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domingo, 18 de janeiro de 2015

OS SERTÕES: AS PRÉDICAS DE ANTÔNIO CONSELHEIRO E A POESIA DE CANUDOS - PARTE I

Por Aleilton Fonseca

Antônio Conselheiro, "documento vivo de atavismo"

Em Os sertões (1), no capítulo intitulado "O homem", Euclides da Cunha caracteriza a figura de Antônio Conselheiro e, em função de sua imagem, analisa as prédicas e a poesia de Canudos. Sua abordagem da vida religiosa concentra-se sobretudo em avaliar as práticas dos canudenses como sendo determinadas pelo fanatismo conduzido pelo Conselheiro. Já os versos encontrados, que tematizam a Guerra, são vistos como "pobres papéis" que registrariam o efeito das prédicas do beato. Dessa forma, para que se compreendam as observações de Euclides sobre as prédicas e sobre a poesia canudense é preciso observar alguns aspectos da análise que ele faz do Conselheiro.

Euclides da Cunha inicia o capítulo "O homem" discutindo o problema etnológico do Brasil, procurando demonstrar, segundo as teorias raciais correntes no final do século XIX, o processo ainda inconcluso de formação da nossa etnia mestiça, a partir das três raças originais: indígena, africana e européia. Em seguida, procura explicar a gênese do jagunço e descreve o modo de vida do sertanejo, sua cultura e sua personalidade em consonância com o meio físico, com o clima e com fatos históricos da ocupação geográfica, definindo-o como representante de uma sub-raça que seria produto desses condicionantes. Em função disso, procura estabelecer as causas que levariam ao messianismo como expressão de uma religiosidade primitiva que considerava própria de um estádio atrasado de civilização, que estaria então sendo reatualizada pelos canudenses como um fenômeno de atavismo. Assim, os sertanejos comporiam uma sub-raça dentro do processo de miscigenação brasileiro, e que, isolada durante cerca de três séculos, estaria situada à margem do processo civilizatório e do progresso conseguido pela sociedade do espaço litorâneo do país. Sob essa ótica, Antônio Conselheiro emerge como um produto do meio, portador de características determinadas pela hereditariedade, constituindo um documento vivo de atavismo. Euclides afirma: "É natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária — Antônio Conselheiro".

Com esse epíteto principal, Euclides da Cunha procura traçar as caraterísticas do líder religioso sertanejo, enquadrando-o segundo os conceitos e premissas cientificistas que norteiam sua análise. O beato surge como sendo o falso profeta, um produto do meio, portador de psicose progressiva e consciência delirante:

Todas as crenças ingênuas, do fetichismo bárbaro às aberrações católicas, todas as tendências impulsivas das raças inferiores, livremente exercitadas na indisciplina da vida sertaneja, se condensaram no seu misticismo feroz e extravagante. Ele foi, simultaneamente, o elemento ativo e passivo da agitação de que surgiu. (2)

Para o escritor, Antônio Conselheiro resumia numa individualidade os caracteres negativos da sub-raça, sendo o " falso apóstolo que o próprio excesso de subjetividade predispusera à revolta contra a ordem natural". E assim: "A multidão aclamava-o representante natural de suas aspirações mais altas". Ao traçar o perfil do líder religioso, Euclides destaca-o como uma anticlinal, um "grande homem pelo avesso", uma personalidade forte e carismática resultante do meio social atrasado e formado por homens inferiores, degenerados. Assim, ao lado da descrição "científica", observa-se uma espécie de admiração pelo valor pessoal do pregador, visto como um peregrino, evangelista, "asceta" e "gnóstico bronco" em suas ações edificantes pelos arraiais sertanejos (3).

As prédicas de Antônio Conselheiro, n’Os sertões

Euclides da Cunha informa que, em suas andanças, Antônio Conselheiro levava "um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão abreviada e as Horas Marianas" (4). Ao descrever as peregrinações de Antônio Conselheiro e seus seguidores pelas vilas e povoados sertanejos, mostra como o beato detinha o poder de aglutinar pessoas nas pequenas praças, para ouvir suas pregações. A descrição destaca, de certo modo, o aspecto teatral das pregações:

Erguiam-se na praça, revestidos de folhagens, as latadas, onde à tarde entoavam, os devotos, terços e ladainhas; e quando era grande a concorrência, improvisava-se um palanque ao lado do barracão da feira, no centro do largo, para que a palavra do profeta pudesse irradiar para todos os pontos e edificar todos os crentes. (5)

E adiante:

Ele ali subia e pregava. Era assombroso, afirmam testemunhas existentes. Uma oratória bárbara e arrepiadora, feita de excertos truncados das Horas Marianas, desconexa, abstrusa, agravada, às vezes, pela ousadia extrema das citações latinas; transcorrendo em frases sacudidas; misto inextrincável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da moral cristã e de profecias esdrúxulas. (6)

As prédicas de Antônio Conselheiro são consideradas por Euclides como extravasamento de sua loucura. Assim, ao longo de sua análise, concatena juízos negativos a respeito do pregador e das prédicas, num quadro em que se ajustam como resultantes da mesma situação de incultura. O beato é visto como um "orador bárbaro", "truanesco", "pavoroso", "bufão arrebatado", enfim um "heresiarca". Enquanto isso, as prédicas são consideradas "truncadas", "abstrusas", "desconexas", "preceitos vulgares", enfim, "insânia formidável". O ensaísta cita algumas passagens das prédicas, as mais truncadas e confusas possíveis, para corroborar as suas afirmações e apontar nelas "a revivescência de aberrações extintas". Os comentários acerca do conteúdo das prédicas são articulados no sentido de mostrá-las como prova do que seria o estádio retrógrado, o atraso cultural dos sertanejos, em sua expressão religiosa. Nota-se, no entanto, que os fatos, na verdade, são arrolados para preencherem um lugar de antemão demarcado na cadeia explicativa euclideana, através de formulações conceituais estabelecidas a priori. Por outro lado, os fatos analisados não foram observados in loco pelo escritor, mas sim informados por "testemunhas existentes". Assim, os comentários e críticas são feitas a partir de impressões de testemunhas que não eram partidárias do pregador. Dessa forma, observa-se que tanto os depoentes quanto o analista observam os fatos de uma posição de fora, submetendo-os a preconceitos e prejulgamentos. Nesse sentido, a abordagem das práticas religiosas dos conselheiristas perde de vista a sua inserção no espaço sertanejo, como uma forma de resistência e como uma alternativa de sociabilidade religiosa. Assim, como líder espiritual de uma "igreja" à margem da instituição religiosa oficial situada nos parâmetros positivistas de civilização, o Conselheiro é visto como "desnorteado apóstolo" em "missão pervertedora" que "reunia no misticismo doentio todos os erros e superstições que formam o coeficiente de redução da nossa nacionalidade" (7).

CONTINUA...


Enviado pelo escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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