Trecho de ‘Guerreiros do sol’, de Frederico Pernambucano de Mello, relançado pela Cepe Editora
Volante pernambucana do tenente Sinhozinho Alencar, em Belmonte, Pernambuco, 1926. Notar o à vontade das crianças em meio às armas dos soldados Foto Cortesia de Valdir Nogueira
CANGAÇO: DO ENDÊMICO TOLERADO AO EPIDÊMICO REPELIDO
Vejamos agora o cangaceiro, indiscutivelmente a personagem mais destacada e complexa de todo o elenco que estamos analisando.
Em estudo de comparação entre as culturas dos dois grandes ciclos nordestinos, afirmou Câmara Cascudo que o ciclo da cana-de-açúcar não poderia ter produzido o cangaceiro.1 À parte algum exagero retórico que a assertiva parece conter, não resta dúvida de que o homem do cangaço disputa com o próprio vaqueiro a primazia no representar do modo mais completo o conjunto dos atributos e qualidades que caracterizam o homem do ciclo do gado. As noções de independência, improvisação, autonomia e livre-arbítrio conheceram nele seu cultor máximo. Ninguém o excedeu no dar asas soltas ao aventureirismo e ao arrojo pessoal. Ninguém mais que ele soube gozar e sofrer, a um só tempo, as peculiaridades do viver nômade. Foi, a ferro e fogo, senhor de suas próprias ventas, atuando — como se diria com expressão do velho Nordeste colonial — sem lei nem rei.
Ao contrário do que teimam em afirmar certos intérpretes, não é possível surpreender uma relação de antagonismo necessária entre cangaceiro e coronel, tendo prosperado — isto sim — uma tradição de simbiose entre essas duas figuras, representada por gestos de constante auxílio recíproco, porque assim lhes apontava a conveniência. Ambos se fortaleciam com a celebração de alianças de apoio mútuo, surgidas de forma espontânea por não representarem requisito de sobrevivência nem para uma nem para outra das partes, e sim, condição de maior poder. Por força dessas alianças, não poucas vezes o bando colocava-se a serviço do fazendeiro ou chefe político, que se convertia, em contrapartida, naquela figura tão decisivamente responsável pela conservação do caráter endêmico de que o cangaço sempre desfrutou no Nordeste, que foi o coiteiro.
Sobre o relacionamento — muito mais convergente que divergente — do cangaceiro com o proprietário rural, é interessante assinalar uma outra opinião de Graciliano Ramos, contida em seu livro Viventes das Alagoas. Com a autoridade de ter sido ele próprio, durante largos anos, um ativo vivente de uma Alagoas que era chão e tempo de cangaço, sustenta Graciliano que a aliança mostrava-se “vantajosa às duas partes: ganhavam os bandoleiros, que obtinham quartéis e asilos na caatinga, e ganhavam os proprietários, que se fortaleciam, engrossavam o prestígio com esse negócio temeroso”.2
Deve restar bem claro que o relacionamento não produzia vínculo de subordinação exclusiva para qualquer das partes. A característica principal do cangaceiro, vale dizer, o traço que o faz único em meio aos demais tipos já aqui analisados, é a ausência de patrão. Mesmo quando ligado a fazendeiros, por força de alianças celebradas, o chefe de grupo não assumia compromissos que pudessem tolher-lhe a liberdade. A convivência entre eles fazia-se de igual para igual, agindo o cangaceiro como um fazendeiro sem terras, cioso das prerrogativas que lhe eram conferidas pelo poder das armas, sem dúvida o mais indiscutível dos poderes.
