Autor do desenho - Itamar Nunes Art.
O autor deste
trabalho, nomeado apenas por vigário de Tacaratu de 1942 a 1945, percorrendo
aquela região toda, de Itacuruba ao vale do Ipanema, das caatingas do Navio e
Moxotó às ribeirinhas cidades de Piranhas, Pão de Açúcar, Traipu e Própria, dos
vastos sertões baianos, a começar de Juazeiro, passando por Curaçá, Chorrochó,
Jeremoabo e Glória, ao pequeno sertão sergipano — não encontrou outra opinião
senão esta: — "Lampião morreu envenenado!"
Um testemunho de máxima importância no ato supremo da Tragédia de Angico.
Suficiente por
si só, caso não bastasse os outros, que urdiram o texto deste capítulo, o mais
intrincado e difícil de escrever, e os vinte e um argumentos anteriores em prol
do envenenamento (Adendo II).
Os cangaceiros do coito sobreviventes, distantes do local onde tombaram as
vítimas, na surpresa e confusão do momento, quase nada sabem dizer.
Conseguiu o autor anotar o depoimento, abaixo fielmente trasladado, mediante
compromisso de não comprometer o declarante. Agora, trinta anos depois, com a
prescrição legal, quase tudo pode ser revelado.
Do padre Magalhães, vigário de Geremoabo, esta declaração pessoal ao autor: —
"Posso afirmar ex-fide que Lampião morreu envenenado".
Ex-fide, expressão jurídico-canônica ajuramentaria, como se dissesse:
"Juro diante de Deus", diferente do sentido jurídico-civil, que é
apenas atestatório.
O mesmo pode dizer o autor a respeito do presente depoimento. As circunstâncias
de ordem psicológica e sacramentai conferem ao depoimento valor incontestável,
dir-se-ia absoluto, e invalidam o princípio jurídico do testis unius. Tão
impressionante depoimento tornou-se o ponto de partida determinante do
interesse das pesquisas do autor sobre Lampião.
O sono de Lampião
Lampião nunca
dormia com o grupo. Desconfiado por natureza, ficava separado, sozinho. Um dos
cabras de sua inteira confiança, muitas vezes escolhido na hora, chamado por
ele de "sentinela-do-sono", lhe montava guarda. Perigos de fora e,
pior ainda, de dentro havia, se se oferecesse fácil ocasião. Espreitavam-lhe a
ambição de lhe tomar a chefia geral do cangaço, a glória de ser seu matador, o
prêmio de... contos de réis oferecido por sua cabeça... Numa comunidade humana
tudo pode acontecer. A vigilância teria de ser "eterna".
Aliás, o
bando não dormia todo junto, não. Por ordem tática de Lampião, formavam-se
grupos de dois ou três, espalhados, não longe uns dos outros. Assim, difícil o
aniquilamento sob um ataque de surpresa. Em desde Maria Bonita, quando o cangaço foi aberto às mulheres, essas normas se tornaram mais severas, principalmente
quanto aos casais. Nenhuma promiscuidade. A moral era rigorosíssima.
O começo
Quando ele se
apresentou era moço ainda, mas de cenho fechado no a pardavasco da pele e com ar
de espanto. No antes, porém, era "menino saído". De família humilde,
mas honrada, vivendo dos roçados e de umas poucas de criações, além da vaquinha
amojada com bezerrinho, e do cavalo de fazer feira. Os irmãos, antes e depois
dele, não vingaram sequer um mês. Apenas lhe fazia par a irmãzinha, mais nova
do que ele, então na adolescência. Um dia, desses que surgem repetindo a mesma
história, um triste acontecido virou o juízo e a pacatez do moço. Na ocasião em
que a menina se achava sozinha em casa, veio, sorrateiro, um tarado soldado da
polícia e bilou com ela, à força. Acobertado pela farda e pela justiça, nem um padre-nosso teve de penitência, continuando nas suas funções e maldades. Pouco
depois, o irmão vingava a honra da família, esfaqueando o miserável cujo nos
braços de u'a mulher separada. Agora sim, a justiça enxergou e descobriu o criminoso — ele! E dos piores, porque matara uma "autoridade"!
