A História tem seus caprichos. Como se trata de um ramo no compartimento das ‘Ciências Humanas’, não se pode querer dela a precisão de um cálculo matemático. Em História, pode-se nunca atingir a verdade desejada em torno de um evento, mas, tão somente, a verossimilhança dos fatos vários que o geraram. Por tal, a presença de um mínimo de metodologia é necessária para narrar os fatos humanos da forma mais próxima ao real. Este seria o objetivo principal a perseguir.
No caso da reconstituição dos episódios ligados ao cangaço, claro, aplicam-se as mesmas regras utilizadas em História, já que aquele é um compartimento desta.
Mas, voltando aos caprichos desta Ciência, vamos recuar um pouco no tempo. Na manha de 28 de julho de 1938, quando as cabeças de Lampião, ‘Maria Bonita’ e mais nove cangaceiros chegaram a Piranhas, em Alagoas, foi um alvoroço. Após esteticamente arrumadas na escadaria da Prefeitura daquela cidade, e expostas à curiosidade pública, todos queriam ver de perto aqueles estranhos ‘troféus’ – principalmente, a cabeça de Lampião. O homem que parecia invencível, que possuía – na crença e no imaginário popular – o ‘corpo fechado’ para balas, que tinha poderes divinatórios e que reinava absoluto no sertão havia quase vinte anos, teve decepada a sua cabeça. Era difícil acreditar que tal um dia acontecesse.
Assim, naquela manhã de julho, os incrédulos – e não eram poucos – tiveram a oportunidade de ver perto a cabeça do cangaceiro famoso. Alguns até foram mais ousados, e levantaram a pálpebra do olho direito daquele resto humano, para constatar a existência do leucoma, a ‘pinta branca do olho’, que era um dos sinais marcantes do rei-do-cangaço: -“a prova está aí!” – muitos teriam dito.
A maioria reconheceu, naquele momento, a cabeça de Lampião. Houve, claro, um ou outro recalcitrante.
Afinal, discordar é próprio da natureza humana. Assim foi na cidade de Piranhas, na atual Delmiro Gouveia, em Santana do Ipanema, e em todos os outros lugares por onde passou a procissão macabra.
Naquele dia, porém, ninguém teve acesso a película cinematográfica feita pelo sírio-libanês Jamil Ibrahim Botto (o Benjamim Abraão). Ninguém, pois, pode fazer uma comparação direta entre alguns ‘takes’ do filme feito em 1936, com a cabeça que ali estava à mostra. A película, de efeito, havia sido confiscada pela polícia política de Getúlio Vargas e não fora divulgada como pretendia o aventureiro.
Todavia, décadas mais tarde, quando da edição do Cariri Cangaço 2011, eis que são apresentados novos fragmentos inéditos – e devidamente restaurados - da importante película histórica. Em certo momento, pois, vemos Lampião se dirigir contra a lente da câmera e, lentamente, tirar o seu chapéu de couro. Ali, naquele instante, tem-se uma visão plena do rosto do cangaceiro em 1936. Eis o fotograma:
Desta forma, como deixei claro no início deste modesto artigo, fica aberto o debate em torno da certeza – ou não – se a cabeça exposta na escadaria da Prefeitura de Piranhas seria realmente a de Lampião. Sabendo de histórias que recrudescem aqui e ali, dando conta de uma sobrevida do rei-do-cangaço – após 1938 - em Goiás, em Mato Grosso, em Minas e até na Paraíba, cabe, então, a pergunta
Saudações!
Sérgio Augusto de Souza Dantas
Natal, RN
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*Bacharel em Direito, pesquisador independente e autor dos livros “Lampião e o Rio Grande do Norte” (2005), “Antônio Silvino: O Cangaceiro, O Homem, O Mito” (2006) e “Lampião: Entre a Espada e a Lei” (2008). Clique aqui e confira uma entrevista com SD
No caso da reconstituição dos episódios ligados ao cangaço, claro, aplicam-se as mesmas regras utilizadas em História, já que aquele é um compartimento desta.