Houve cangaços dentro do cangaço — convém timbrar aqui. Em nosso estudo Aspectos do banditismo rural nordestino, publicado pelo Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais em 1974, tivemos oportunidade de identificar modalidades criminais bem distintas, abrigadas sob o rótulo indiferenciado de cangaço.3
Com base no que já havia sido sentido e acusado de forma não sistemática por autores como Câmara Cascudo, Irineu Pinheiro, Coriolano de Medeiros, Gustavo Barroso, Ariano Suassuna e, principalmente, Xavier de Oliveira,4 foi possível isolar, dentro do quadro geral do cangaço nordestino, formas básicas perfeitamente caracterizadas, com traços peculiares inconfundíveis, capazes de atribuir colorido próprio exclusivo e fácil distinção entre si. Os que conhecem, ainda que superficialmente, a história do nosso banditismo rural sabem que a existência criminal desenvolvida por um Lampião, por exemplo, não pode ou, ao menos, não deve ser confundida com aquela levada a efeito por um Sinhô Pereira ou um Jesuíno Brilhante. No campo subjetivo, diferiam as motivações, os interesses, as aspirações, como diferiam os gestos, as limitações e as atitudes, no plano objetivo. Diversos foram os fatores que condicionaram a adoção do viver pelas armas em cada modalidade, como diversa se mostraria sempre a medida da conduta no respeito a certos valores, no comedimento das ações e na própria violência empregada.
São em número de três essas formas básicas: o cangaço-meio de vida; o cangaço de vingança e o cangaço-refúgio, tais como as intitulamos no estudo citado.
A primeira forma caracteriza-se por um sentido nitidamente existencial na atuação dos que lhe deram vida. Foi a modalidade profissional do cangaço, que teve em Lampião e Antônio Silvino os seus representantes máximos. O segundo tipo encontra no finalismo da ação guerreira de seu representante, voltada toda ela para o objetivo da vingança, o traço definidor mais forte. Foi o cangaço nobre, das gestas fascinantes de um Sinhô Pereira, um Jesuíno Brilhante ou um Luís Padre. Na terceira forma, o cangaço figura como última instância de salvação para homens perseguidos. Representava nada mais que um refúgio, um esconderijo, espécie de asilo nômade das caatingas, como dissemos no trabalho mencionado.
Lampião. Foto: Lauro Cabral de Oliveira, cortesia de Raul Fernandes,
Natal, Rio Grande do Norte
Se deixarmos de lado já agora as distinções — a serem estudadas com rigor ao longo do capítulo seguinte — fixando-nos na acepção de abrangência mais ampla da palavra cangaço, acepção que traduz apenas as linhas essenciais do fenômeno, tais como, o seu caráter grupal, a sua ambiência rural e o seu traço marcante da não subordinação a patrões ou chefes situados fora do bando, veremos que essa forma criminal conhece tradição bem antiga, sendo mesmo uma das mais antigas dentre todas as modalidades que floresceram e, em alguns casos, ainda florescem na região, especialmente em sua área seca.
Aprendida do índio, ao longo das primeiras escaramuças com que o colonizador português procurou firmar sua presença no solo que lhe cumpria conquistar, a guerrilha — essa mimética e eficientíssima forma de guerra sem cerimônias ou protocolos, de estonteantes avanços e recuos, emboscadas e negaças — cedo se poria a serviço do próprio colonizador, tanto se prestando a causas nobres, como a da Restauração Pernambucana de 1654, por exemplo, como a alimentar a técnica criminal trazida do Velho Mundo por alguns dos primeiros povoadores, em parte — como se sabe — sentenciados remetidos aos novos domínios pela Coroa portuguesa.
Com efeito, a necessidade de sustentar combates numa terra de topografia frequentemente irregular, coberta de vegetação de densidade variável mas de presença contínua, exuberante nas matas, nos canaviais e nos mangues das areias e do massapê litorâneos, encapoeirada e espinhosa nas faixas agrestadas ou propriamente sertanejas, terras às quais mostravam-se estranhos os grandes espaços abertos à europeia, responsáveis pela formação de toda uma doutrina militar clássica, impôs ao colonizador uma atitude de humilde atenção para com os modos de guerrear dos nativos. E ainda que tais modos parecessem, a princípio, pouco dignos a olhos reinóis, porque baseados em procedimentos traiçoeiros, à luz dos quais a emboscada e o assalto revelavam-se procedimentos recomendáveis, e o movimento de retirada, longe de merecer censuras, impunha-se sobre avanços temerários e mesmo sobre entrincheiramentos pouco práticos, vão sendo assimilados e desenvolvidos empiricamente por um imperativo de respeito à ecologia da terra por conquistar.
