suas camisas.
Antônio de Chiquinho abriu um litro de conhaque e foi o primeiro a tomar um
trago, para mostrar que a bebida não tinha veneno. A garrafa foi passando de
mão em mão, cada um despejando a bebida na boca diretamente do gargalo, pois
não havia copos ou canecos.
Só Zé Baiano não bebeu:
– Quero não. Bibida é coisa de gente rũim...
Quando a buchada começou a ferver, Antônio de Chiquinho tirou a panela do fogo,
preparou o pirão e fez um molho com bastante pimenta. Cada homem encheu o seu
prato. Sentaram-se nas sombras das árvores e foram comer. A essa altura, já
estavam no segundo ou terceiro litro de conhaque. A bebida aumentava o apetite.
Comiam com ganância, mastigando forte, como bichos. E haja conhaque.
O fato de Zé Baiano se manter sóbrio não era problema para Antônio de
Chiquinho, porque, apesar de Zé Baiano ser um homem grandalhão e corpulento,
não tinha força no braço direito, em virtude de um ferimento recebido tempos
atrás.
Quando terminaram de comer, alguns se deitaram no chão para dormir. Outros
continuaram sentados, proseando, contando lambanças, como era de costume. Zé
Baiano mostrou a Antônio de Chiquinho um lindo punhal com incrustações de ouro,
sendo o cabo e a bainha de prata, uma verdadeira obra de arte, presente de
Lampião.
Conversa vai, conversa vem, Antônio de Chiquinho começou a cantar uma
musiquinha que estava na moda, cuja letra tinha um trecho mais ou menos assim:
“Ajoelha, Marica! / Mulher comprida / De cabeça seca. / Já soube / que estou
nos braços de Marinete?”. Tinha sido combinado que esta seria a senha para o
ataque. Antônio de Chiquinho pôs-se de pé e continuou cantando a musiquinha
meio desafinado. Chico Peste, completamente bêbado, esparramou-se debaixo de um
pé de esporão-de-galo e fechou os olhos. Os coiteiros aguardavam impacientes o
momento em que seriam cantados os versos da senha combinada. No ponto certo,
Antônio de Chiquinho caprichou na letra:
– Ajueia, Marica, muié cumprida, de cabeça seca, já soube qui tou nos braço de
Marinete?
E aí o mundo fechou. Antônio de Chiquinho e Pedro de Nica voaram em cima de Zé
Baiano, ao tempo em que Pedro Guedes e Toinho se atracavam com Demudado,
enquanto Birindim se engalfinhava com Acilino, e Dedé pegava Chico Peste.
Parecia uma briga de touros. Tendo ajudado Pedro Guedes a dominar Demudado,
Toinho deu uma cacetada em Chico Peste, que conseguira desvencilhar-se de Dedé.
Dedé correu para pegar o facão, e Chico Peste precipitou-se atrás dele, com o
punhal na mão. Toinho gritou:
– Coidado, Dedé!
Dedé voltou-se, brandiu o facão, golpeando o cangaceiro no pescoço. Chico Peste
caiu, e Dedé deu-lhe mais três facãozadas, acabando de matá-lo. Correu em
seguida para socorrer Birindim, que estava atracado no chão com Acilino, e
enfiou o punhal no cabra, à altura do tórax.
Toinho e Pedro
Guedes estavam tendo dificuldades com Demudado. Pedro de Nica deixou Zé Baiano
com Antônio de Chiquinho e foi socorrer os companheiros. Toinho aplicou quatro
punhaladas em Demudado. Pedro Guedes deu um empurrão, e Demudado caiu, se
estrebuchando, arrastando-se, tentando alcançar o fuzil. Pedro de Nica acabou
de matá-lo, enfiando-lhe o punhal bem na veia do pescoço.
Antônio de Chiquinho havia dominado por completo Zé Baiano, já que o cabra só
tinha força no braço esquerdo, pois o direito só servia para manejar o fuzil,
era meio dormente. O cangaceiro esbatia-se no chão, esperneava-se, urrando como
uma fera no laço, com Antônio de Chiquinho montado sobre ele, ajudado agora
pelos companheiros. A camisa de Zé Baiano estava toda rasgada. A luta tinha
sido terrível, e o cangaceiro, cansado, aflito, molhado de suor, aos berros,
subjugado pelos coiteiros, implorava que o soltassem, prometendo que nada de
mal faria a eles, lhes daria o tudo o que tinha.