Caçado pela polícia, foi recebido por Lampião, que lhe trocou o nome por um de
guerra — "PATURI", a fim de evitar perseguições à sua família e
forjou-o cangaceiro de sua confiança.
O relato
Eis o seu
depoimento, aliás, muito cru, tomado naqueles idos de 1942, quatro anos da
morte de Lampião fazendo. Foram eliminadas repetições inúteis e difressões
supérfluas. O linguajar, fonético e sintático, corrigido, deixa,
entretanto, transparecer, raramente entre aspas, palavras e expressões comuns no sertão.
Pausadamente
e, por vezes, angustiado assim falou:
"Naquela
derradeira noite do Capitão, eu fui escolhido para
sentinela-do-sono. Tarde da noite, o Capitão e Maria Bonita, que estavam
nas melodias, assopraram o candeeiro para dormir. Noite fria, serenando,
estiando, serenando, assim...
Quando foi de
madrugada, ainda escuro, Maria Bonita saiu da barraca, acendeu o fogo para
ferver água na panela de barro. Botou dentro pó de café e pequenos tacos de
rapadura. Logo o Capitão apareceu, de manga de camisa, escovando os
dentes, de junto de uma pedra grande defronte da barraca. Alguns cangaceiros
foram se achegando, sem armas, caneco na mão, para o café ali fumaçando. Devia
começar primeiro pelo Capitão, era o chefe. Ele encheu o caneco e bebeu
ligeiro, sem carne assada e farinha, sem nada, puro. Adespois os outros foram
fazendo o mesmo. A gente tinha de viajar logo.
A hora do
café...
De repente, o
Capitão soltou o caneco no chão. Parece que sentiu gastura, porque passou a mão
rodando pela barriga. Deu uns passos largos, sem prumo e caiu na rede ainda
armada na barraca. Deitou só o corpo, as pernas caídas do lado de fora. Eu
ajutorando Maria Bonita a juntar os troços, que a gente ia sair cedo, vi tudo.
Ela se queixava de dor de cabeça e os beiços queimando. Dizia que foi adepois
que 'exprementou' o café para ver se estava bom de doce, um tiquinho de nada molhado
e 'ponido' na palma da mão para lamber. Aí, eu avisei a Maria Bonita. Ela,
deixando a bacia, correu para ver. Eu corri também. Chegou logo Luís Pedro e Vila Nova.
Num instante, o Capitão virou a bola do olho para riba, ficando só o branco, e
abriu a boca. Uma gosma suja, com escuma, saía escorrendo do canto da boca.
Luís Pedro olhou o pulso e o coração e disse: — 'Tá morto!' Chorando, ele tapou
com as mãos os olhos do Capitão e apanhou o chapéu dele. Aí eu disse: — 'É
veneno!' Maria Bonita, aperriada, sacudiu a cabeça dele e os ombros. E ele sem
ação, morto de mesmo. Tive, na hora, o maior desgosto de minha vida, os olhos
chorando. Maria Bonita, coitadinha!, toda agitada e desesperada, gritou: —
'Virgulino morreu!' Eu gritei repetido: — 'O Capitão morreu! O Capitão morreu!'
"É
aí que a história bate com Lampião Além da Versão - Mentiras e Mistérios
de Angico, do escritor
Alcino Alves
da Costa, que insiste em dizer que lá na Grota de Angico, o ataque
aos bandidos foi totalmente diferente"
Mergulhão, que estava deitado no pé da caraibeira, levantou-se todo espantado e
perguntou alto: — 'O Capitão morreu?' Aí eu vi logo cangaceiros cair ali, de
todo jeito, para frente, para trás, para os lados, de dejunto da panela de
café. Maginei comigo mesmo: — 'O veneno era forte que era
danado!'