Crescentemente, vai-se produzindo a assimilação de técnicas militares indígenas pela gente luso-brasileira, a ponto de, no século XVII, já ser comum a essa gente “a consciência de uma arte ou estilo militar próprio do Brasil e melhor adaptado às suas condições do que qualquer outro”.5
Os movimentos de resistência ao holandês invasor, muito particularmente os que se desenvolvem após 1644, assistem à vitória sobre os padrões europeus da chamada guerra brasílica, ou guerra do mato, que nada mais era que uma guerra volante em que a espingarda de pedernal preferia aos mosquetes e arcabuzes de mecha facilmente inutilizados pela chuva e de difícil emprego nos assaltos; onde o desprestígio das europeíssimas praças-fortes resultava da convicção de que não há lugar mais protegido do que o mato; onde a estrepitosa cavalaria cedia lugar ao cauteloso caminhar a pé, e onde, finalmente, os valores tradicionais da ética militar, como a bravura, a lealdade e a honradez, viam-se substituídos pela mais completa velhacaria. Num ponto, em especial, as lições indígenas mostraram-se preciosas, para além dos aspectos do viver e do guerrear ecológicos que comentamos.
Trata-se da fundamentalíssima arte de rastejar no mato os passos e vestígios de qualquer natureza da passagem do inimigo. Numa pedra mal rolada, galho deslocado, folha levemente acamada ou de colorido esmaecido, e não só na impressão de marcas plantares, os rastejadores iam buscar todo um roteiro de descoberta do inimigo, fornecendo ainda aos perseguidores informações adicionais às vezes sofisticadas, como a disposição física dos marchadores, se iam lépidos ou estropiados, leves de peso ou carregados, se levavam feridos, se estavam sóbrios ou haviam feito uso do álcool, sutilezas nada desprezíveis na urdidura de planos de ataque ativos ou de emboscada. Nas suas Memórias diárias da guerra do Brasil, Duarte de Albuquerque Coelho fala com entusiasmo do “capitão índio João de Almeida”, por demonstrar este “filho da terra” notável habilidade em “descobrir e assegurar os caminhos”.
Também a um outro memorialista das guerras com os holandeses, frei Manuel Calado do Salvador, não passaria despercebida a importância da contribuição militar do rastejador. Ele refere um certo capitão Francisco Ramos, índio ou mameluco, assinalando tratar-se de “um dos mais espertos homens em diligência que há no Estado do Brasil, para tomar o rastro e descobrir emboscadas e andar por entre os matos e de ânimo e valor para qualquer perigosa facção, e sobretudo grande espingardeiro e mui certo no atirar”.6
Quase três séculos depois, este rastejador estará presente nas campanhas de repressão ao cangaceirismo como uma espécie de periscópio de que dependiam as volantes a cada passo. Ranulpho Prata nos dá um retrato muito vivo de seu papel e de sua condição nos primeiros anos da década de 1930. Vale a pena, num parêntese ao assunto geral que estamos comentando, reproduzir-lhe o depoimento autorizado de sertanejo contemporâneo dos fatos que narra e com os quais nos fornece um perfil irretocável dessa figura fundamental para a compreensão da arte guerreira de cangaceiros e de macacos, seus perseguidores:
Ganha quatro mil-réis diários e, à testa das volantes, que se lhe entregam de corpo e alma, numa cega confiança à proverbial lealdade sertaneja, ele as conduz meses a fio em marchas incessantes pelo deserto. O bom ou mau êxito das batidas depende dele, exclusivamente. É tudo na coluna porque é a visão, maior do que o cérebro, no sertão ínvio. Detém-se, de repente, em lugar onde a vegetação rala e o solo entorroado e pedrento nada evidenciam a olhos vulgares. Esbarra, acocora-se, examina com simples toque de dedo grosso, seixos e cascalhos, “assunta” de mão no queixo, “magina” minutos, e, volvendo a face tostada de sóis, onde chispam olhos vivazes, conta ao tenente, em fala remorada, o seu achado, apontando, com segurança inabalável, a pista do bando. Segue-a a tropa pressurosa, com o batedor à frente, “escanchado” no rastro.
