Por Helder Lima
Subgrupo do cangaceiro Pancada na rendição à volante, em 1938: cada peça do vestuário tinha desenho exclusivo
Em busca dos
significados do discurso silencioso dos objetos – roupas, armas e utensílios –
que pertenceram aos cangaceiros do Nordeste nos anos 20 e 30, o historiador
Frederico Pernambucano de Mello, que atuou na equipe do sociólogo Gilberto
Freyre, na Fundação Joaquim Nabuco, começou em 1997 uma pesquisa que culminou
no livro Estrelas de couro – a estética do cangaço (editora
Escrituras), lançado na última quinta-feira em Recife (PE).
O livro
completa uma trilogia sobre o cangaço ao lado dos títulos Guerreiros do
Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil (1985) e Quem foi
Lampião (1993), esta uma biografia do líder maior dos insurgentes do
sertão, Virgulino Ferreira.
Com mais de 300
fotos históricas e de objetos, o livro é um trabalho de pesquisa
interdisciplinar que busca desvendar a simbologia do imaginário do cangaceiro,
que desde os anos 20 passou a compor um universo heróico popular no Brasil. Até
hoje, as histórias inspiram escritores, diretores de cinema e produções de TV.
O autor possui
o maior acervo de pertences pessoais dos cangaceiros, com 160 peças. A produção
do livro também recebeu contribuições de imagens de diversas instituições de
pesquisa. A primeira mostra da coleção que resultou no livro foi feita na
Bienal de Arte de São Paulo, de 2000.
No prefácio, o
escritor Ariano Suassuna assinala que o cangaço é uma expressão social e
cultural que começou a ser compreendida com mais profundidade em 1973, quando
um escritor pernambucano chamado Maximiano de Campos publicou o romance Sem
lei nem rei. Esse título remete o cangaço às origens da história do país,
quando os colonizadores destacavam seu encantamento com a possibilidade de
viver em “estado de natureza”, como os índios que aqui encontraram.
Esse estado,
no entanto, logo se revela como espírito de insurgência, de rebeldia, frente à
sanha do colonizador de mercantilizar tudo o que havia nas terras sem poupar da
violência o ser humano e a natureza. Foi assim que muitos índios e escravos se
rebelaram, fundando estados paralelos, como as nações quilombolas e a revolta
de Canudos, na Bahia. A tradição dessa rebeldia se coloca atualmente na
violência urbana, sobretudo nas vertentes do crime organizado.
Bornais eram
confeccionados à mão: cangaceiros lutavam e costuravam
O trabalho de
pesquisa de Mello contribui para que se compreenda o caráter duplo da
psicologia do personagem épico do cangaceiro, que é expressa ao mesmo tempo por
um ‘orgulho de si mesmo’ e um ‘escudo ético’, que o faz ser leal ao seu grupo
de modo exagerado. Para Suassuna, a teoria de Mello “foi a única que explicou a
mim próprio os sentimentos contraditórios de admiração e repulsa que sinto
diante dos cangaceiros”.
Blindagem
mística e anseio estético.
Os trajes e
equipamentos dos cangaceiros têm uma estética afetada por um sistema de
significados que busca dar proteção ante a morte, já que ela é tão evidente em
seu dia a dia. “Por conta da natureza mágica de muitos desses signos e da
profusão de seu emprego disseminado por todos os ângulos da vestimenta, pode-se
ter como comprovadas as palavras de velhos cangaceiros ao expressar, de modo
compreensivelmente difuso – não há exatidão de confissões do tipo – alguma
coisa que traduziríamos como blindagem mística, a dividir atenção com o puro
anseio estético”, afirma Mello.
Um dos objetos
que expressa bem essa procura de blindagem é o ‘caborje’, um saquinho com uma
oração escrita, amuleto ou patuá que o cangaceiro mantém no lenço encardido
amarrado ao pescoço.
Os objetos
básicos dos cangaceiros são chapéu, bornal, cartucheira, talabarte (cinturão),
coldre, perneira, luva, cantil, alpercata e as armas. Essa vestimenta compõe o
que Mello chama de “imagem síntese”, celebrando a duplicidade de que fala
Suassuna, um espírito que é voltado para o religioso e o profano ao mesmo tempo.
As roupas e
objetos dos cangaceiros são expressão de arte no corpo. A linguagem dessa
vestimenta tem claras ligações com a história. No período da colonização, os
escravos também usavam o corpo como suporte para suas criações – a capoeira,
entre elas – já que o corpo era seu único instrumento de defesa perante a
violência do colonizador.
Estrelas de
couro – a estética do cangaço,
Frederico
Pernambucano de Mello, editora
Escrituras, SP, 2010, 253 págs.
http://blopgdomendesemendes.blogspot.com
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