Eu acho que algum macaco da volante emboscada, com os gritos e os mexidos no
coito, passou fogo em Amoroso. Ele tinha ido ver água talvez para o Capitão
banhar o rosto. E quaje igual, outro tiro, que pegou Mergulhão. Atrás veio logo
uma trovoada de bala! Aquele despotismo que nem deu tempo mais de pensar! Aí
era o causo de se salve quem puder, como diz o outro. Assim de surpresa, bala
para todo lado e naquele cafus, como era que a gente podia tomar posição e
brigar? Aí me soquei dentro de um buraco comprido e baixo, que eu sabia.
"Angico,
escrito pelo escritor:
Paulo Medeiros
Gastão, também tem a sua opinião, não concordando com que contara
alguns depoentes".
Ficava no pé
do morro, 'próximo' da gruta e atrás da barraca do Capitão. O buraco só dava
para caber o corpo apragatado, a barriga no chão, sem poder se virar mais, muito
apertado. Na frente tinha moita de mato tapando. Fiquei aí, os braços incomodados,
não tinha posição para botar eles. Mesmo querendo, eu não podia sair dali. Do
lado de fora era bala por todo canto zinindo. Adespois, as pernas ficaram
'drumentes', moles, bambas só mulambo. Fiquei sem mexer. Mexia só os olhos e o
baticum do coração. O resto estava morto. Vi a hora das balas me pegarem.
Deixa que chegaram a açoitar a moita. Foi Deus e a Santíssima Virgem que me
livraram. Dali de bem de riba, eu fiquei pombeando tudo pela brecha que fiz na
moita. O horror era grande! As balas vinha de magote. Foi torada de bala a
rede do Capitão, que caiu com todo o peso no chão. O pano da coberta da barraca
avoou, ficando só as varas.
Vi Mergulhão
cair. Adespois foi Maria Bonita caindo, as mãos cheias de sangue apertando a
barriga. Luís Pedro deu uns tiros, mais arriou logo. Vila Nova correu. Não deu
tempo de ninguém brigar. Não teve 'loita', não. Possa ser que mais algum cabra
de lá de riba do riacho desse besteira de tiro, sem palpite, à-toa. A gente e o
riacho todinho se acabando na bala. Não posso dizer nem o que foi. Era a
confusão do inferno! Mas, não demorou muito tempo, não. Foi ligeiro,
ligeiro... coisa de meia hora.
Os macacos, qui nem urubus, deram em riba dos cangaceiros caídos, atrás do
saqueio de dinheiro, ouros, jóias, outras coisas mais. Não tinham paciência de
tirar os anéis dos dedos, cortavam logo os dedos.
Sentado numa pedra, o comandante deu a ordem: — 'Cortem as cabeças dos
cangaceiros!' Aí foi um alvoroço, todo o mundo gritando: — 'Cortar as
cabeças!... Cortar as cabeças!...' Não sei como não morri vendo aquele horror!
Parecia um bando de bicho do mato, de feras selvagens, dando gargalhadas e
chamando toda nação de nome feio. Levantavam as cabeças dos mortos, segurando
pelos cabelos, botavam o pescoço escanchado numa pedra — ficava uma coisa feia:
a boca escancarada, os olhos arregalados! — e metiam o facão. Um macaco
furando, furando, de pedacinho, com a ponta da faca no redor do pescoço de um
cabra até separar do corpo. Outro rolou o facão no pescoço e, quando puxou a
cabeça, saiu a guela de dentro do corpo. Foi u'a mangação danada! Nenhuma
cabeça era cortada de uma só vez. Davam mais de um golpe.
Vi uma coisa horrível, que nunca um cangaceiro fez e só bicho faz: os macacos
lamberem o sangue da folha do facão melado! A cabeça cortada era levantada pelo
cabelo e mostrada, todos dando risada de gosto, mangando e dizendo nomes
feios. Tinha cangaceiro meio vivo, mexendo os olhos e falando. Cortaram assim
mesmo a cabeça deles com vida! A sangreira era medonha! Tudo melado: macaco, facão,
pedra, chão, água, roupa, 'tudim'. Eu vi tudo, já era dia claro, de dia.
Naquele meio, veio a ordem do comandante para acabar depressa. Ele estava
sentado numa pedra, o pé amarrado, e muito zangado, acho que era de dor.