Sem perdê-la, trazendo-a sempre debaixo dos olhos atentos, a marcha se estira por dias e semanas, até que as feras humanas, acuadas longe, ofereçam combate, negaceiem e escapem em fuga precípite. Recomeça novo trabalho de pesquisa de rumo, descobrimento de novo rastro, seguindo-se a caminhada exaustiva que tem como remate escaramuça quase sempre descompensadora.
Não é adivinho nem mágico, porém, o matuto privilegiado. Ele enxerga “realmente” vestígios, baseia-se, nas suas afirmativas, em indícios tangíveis, concretizados em pequena folha machucada, cinza de cigarro ou borralho, um fósforo, toiças de capim acamado, pegadas de levíssimo desenho.
O mais é ilação, agudeza, experiência de gerações, trabalho de inteligência vivacíssima e o que eles chamam o “dom”. Ao debruçar-se sobre um rastro diz se é fresco, isto é, recente ou se velho, de dias, e de quantos dias. Pormenoriza estupendamente, adiantando se após o grupo passou gente que lhe é estranha, e dissociando os sexos. E não é só pegada humana que o batedor descobre e segue. Rasteja todos os animais, avantajando-se, muita vez, aos próprios cães, dando, muito antes deles, com o rastro da caça que lhes atrita no focinho para avivar-lhes o olfato. Segue os pequenos animais, o preá, de pata minúscula, o teiú, que mal acama a vegetação sob o seu peso leve, o tatu-bola, todo delicadeza, a pisar o chão com sutileza de quem traz veludo nos pés. As próprias abelhas são “rastejadas” nos ares, seguidas no seu pesado voejo, mato adentro, até os troncos onde têm as suas “casas”. Para neutralizar, porém, a ação do rastejador, os bandidos contrapõem artimanhas e ardis. Com o fito de o desnortear, passam a andar trechos e trechos de caminho a um de fundo, todos a pisarem cuidadosamente a mesma pegada, simulando um só viajor. Invertem as alpercatas, ficando os calcanhares para a frente, produzindo atrapalhação de rumo. Quando sentem a tropa perto, pega não pega, trepam nas cercas e a firmarem-se como equilibristas desengonçados, varam quilômetros e quilômetros, suspensos do solo, onde não ficarão vestígios delatores. Vezes outras, em estradas largas, um deles desloca-se do grupo, e armado de espesso e folhudo galho de árvores, segue-o à distância, apagando sinais da marcha, “baraiando” o rastro.7
Não esquecer também que essa forma especial de guerra “oferecia a única maneira de utilização militar da camada mais ínfima e economicamente marginalizada da população local, mestiços ociosos, malfeitores, foragidos da justiça d’El-Rei, inábeis para a disciplina das guarnições como antes já se tinham revelado refratários à rotina dos engenhos”.8
Eis aí a eficiente escola militar informal em que se graduariam tanto o heroico “capitão de emboscadas” da guerra contra os holandeses, responsável, muito mais do que o soldado do Reino e mesmo o veterano de Flandres, pelo terror da gente batava, quanto o “facinoroso” e “desprezível” chefe de bandidos, o cangaceiro avant la lettre. Nas mãos de um e outro, a sabedoria comum representada pela assimilação e pelo aperfeiçoamento de um ecológico modo de brigar indígena, ao qual se juntariam seletivamente alguns dos modernos artefatos e processos militares europeus para a consolidação de uma ainda tão pouco teorizada arte militar brasileira, que irá mostrar-se aplicável, mutatis mutandis, com a mesma eficiência diabólica, em trópicos de ecologia bem diversificada, no úmido da guerra contra o holandês, tanto quanto no seco das lutas de Canudos, mais de dois séculos depois, quando a gente de Antônio Conselheiro novamente ensinará ao nosso soldado que aqui não se combate à europeia.