– Cadê o seu dinhero?! – perguntou Antônio de Chiquinho.
– Tá tudo nos meus bolso. Tem uns seis conto e pouco.
– Só? E o resto? Onde tá o resto?!
– Nun tenho mais aqui purque meus dinhero tão imprestado.
– Deixem ele ficá im pé – disse Antônio de Chiquinho aos companheiros. – Vamo
fazê um trato, Zé Baiano. Se você diché os nome de todo mundo pra quem você
imprestou dinhero e quanto imprestou a cada um nóis lhe sorta.
– Eu imprestei esta sumana vinte conto a Ioiozinho Capitinga e mais vinte a
outos fazendero.
– Diga os nome – ordenou Antônio de Chiquinho –. Eu quero qui você diga o nome
de um pur um, e quanto foi qui imprestou.
O cangaceiro passou a citar nomes e valores. Era muita gente. Uma fortuna.
Antônio de Chiquinho fez uma proposta aos companheiros:
– Vamo prendê ele num quarto bem fechado qui eu tenho na mĩa casa, nóis fais
ele ficá sem roupa e obriga ele a iscrevê ũas carta pros fazendero, e daqui uns
vinte ou trinta dia nóis mata ele...
Pedro de Nica deu sinal de que concordava com a proposta. Zé Baiano viu ali uma
forma de ganhar tempo. Prometeu:
– Amanhã vou recebê setenta conto e dou tudo a voceis. Me sortem!... Me
sortem!... Pelo amô de Nossa Sinhora, me sortem!...
Então Pedro Guedes se postou na frente do cabra e disse:
– Ô seu peste, cê tá lembrado da morte de Moisés, fio de Cazuza Paulo? Cê teve
pena dele, quando sangrou o rapais sem nĩhum mutivo?
– Eu tenho
munto dinhero! Dou tudo a voceis! Vou dexá voceis rico! Eu prometo qui vou
simbora daqui pra bem longe, dexo o cangaço! Antonho, pelo amô de Nossa
Sinhora, me sarve! Se alembre de nossa amizade! Quano foi qui eu lhe fartei cum
a palava? Pelo amô de Deus, Antonho, nun me mate!...
Antônio de Chiquinho era um homem bom. Seu coração amoleceu ante os rogos do
amigo. Estava propenso a soltá-lo. Ponderou:
– Nóis pudia dexá esse cabra ir simbora...
– Nada disso! – gritou Pedro Guedes.
E, antes que Antônio de Chiquinho tomasse qualquer atitude maluca, Pedro Guedes
aplicou uma punhalada no cangaceiro, e Birindim, outra, ambas na clavícula. Zé
Baiano, ao cair, gemeu, dizendo:
– Matou-me agora...
O cangaceiro tentou levantar-se, mas Pedro de Nica e Dedé o seguraram pelas
pernas e o atiraram de novo ao chão, enquanto Birindim lhe aplicava várias
punhaladas no peito. Em seus estertores, ofegando, de olhos esbugalhados, Zé
Baiano murmurou:
– Se acabou-se
o home de Segipe...
Foram estas suas últimas palavras, pois logo em seguida recebeu mais duas
punhaladas de Birindim. Pedro Guedes pegou o facão de Dedé e cortou o pescoço
do cangaceiro.
A luta durara cerca de 5 minutos. Em toda parte, a terra estava revolvida, o
mato estava amassado, e sentia-se um cheiro de sangue insuportável.
Eram 4 horas da tarde do dia 7 de junho de 1936.
Os matadores diziam que em dinheiro só encontraram nos bolsos de Zé Baiano
pouco mais de seis contos, informação esta pouco confiável. Além do dinheiro,
eles recolheram 3 rifles, vários punhais, sendo um com cabo e bainha de prata,
um parabelo e outras pistolas e revólveres, muita munição e diversos artefatos
de ouro. Porém isto é o que foi declarado oficialmente.
