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domingo, 8 de março de 2020

UMA VELHA

*Rangel Alves da Costa

Hoje, data em que se comemora o Dia da Mulher, repasso um texto escrito no passado e que reflete bem outra condição feminina: a velhice, o abandono, a difícil vida, o difícil viver. Um texto sobre uma velha mulher, e certamente uma mulher que não se encontra tão escondida no seio de nossa sociedade.
Seus olhos profundos e sem luz, quase sumidos nas entranhas da pele escura e enrugada que lhe adorna, parecem ver apenas sombras e nublados naquilo que se põem a olhar. Mas insistentemente Sinhá Titoca mira a vida, e intimamente reflete o que avista ou recorda neste ato solitário de todas as tardes, principalmente após o entardecer.
Velha Antônia ou Sinhá Titoca, do mesmo modo dá atenção a quem lhe cumprimenta de um jeito ou outro. Já não recorda o tempo que alguém pronunciou seu nome de batismo: Antônia Rosarina das Mercês. Achava nome bonito demais para uma filha de escravos e que escravizada também viveu.
Mas a escravidão dos libertos, ou dos libertados sem ter de si afastados o peso dos grilhões e a dor das chibatas do preconceito, da discriminação, da falta de oportunidades para viver e do reconhecimento como pessoa humana. Desse modo, apenas uma escrava liberta e jogada numa nova senzala, aquela da miséria e do esquecimento. Os que chegam somem no passo seguinte.
Hoje pequenina pela idade que parece encolher, de cabelo carapinha todo branquinho, convivendo com sua fé mista de catolicismo e deuses africanos. Ao lado das fitas já esbranquiçadas do Senhor do Bonfim sobressaem-se sempre, e por todo lugar, as imagens de santos e plaquetas com dizeres religiosos. Mas nunca leu uma só palavra. Nunca aprendeu a ler nem escrever.
Foi empurrada às brenhas da cidade e aí permaneceu num casebre ao lado do seu amor de mesma cor e raiz. Mas um dia, depois de longo tempo de verdadeiro banzo distante da paz no campo, o companheiro fechou os olhos de vez e ela ficou sozinha. E o tempo passou, sua casinha ficou cada vez mais comprimida com as novas moradias, mas ela permaneceu aí sem ter para onde ir nem o que fazer.


Cocada branca, arroz doce e mungunzá, não havia nada mais saboroso do que ela fazia. Depois do meio-dia colocava suas guloseimas numa mesinha na entrada do casebre, cobria tudo com toalha rendada e de alvura de leite, e se punha a esperar a clientela chegar, bater palmas, chamar seu nome. Houve um tempo que não dava pra quem queria, mas a clientela foi se mudando, rareando, até que ficou dispendioso demais tanto trabalho para nenhum lucro.
Deixou de lado as comidas de coco e teve de aceitar como ofício aquilo que já fazia desde muito tempo, que era rezar e benzer as pessoas que chegassem necessitadas de um auxílio. Ali chegam pessoas se dizendo tomadas de mau olhado, com espinhela caída, cheias de enfermidades desconhecidas, envoltas em convulsões, e mais um rosário de doenças ou meros temores em busca das rezas milagrosas da velha senhora.
Em tom de brincadeira, mostrando uma dentadura ainda forte e de mármore branco, brinca com quem chega pedindo para que faça trabalho amoroso; ou seja, que faça rezas e encantamentos para o amado fujão voltar de vez e se apaixonar. Ou amarrar o cabra, como costumam dizer. E acrescenta que se mexesse com essas estripulias não vivia naquele deserto de solidão. E pede desculpa por não invocar entidades nem se ajoelhar perante a divindade para pedir intercessão junto às coisas do coração.
Gosta mesmo é de preparar chás, infusões, unguentos, pastas com remédios medicinais. Possui uma pequena farmácia no seu quintal onde cuidadosamente cultiva boldo, mastruz, erva-cidreira, hortelã, arruda e malva, dentre muitas outras ervas milagrosas. Também conhece rezas antigas, ensinamentos passados de outras gerações. E muitos dizem que suas mãos têm o dom de mandar a enfermidade às profundezas dos sete mares e trazer fortalecimento espiritual.
Escolhe três ramos ou folhas no quintal, silenciosamente pronuncia algumas palavras, em seguida seu braço magro faz a planta circundar a cabeça e o corpo da pessoa. Quando a planta se mostra totalmente murcha é porque todo o carrego saiu do corpo e ali se instalou. E a pessoa está livre do mau olhado ou do peso que lhe atormenta. Mas quando a planta insiste em não murchar, então ela se mostra tomada de preocupação.
E diz que a pessoa tome muito cuidado, mesmo estando com corpo fechado. É em corpo assim que as chaves falsas entram com facilidade. E manda que reze três ave-maria por três dias seguidos, que tome banho com água de cuia e não deixe o vento do entardecer subir pelas coxas. É esse vento tinhoso que desanda a vida de qualquer um.
Depois agradece a moeda colocada em sua mão. E o dia seguinte a encontrará na mesma solidão dos tempos, conversando com as plantas, ouvindo os gemidos de dor de suas raízes escravas.

Escritor
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