Descrevendo os primeiros tempos da capitania de Duarte Coelho, Oliveira Lima refere várias vezes a insegurança que a caracterizava, pela irrefreada atuação de criminosos em correrias sem fim. No século XVII, ainda mais intensa revela-se a ação de “salteadores” e “bandidos”, segundo palavras do mesmo cronista.9 Ao longo do período de colonização holandesa no Nordeste, vamos surpreender o nosso banditismo caboclo enriquecido pela presença de estrangeiros, desertores das tropas de ocupação, sendo de franceses e holandeses o contingente mais expressivo que se mesclava aos aventureiros da própria terra e aos negros fugitivos. E não ficamos nisso, apenas. Houve mesmo chefes de grupo que eram holandeses. Assim o caso do célebre Abraham Platman, natural de Dordrecht, ou ainda, de um certo Hans Nicolaes, que agia na Paraíba à frente de trinta bandoleiros por volta do ano 1641. Três anos após esta data, em 1644, os manuscritos holandeses fazem referência a um outro chefe de bandidos que já se tornara notório: Pieter Piloot, igualmente holandês.10 Eram os boschloopers, salteadores ou, literalmente, “batedores de bosque”, da designação holandesa do século XVII.
Na esteira das depredações na Bahia, a melhor revista nacional à época
coloca Lampião na capa, em maio de 1931, valendo-se de fotografia
de cinco anos antes. Foto de Lauro Cabral de Oliveira.
Foto: Cortesia, arquivo Nirez, Fortaleza, Ceará
O século XVIII não fugiria à tendência até aqui vista, mostrando-se pródigos os registros históricos no que diz respeito ao assinalamento de violências cometidas por bandidos. Não esquecer que foi na segunda metade desse século que o bandoleiro pernambucano José Gomes, o célebre Cabeleira, desenvolveu sua atividade, tão rica em peripécias que viria a fazer dele o primeiro desses campeadores a ser perpetuado pela literatura erudita da região e não apenas pela popular, campo este último em que sua presença legendária vem atravessando séculos, em versos como o pernambucaníssimo:
Fecha a porta, gente
Cabeleira aí vem
Matando mulheres
Meninos também
Ou as seguintes formas variantes, igualmente populares:
Feche a porta, gente
Cabeleira aí vem
Fujam todos dele
Que alma não tem
Fecha a porta, gente
Fecha bem com o pau
Ao depois não digam
Cabeleira é mau
Corram, minha gente
Cabeleira aí vem
Ele não vem só
Vem seu pai também11
No século XIX, presentes os mesmos fatores e condicionamentos, assiste-se ao mesmo panorama de insegurança do século anterior, mas com uma novidade: o sertão, que já se acha à época razoavelmente povoado, embora dispondo de uma economia pecuária apenas incipiente, além de envolvida em luta tenaz contra processo de decadência prematura cujos primeiros sinais datam de fins do século XVIII, começa a se converter no cenário por excelência do banditismo, até porque, no litoral, a colonização florescia em todos os sentidos, permitindo uma repressão mais eficaz como fruto da estruturação social que crescentemente se aperfeiçoava.
É evidente que com o deslocamento do foco central do banditismo para o sertão, onde aliás ele viria a receber o batismo de “cangaço” ou “cangaceirismo”,12 não desapareceria o banditismo litorâneo. O que se quer dizer é que, a partir da primeira metade do século XIX, as evidências históricas demonstram que essa forma de criminalidade passa a se desenvolver no sertão em ritmo idêntico ao da sua decadência no litoral. E mais: no sertão viria o cangaço a se requintar notavelmente, tanto sob o aspecto quantitativo quanto sob o qualitativo, pelo aporte de uma rica tradição de violência, muito própria — como vimos — do ciclo do gado, de que este sertão não foi apenas cenário, mas condicionante ecológico-cultural decisivo.