Falta muita coisa nessa relação. A bandoleira do fuzil de Zé Baiano era toda
enfeitada de moedas de ouro. Seu chapéu tinha 65 medalhas de ouro na testeira e
duas alianças na barbela. Isso tudo sumiu. Na relação dos bens apresentados às autoridades
não constam os bornais dos cangaceiros. Ora, era nos bornais que os cangaceiros
carregavam seus pertences de valor, especialmente dinheiro. Cada cangaceiro
costumava portar quatro bornais. Falou-se que em vez dos 6 contos e quebrados
que foram declarados, somente de Zé Baiano os matadores se apossaram de mais de
25 contos de réis.
Os quatro corpos foram enterrados num formigueiro, onde a terra era fácil de
ser cavada.
Terminado tudo, sujos de barro e sangue, os coiteiros limparam-se com o que
sobrou do conhaque. A caminho do povoado, passaram por um tanque e se lavaram
bem. Só à noite voltaram para casa. Os objetos dos cangaceiros foram guardados
na casa da mãe de Birindim.
Combinaram guardar segredo, porque temiam o que poderia vir a acontecer quando
Lampião soubesse do fato. Não só Lampião, mas também, e principalmente, Zé
Sereno e Manoel Moreno, primos de Zé Baiano.
Sigilo suspeito
Zé Sereno, Diferente, Canário e Delicado tinham sido convidados por Zé Baiano
para o São João da professora na fazenda Altamira, mas, como de costume,
ficaram aguardando a confirmação, pois cangaceiro não fazia plano para o
futuro, tudo era decidido na hora. Chegou o dia da festa, e nada de receberem o
recado tão esperado. Desconfiados, não foram. Passaram o São João nas Capoeiras
de Julião, em Poço Redondo.
A Festa de São João foi uma maravilha nas fazendas Altamira e São Mateus. Os
sanfoneiros tocaram até o dia amanhecer, enquanto o foguetório rasgava o céu do
sertão.
Em Alagadiço,
Antônio de Chiquinho e os cinco companheiros resolveram comemorar a façanha,
mas sem dizer a ninguém o que estavam comemorando. Fizeram uma fogueira na
frente da igreja, para espantar o frio, e começaram a soltar foguetes, bebendo
cachaça e assando milho verde nas labaredas. Logo começou a juntar gente.
Vieram os tocadores de gaitas e zabumba. Moças e rapazes começaram a dançar. De
repente, o furdunço improvisado se transformou na Festa de São João mais animada
que já houve no povoado. Ninguém dormiu em Alagadiço naquela noite. Até os
velhos saíram de suas casas para ver o que estava acontecendo.
Todo mundo sabia que Antônio de Chiquinho e os amigos gostavam de farra, mas
daquela vez eles saíram das medidas. Só a mãe de Birindim era sabedora do
motivo daquela comemoração. A velha terminou contando o fato a uma filha, mas
pediu segredo. A filha, por sua vez, contou ao marido, Jovino Pereira, e,
claro, também pediu segredo. Depois de beber umas quatro cachaças, Jovino
Pereira ficou soltando fogo pelas ventas. Lá pelas tantas, um sujeito da
fazenda São Mateus comentou:
– É, a festa tá boa mais eu vou pra casa, purque Zé Baiano pode chegá aqui a
quarqué hora e bota nóis pra dançá nu...
Jovino, bêbado, soltou a língua:
– Mais cuma, home, se Zé Baiano tá morto e interrado? Tem mais de quinze dia
qui Antonho de Chiquim matou ele...
– Antonho de Chiquim matou quem?! – perguntou Laurindo Gomes, dono da fazenda
Cachoeira, que estava de orelha em pé, desconfiando daquela comemoração.
Jovino repetiu, e foi além:
– Zé Baiano tá morto e interrado na fazenda Lagoa Nova. Foi matado pur Antonho
de Chiquim, Pedo Guede, Pedo de Nica, Toinho, Dedé e Birindim!...
Pronto, acabou-se a festa.