Eu tive dó quando um macaco levantou a cabeça de Maria Bonita, dependurada
pelos cabelos compridos. O outro macaco, que tinha o facão na mão, perguntou
meio espantado: — 'Inda tá viva, bandida? Cadê o dinheiro?' Ela respondeu bem
fraquinho: — 'Não tenho, não'. — 'Então, lá vai...' E cortou o pescoço dela com
duas 'facãozadas'. O corpo ficou batendo no chão como de galinha sangrada, e as
pernas se descobrindo. Aí eles arregaçaram a saia dela para espiar o resto e
começaram a bolir com as mãos, dizendo lérias. Tive tanta raiva que veio
vontade de sair e avançar naqueles dois sujeitos safados, desculpe a má palavra.
Abaixo:
Lampião. a direita, Luiz Pedro e a esquerda, Maria Binita
Chegou a vez do Capitão. Um macaco conheceu e disse: — 'É o peste do cego!'
Danou uma coronhada de fuzil na cabeça e foi avisar o comandante. O outro ficou
cortando o pescoço do Capitão em riba de uma pedra. Quando acabou, a cabeça
escorregou e rolou pela ladeira da pedra até o chão. Ele pegou ela e levou
para mostrar ao comandante, que ficou cercado de macaco examinando e falando.
Tudo acabado, botaram as cabeças em três sacos, as bocas amarradas num pau.
Sim, botaram, também, um corpo com cabeça dentro de uma rede dependurada
noutro pau. Tudo mode ser carregado, nos ombros de dois. Adespois os macacos
foram se lavar nas poças mais de riba, de água limpa. Começaram a ir
embora. O comandante numa cadeirinha feita dos braços de dois macacos. Levaram
todo o saque. Foram subindo, um atrás do outro, feito formiga, pelo caminho do
alto das Perdidas.
Fiquei ali deitado o dia todo. A cabeça zoava todinha, o corpo doía, quinem
tinha apanhado uma pisa de cacete. Faltei coragem para sair dali. Eu via
macaco pulando até pelos galhos mais altos dos pés-de-pau. Não tinha fome, não.
Mas a sede era de matar, aperriando.
Senti uma agonia doida. Mas, esperei, esperei... O silêncio muito grande. Os
passarinhos assustados não voltaram mais. Fechava os olhos e enterrava a cara
no chão com medo de ver as almas daqueles defuntos aparecerem sem cabeça.
Fiquei tão assombrado que sentia algumas vezes o gume do facão passar no meu
pescoço. Rezei tanto a Nossa Senhora do Desterro que cheguei a suar de pingar.
Tardinha, fui saindo com medo de assombração e de tudo. Caminhava de quatro
pés, não podia ficar de pé causo das pernas feito molambo e tremendo. Eu
queria ficar fora da vista daquele açougue de carne de cristão. Subindo o
riacho cheguei no dependo do alto, os joelhos esfolados. Me aprumei, fui andando,
assim cambaleando, areado, até poder sair correndo, ligeiro ou devagar, a noite
inteirinha, até chegar na casa de meus pais. Tava mais morto do que vivo.
Passei aquele dia deitado tomando tudo o que era de meizinha que minha mãe preparava
e me dava. Comida de panela comi bem pouquinho. De noite, já no outro dia, meu
pai me levou para casa de um tio meu, viúvo, que morava sozinho, lugar mais
seguro, um esquisito. Estou lá este tempo todim, fazendo planta, dando limpa,
xaxando terra nos pés, colhendo legume e capucho de algodão. Também no cuido
das criações. Sem sair pra nenhum lugar. Somente agora saí praqui causo minha
mãe mandou pedir perdão a Deus. Adespois desta conversa eu quero que seu
vigário escute meus pecados na confissão e me comungue na missa".
O fim
Satisfazendo a
curiosidade do leitor: Esse moço, que escapara da morte para contar a história,
logo depois, feito embarcadiço de um vapor do rio São Francisco, rumou para o
Sul, sem documentos, de nome novamente trocado, para começar nova vida.
Nerton Macedo
Maiores informações, o leitor poderá acessar este endereço: