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domingo, 8 de março de 2020

HISTORIADOR REVELA ‘A FALA’ DOS OBJETOS DOS CANGACEIROS


Por Helder Lima
Subgrupo do cangaceiro Pancada na rendição à volante, em 1938: cada peça do vestuário tinha desenho exclusivo

Em busca dos significados do discurso silencioso dos objetos – roupas, armas e utensílios – que pertenceram aos cangaceiros do Nordeste nos anos 20 e 30, o historiador Frederico Pernambucano de Mello, que atuou na equipe do sociólogo Gilberto Freyre, na Fundação Joaquim Nabuco, começou em 1997 uma pesquisa que culminou no livro Estrelas de couro – a estética do cangaço (editora Escrituras), lançado na última quinta-feira em Recife (PE).

O livro completa uma trilogia sobre o cangaço ao lado dos títulos Guerreiros do Sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil (1985) e Quem foi Lampião (1993), esta uma biografia do líder maior dos insurgentes do sertão, Virgulino Ferreira.

Com mais de 300 fotos históricas e de objetos, o livro é um trabalho de pesquisa interdisciplinar que busca desvendar a simbologia do imaginário do cangaceiro, que desde os anos 20 passou a compor um universo heróico popular no Brasil. Até hoje, as histórias inspiram escritores, diretores de cinema e produções de TV.

O autor possui o maior acervo de pertences pessoais dos cangaceiros, com 160 peças. A produção do livro também recebeu contribuições de imagens de diversas instituições de pesquisa. A primeira mostra da coleção que resultou no livro foi feita na Bienal de Arte de São Paulo, de 2000.

No prefácio, o escritor Ariano Suassuna assinala que o cangaço é uma expressão social e cultural que começou a ser compreendida com mais profundidade em 1973, quando um escritor pernambucano chamado Maximiano de Campos publicou o romance Sem lei nem rei. Esse título remete o cangaço às origens da história do país, quando os colonizadores destacavam seu encantamento com a possibilidade de viver em “estado de natureza”, como os índios que aqui encontraram.

Esse estado, no entanto, logo se revela como espírito de insurgência, de rebeldia, frente à sanha do colonizador de mercantilizar tudo o que havia nas terras sem poupar da violência o ser humano e a natureza. Foi assim que muitos índios e escravos se rebelaram, fundando estados paralelos, como as nações quilombolas e a revolta de Canudos, na Bahia. A tradição dessa rebeldia se coloca atualmente na violência urbana, sobretudo nas vertentes do crime organizado.

Bornais eram confeccionados à mão: cangaceiros lutavam e costuravam

O trabalho de pesquisa de Mello contribui para que se compreenda o caráter duplo da psicologia do personagem épico do cangaceiro, que é expressa ao mesmo tempo por um ‘orgulho de si mesmo’ e um ‘escudo ético’, que o faz ser leal ao seu grupo de modo exagerado. Para Suassuna, a teoria de Mello “foi a única que explicou a mim próprio os sentimentos contraditórios de admiração e repulsa que sinto diante dos cangaceiros”.

Blindagem mística e anseio estético.

Os trajes e equipamentos dos cangaceiros têm uma estética afetada por um sistema de significados que busca dar proteção ante a morte, já que ela é tão evidente em seu dia a dia. “Por conta da natureza mágica de muitos desses signos e da profusão de seu emprego disseminado por todos os ângulos da vestimenta, pode-se ter como comprovadas as palavras de velhos cangaceiros ao expressar, de modo compreensivelmente difuso – não há exatidão de confissões do tipo – alguma coisa que traduziríamos como blindagem mística, a dividir atenção com o puro anseio estético”, afirma Mello.

Um dos objetos que expressa bem essa procura de blindagem é o ‘caborje’, um saquinho com uma oração escrita, amuleto ou patuá que o cangaceiro mantém no lenço encardido amarrado ao pescoço.

Os objetos básicos dos cangaceiros são chapéu, bornal, cartucheira, talabarte (cinturão), coldre, perneira, luva, cantil, alpercata e as armas. Essa vestimenta compõe o que Mello chama de “imagem síntese”, celebrando a duplicidade de que fala Suassuna, um espírito que é voltado para o religioso e o profano ao mesmo tempo.

As roupas e objetos dos cangaceiros são expressão de arte no corpo. A linguagem dessa vestimenta tem claras ligações com a história. No período da colonização, os escravos também usavam o corpo como suporte para suas criações – a capoeira, entre elas – já que o corpo era seu único instrumento de defesa perante a violência do colonizador.

Estrelas de couro – a estética do cangaço,
Frederico Pernambucano de Mello, editora Escrituras, SP, 2010, 253 págs.


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