Em plena noite, dois fazendeiros, Chiquinho das Aroeiras e Antônio Campinas,
foram com uns candeeiros ao local indicado e lá constataram: tinha uma coisa
enterrada num formigueiro.
O fato foi comunicado ao delegado de São Paulo, Germino Góis. O sargento
Epaminondas telegrafou para a capital e foi dar uma olhada no local da chacina.
Exumação e reconhecimento dos corpos
Em Aracaju, os homens do governo puseram as mãos na cabeça: quando Lampião
soubesse ia arrasar Sergipe. Como havia dúvida quanto à veracidade da morte de
Zé Baiano, mandaram exumar os corpos.
O próprio
chefe de polícia do Estado, Osvaldo Nunes dos Santos, que era major do
Exército, deslocou-se no dia 26 de junho até Alagadiço, levando o médico
legista Dr. Carlos Meneses, peritos, jornalistas, fotógrafo e uma formidável
escolta da Polícia Militar.
A essa comitiva juntaram-se muitos moradores de São Paulo. Em pleno inverno,
muita chuva, a estrada era um atoleiro só. De Alagadiço para a Lagoa Nova todo
mundo foi a pé. O local da luta ficou apinhado de curiosos. Todo mundo queria
ver o desenterramento dos cangaceiros. Tinha gente até de Itabaiana.
A exumação dos corpos foi feita no dia 26 de junho de 1936 – 19 dias depois das
mortes.
A cova era rasa, e logo a picareta trouxe a descoberto uma cabeça. Os corpos
estavam amontoados uns sobre os outros. O coveiro levantou a cabeça pelos
cabelos. Antônio de Chiquinho informou:
– Essa cabeça é de Zé Baiano. Os outo nóis nun cortou as cabeça não.
Quando retiraram o primeiro corpo, que não estava degolado, Antônio de
Chiquinho disse:
– Esse aí é Acilino. Zé Baiano vai sê o úrtimo, tá pur baxo de todos.
O segundo corpo era o de Chico Peste. Depois, o de Demudado. E de fato Zé
Baiano estava embaixo de todos. O médico mandou que tirassem as roupas de
mescla azul dos cadáveres e jogassem água para remover a lama dos corpos. As
roupas tiveram de ser cortadas de facão, pois os corpos tinham inchado. O ar
era quase irrespirável, apesar da água-de-colônia e outros perfumes e
desinfetantes que as pessoas usavam a fim de assistir aos trabalhos.
Para ajudar na identificação dos corpos, haviam mandado chamar várias pessoas
que conheciam os cangaceiros. Trouxeram inclusive Marcionílio Soares, de
Carira, que apesar de ser o subdelegado daquele povoado era um notório coiteiro
de Lampião. Os corpos estavam tumefatos, nem pareciam gente. Porém Marcionílio
foi preciso:
– A cabeça de Zé Baiano é esta aqui. Ói a faia no dente. O corpo dele é o
grandão. Cortaro a cabeça dele. E esse aqui eu acho qui é de Demudado. Os outo
eu nun cunheço.
O médico legista começou a fazer as devidas anotações em sua prancheta: faltava
na boca de Zé Baiano o incisivo mediano direito superior; seu corpo...
Marcionílio afastou-se, engulhando. Nem o diabo aguentava o fedor.
O corpos foram fotografados de um a um pelo fotógrafo Artur Alves Costa. Foi
batida uma chapa da cabeça de Zé Baiano, e outra de seu corpo estendido no chão
com a cabeça equilibrada sobre ele. Por fim, o médico ordenou o batimento de
uma chapa dos corpos em conjunto.
Terminada a
perícia, os corpos foram recompostos e inumados no mesmo local.
A volante de Antônio de Chiquinho
Os homens que mataram Zé Baiano foram levados para Aracaju a fim de prestar
depoimentos e contar à imprensa o incrível feito. Lá, ficaram 8 dias na
residência do comerciante Antônio Conrado. O governador do Estado, Eronides de
Carvalho, que era amigo de Lampião, fez um arremedo de comemoração pela vitória
dos valentes homens de Alagadiço e mandou dar-lhes um prêmio de 9 contos de
réis – recompensa pífia, já que teria de ser dividida por seis.
Depois disso, Antônio de Chiquinho e os companheiros foram chamados mais duas
vezes à capital. Temendo-se que quando Lampião soubesse do fato destruísse
Alagadiço, foi constituída uma volante com 15 rapazes do próprio povoado, tendo
como comandante Antônio de Chiquinho. Cada componente da volante ganhava 118
mil-réis por mês. Antônio de Chiquinho fez furos nas paredes de sua casa, para
olhar o que se passava na rua sem precisar abrir porta ou janela, e pelos quais
podia atirar. Ele chamava sua casa de “fortaleza”. Mandou cavar trincheiras nos
caminhos de acesso a Alagadiço, onde os rapazes da volante e os próprios
moradores se revezavam, dia e noite, para resistir a um eventual ataque. O
povoado vivia em clima de guerra.
A existência dessa volante foi breve – no ano seguinte o governador mandou
desarmar Antônio de Chiquinho e seus companheiros, acusados de desordens e
bebedeiras, sem nenhum resultado prático. O jornal Correio de Aracaju
considerou uma iniquidade a atitude do governo, e publicou uma carta de Antônio
de Chiquinho em que ele rebatia os insultos à sua moral e refutava as acusações
de que sua tropa andava embriagada, observando que havia poucos dias o coronel
Liberato tinha louvado a conduta de sua volante.
A notícia chega ao coito do Craibeiro
Lampião passou a noite de São João de 1936 num coito no Riacho Craibeiro,
abaixo de Poço Redondo. A festa emendou a noite com o dia, sem parar. Foi
quando chegou um coiteiro de Alagadiço com uma carta, informando que tinham
matado Zé Baiano e três cabras.
Ao ler a carta, Lampião mandou parar a festa. Chamou Zé Sereno e Manoel Moreno
e deu-lhes a notícia.
Zé Sereno ouviu a história, baixou a cabeça e comentou:
– Eu tou triste nun é só pela perda do meu primo, mais tamém pela traição de um
amigo. Nun posso cumprendê cumo um home de cunfiança cumo Antonho de Chiquinho
pôde fazê ũa coisa dessa, matano um home qui era cumo se fosse irmão dele...
– Apois é... – concordou Lampião. – Os cangacero de verdade tão se acabano... E
nun inziste mais amigo cumo antigamente. Só farta agora eu sê traído pelo
coroné Antonho Caxero ou pur João Maria da Serra Nega...
Lampião mandou que Manoel Moreno, Zabelê e Diferente fossem apurar o que
aconteceu. No dia 29 de junho, eles estiveram na cova de Zé Baiano.
Veneno, foice
e fuga para Goiás
Segundo Felipe de Castro, Zé Baiano e seus companheiros teriam sido mortos com
uma feijoada envenenada.
Estácio de Lima escreveu que os cangaceiros foram mortos dormindo, a golpes de
foice e machado.
Há outra versão segundo a qual a história contada pelos coiteiros era tudo
mentira, tendo Zé Baiano escapado vivo e fugido para Goiás, destino de todos os
fugitivos àquele tempo, sendo morto em seu lugar um sósia dele. Os matadores
teriam custado a comunicar o fato às autoridades justamente para que os corpos
apodrecessem e não fosse possível a identificação. A exumação dos corpos foi
feita 19 dias depois das mortes. Em lugar de Zé Baiano teriam matado um sujeito
de quase igual porte e catadura, sósia dele.
O pesquisador Antonio Amaury Corrêa de Araújo, que se tornou amigo de Zé
Sereno, Criança e outros ex-cangaceiros, tendo inclusive hospedado em sua casa
em São Paulo por mais de cinco meses a legendária Dadá, viúva de Corisco,
afirma que essa versão lhe “foi narrada por Dadá e particularmente aceita pelo
primo da vítima, Zé Sereno e outros antigos companheiros”.