Mas, voltando aos caprichos desta Ciência, vamos recuar um pouco no tempo. Na manha de 28 de julho de 1938, quando as cabeças de Lampião, ‘Maria Bonita’ e mais nove cangaceiros chegaram a Piranhas, em Alagoas, foi um alvoroço. Após esteticamente arrumadas na escadaria da Prefeitura daquela cidade, e expostas à curiosidade pública, todos queriam ver de perto aqueles estranhos ‘troféus’ – principalmente, a cabeça de Lampião. O homem que parecia invencível, que possuía – na crença e no imaginário popular – o ‘corpo fechado’ para balas, que tinha poderes divinatórios e que reinava absoluto no sertão havia quase vinte anos, teve decepada a sua cabeça. Era difícil acreditar que tal um dia acontecesse.
Assim, naquela manhã de julho, os incrédulos – e não eram poucos – tiveram a oportunidade de ver perto a cabeça do cangaceiro famoso. Alguns até foram mais ousados, e levantaram a pálpebra do olho direito daquele resto humano, para constatar a existência do leucoma, a ‘pinta branca do olho’, que era um dos sinais marcantes do rei-do-cangaço: -“a prova está aí!” – muitos teriam dito.
A maioria reconheceu, naquele momento, a cabeça de Lampião. Houve, claro, um ou outro recalcitrante.
Afinal, discordar é próprio da natureza humana. Assim foi na cidade de Piranhas, na atual Delmiro Gouveia, em Santana do Ipanema, e em todos os outros lugares por onde passou a procissão macabra.
Naquele dia, porém, ninguém teve acesso a película cinematográfica feita pelo sírio-libanês Jamil Ibrahim Botto (o Benjamim Abraão). Ninguém, pois, pode fazer uma comparação direta entre alguns ‘takes’ do filme feito em 1936, com a cabeça que ali estava à mostra. A película, de efeito, havia sido confiscada pela polícia política de Getúlio Vargas e não fora divulgada como pretendia o aventureiro.
Todavia, décadas mais tarde, quando da edição do Cariri Cangaço 2011, eis que são apresentados novos fragmentos inéditos – e devidamente restaurados - da importante película histórica. Em certo momento, pois, vemos Lampião se dirigir contra a lente da câmera e, lentamente, tirar o seu chapéu de couro. Ali, naquele instante, tem-se uma visão plena do rosto do cangaceiro em 1936. Eis o fotograma:
Este quadro, em particular, nos chama a atenção para alguns detalhes. Em primeiro lugar, a calvície já acentuada do cangaceiro, bem marcada por falha na margem centro-direita da testa (do ponto de vista do observador). Apesar da má qualidade da imagem, observa-se também, por trás da lente dos óculos, o leucoma do olho direito. Vê-se o direcionamento dos cabelos, além da formação craniana, esta nitidamente dolicocéfala (largura frontal medindo mais ou menos 4/5 da altura do rosto).
A fim de instigarmos o debate, resolvemos lançar mão de ferramentas digitais de imagem para chegarmos a algumas comparações. Na imagem abaixo, através da aplicação da ferramenta de ‘contraste’, do programa ‘Corel Photo Paint’, conseguimos deixar mais evidente o leucoma, além de suprimir a parte inferior dos óculos, deixando o rosto mais livre para análise:
Em um passo além, elidimos praticamente toda a estrutura dos óculos, e demos realce à sobrancelha direita do cangaceiro. Com o número 01, marcamos o avivamento da referida sobrancelha:
Seguindo, marcamos no fotograma o número 03, para indicar a ausência de rugas de expressão neste ponto. Não há compressão da pele neste pedaço do rosto. Não a mínima evidência de sobrecenho carregado. E esta marcação servirá como comparativo em uma imagem mais abaixo. Vejamos:
A partir deste ponto, comecemos a fazer as comparações. Além do fotograma já aludido, vamos utilizar um detalhe da famosa foto das cabeças dispostas na escadaria da Prefeitura de Piranhas. O objetivo é comparar características contidas na cabeça do rosto do cangaceiro quando vivo, com outras existentes na cabeça exposta naquela manhã de julho de 1938.
As duas imagens estão postas lado a lado. De início, observem-se as numerações (a) e (b). Em comum entre as duas imagens, temos uma marca de calvície acentuada no terço médio esquerdo da cabeça, com marca incisiva em direção à parte posterior do crânio. Neste ponto, há um compasso simétrico entre as duas imagens, ao que nos parece.
Com o sinal “\/”, marcamos a saliência do osso esfenóide direito, característica que também nos parece igual em ambas as imagens. A largura do rosto também não foi desconsiderada, de modo que a marcamos em uma escala 01_______02, a qual é rigorosamente igual nas duas fotos, como se vê na ‘régua’ colocada abaixo de ambas. Também se nota a INEXISTÊNCIA das rugas de expressão – ou enrugamento da pele -entre as sobrancelhas. O fato se verifica em ambas as imagens.
Agora, em mais uma etapa, ‘importamos’ a imagem do rosto sem vida, e o aplicamos no fotograma de 1936, usando o sentido de A para B, como indicado pela seta. O encaixe da imagem, sem sombra de dúvida, parece perfeito. Não há sobras ou excessos pela inserção .
O único ponto que não mostrou simetria, seria a parte inferior do rosto; o ‘queixo’. Veja-se que as marcações 03 e 03A mostram esse descompasso. No entanto, neste particular havemos de nos valer da história. De efeito, ainda na Grota do Angico, um soldado (possivelmente José Panta Godoy) disparou um tiro de fuzil na cabeça do cangaceiro, quando este já se encontrava morto. A prova de tal fato está na imagem de número 05, lado direito, onde se percebe - ao lado esquerdo de quem olha -, grande quantidade de massa encefálica no orifício de saída do projétil.
Com o tiro disparado contra a cabeça, indubitavelmente, foram lesionados os ossos ‘temporal’, ‘esfenóide’ e ‘zigomático’, cedendo os ‘malares’, no sentido ‘de baixo para cima’, horas mais tarde, quando a cabeça foi colocada no batente da escadaria, em Piranhas. O rosto cedeu, sendo comprimido em função da quebra da estrutura óssea. Assim, o queixo um tanto proeminente outrora, deixa de existir e, em seu lugar, encontramos uma espécie de ‘dobra epitelial’, logo abaixo da boca.
E em relação a esta (a boca), note-se que, em ambas as imagens, apesar de apresentar sentidos diferentes (côncavo em uma; convexo em outra), a medida da boca é rigorosamente a mesma. Na imagem abaixo, destacamos em um retângulo a boca na imagem do cangaceiro vivo (c), e, em seguida, a recortamos e a aplicamos embaixo da fotografia da cabeça já decapitada (d). A simetria é rigorosa; as medidas são literalmente iguais.
Repetindo a imagem - agora sem a marcação na imagem da esquerda - para que a comparação possa ser feita de forma livre.
Desta forma, como deixei claro no início deste modesto artigo, fica aberto o debate em torno da certeza – ou não – se a cabeça exposta na escadaria da Prefeitura de Piranhas seria realmente a de Lampião. Sabendo de histórias que recrudescem aqui e ali, dando conta de uma sobrevida do rei-do-cangaço – após 1938 - em Goiás, em Mato Grosso, em Minas e até na Paraíba, cabe, então, a pergunta
“Teria Lampião sido substituído por um sósia rigorosamente igual? Um sósia perfeito? Fica lançada a questão!!
Saudações!
Sérgio Augusto de Souza Dantas
Natal, RN
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*Bacharel em Direito, pesquisador independente e autor dos livros “Lampião e o Rio Grande do Norte” (2005), “Antônio Silvino: O Cangaceiro, O Homem, O Mito” (2006) e “Lampião: Entre a Espada e a Lei” (2008). Clique aqui e confira uma entrevista com SD
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