Amaury considera que, embora não haja provas, é possível que tal versão seja
verdadeira, dadas certas coincidências e circunstâncias que cercam o caso. Os
matadores eram coiteiros de Zé Baiano, o mais rico dos cangaceiros. O próprio
Antônio de Chiquinho acenara-lhe com a possibilidade de escapar, rico e
incógnito, das garras dos inimigos e das malhas da lei. Como para viajar Zé
Baiano precisava de uma roupa decente, no início de maio Antônio de Chiquinho
pediu a um alfaiate que fosse à sua casa a fim de tirar as medidas do
cangaceiro para fazer um terno. A roupa ficou pronta em quinze dias. Havia nas
vizinhanças um caboclo chamado Acilino que vivia só com a mãe viúva. Quem o
conheceu dizia que esse rapaz tinha a mesma altura e a mesma cor de Zé Baiano.
Na noite de 6 de julho, véspera da “morte” de Zé Baiano, o cangaceiro esteve na
casa da viúva e levou Acilino consigo.
Dadá disse a Amaury que chegara a conhecer Acilino e confirmou sua semelhança
física com Zé Baiano. E mais: Dadá revelou que quando soube dessa história
esteve com a mãe de Acilino, que, chorando muito, lhe disse que Zé Baiano tinha
levado o rapaz para morrer.
Zé Baiano e Antônio de Chiquinho haviam marcado uma fatada para o dia seguinte.
Zé Baiano embriagou os próprios companheiros e ajudou a matá-los. Acilino foi
vestido com as roupas de Zé Baiano. Tiraram ou quebraram um incisivo central
superior para propiciar o “reconhecimento”. Foi morto também outro indivíduo,
de identidade ignorada. Zé Baiano combinou com Antônio de Chiquinho para
somente espalhar a notícia do fato muitos dias depois. Teria sido por isso que
os corpos somente foram exumados 19 dias depois da chacina. Culminando a farsa,
o reconhecimento de Zé Baiano foi feito pelos próprios coiteiros. E o mais
curioso é que os corpos foram reconhecidos apesar de estarem em adiantado
estado de putrefação... Zé Baiano teria vivido algum tempo na região de Poços
de Caldas, Minas Gerais, e depois foi dono de um restaurante na capital
paulista.
A ronqueira
Embora Lampião procurasse restabelecer o equilíbrio de antes, as coisas não iam
bem. Sergipe já não era mais o refúgio que fora tempos atrás. Apesar de a
polícia sergipana fazer corpo mole, as autoridades não tinham controle sobre as
volantes dos outros Estados. As volantes de Zé Rufino e Odilon Flor
revezavam-se em Carira, Alagadiço, Poço Redondo e Canindé.
No dia 2 de setembro de 1936, três meses depois da morte de Zé Baiano, Lampião
esteve no local da chacina. Pretendia invadir o povoado, dizendo que não ia
deixar ninguém vivo, mas foi informado de que o povoado estava cercado de
trincheiras. Considerou que não valia a pena correr o risco de invadir
Alagadiço só por vingança. Todo o bando de Zé Baiano havia sido morto. Vingança
não traria de volta o amigo. Maria Bonita ainda não havia se recuperado
inteiramente do ferimento sofrido em Pernambuco. Além do mais, parece que havia
um canhão em Alagadiço. Da Lagoa Nova, escutava-se o estampido.
É que Antônio de Chiquinho tinha mandado fazer uma arma estranha, que ele
disparava de vez em quando, fazendo um barulho assustador. O canhão de
Alagadiço era na verdade uma ronqueira – apesar do estrondo ensurdecedor, era
totalmente inofensiva.
A famosa
ronqueira de Alagadiço.
Lampião rezou um terço junto à cova. Estava acompanhado de mais de 30
cangaceiros, entre homens e mulheres. O bando acampou no pé da Serra do Saco.
No dia seguinte, tomou a estrada de Carira, porém adiante dobrou à esquerda, no
rumo de Pinhão. Na noite de 3 para 4 de setembro, em Paripiranga e arredores,
houve saques e espancamentos.
Nas caatingas de Sítio do Quinto e Guloso havia muitos coiteiros, pois ali era
o “feudo” do cangaceiro Ângelo Roque. Lugar bom para descansar uns dias.
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