Fornecendo ao banditismo um nome próprio de sabor regional, um tipo de homem vocacionado à aventura, um meio físico de relevo adequado à ocultação, coberto por malha vegetal quase impenetrável, e uma cultura francamente receptiva à violência, o sertão não poderia deixar de se converter no palco principal do cangaço.13 Principal, mas não exclusivo, havendo algum exagero nas palavras de Graciliano Ramos quando diz do cangaço ser “fenômeno próprio da zona de indústria pastoril, no Nordeste”.14 A nosso ver, mais certo anda Gustavo Barroso, para quem “não somente nessas zonas sertanejas existem cangaceiros”. Barroso amplia ainda mais a sua concepção ao sustentar que “os bandidos não são produtos exclusivos das terras brasileiras do Nordeste”, isto porque “em todos os povos têm existido com denominações diversas”.15
Também a Câmara Cascudo essa uniformidade universal do banditismo não passou despercebida, entendendo ele que “o cangaceiro não é um elemento do sertão” e sim uma figura que “existe em todos os países e regiões mais diversas”.16 Entre os estudiosos estrangeiros que se ocuparam do banditismo rural de suas e de outras terras, poderíamos apontar, filiado a essa linha universalista, o italiano de uma Itália tão fortemente contaminada em sua época pelo banditismo, que foi Garofalo, autor do clássico Criminologia.17 A esses registros já históricos de Garofalo, de Barroso e de Cascudo, datados, respectivamente, de 1891, 1917 e 1934, veio juntar-se, nos dias correntes, o de Hobsbawn que, em seu livro Bandidos, lançado em 1969, reafirma a tese da universalidade. “Geograficamente, o banditismo social se encontra em todas as Américas, na Europa, no mundo islâmico, na Ásia meridional e oriental, e até na Austrália”, diz Hobsbawn, com base em amplo estudo comparado.18
Não somente a realidade do fenômeno se mostra assim abrangentemente universal em suas características estruturais: o mito que sobre este vai-se formando, em decorrência do adensamento da gesta que envolve o nome dos mais bem-sucedidos capitães, parece ser o resultado de processo igualmente invariável e universal, e que visto sob ângulo particularizado, com base no estudo do caso nordestino, apresenta duas facetas tão curiosas quanto frequentes: a de seu surgimento ainda em vida da personagem celebrada — não raro isto se dá muito cedo na carreira do bandido — e a da sua permanência e mesmo crescimento após a morte dessa personagem. Não havendo, após isto, novas façanhas a comentar, a permanência faz-se muitas vezes às custas de um desprezo cada vez maior pelos temas deste mundo, em benefício do sobrenatural, em cujos domínios o cangaceiro desaparecido passa a conviver sem-cerimoniosamente com os residentes do céu e do inferno.19
A despeito do que há de exato na fixação desse caráter universal — e, portanto, nem originária nem exclusivamente sertanejo ou nordestino ou brasileiro — do cangaceirismo e do processo de mitificação que parece acompanhá-lo invariavelmente, convém não esquecer o enorme papel do nosso sertão, com todas as contradições e peculiaridades da cultura pastoril, na formação da imagem que temos hoje do fenômeno cangaço. A imagem que ficou, e se conserva de modo mais generalizado em nossos dias, é cronologicamente a última. É a da década de 1920, com seu auge: 1926. Esta é a imagem de um cangaço gigante, cangaço do mosquetão, do parabelo, da bala de aço furando pé-de-pau e exigindo trincheira de pedra, do bando de 150 homens, do ataque a cidade de luz elétrica, das primeiras páginas quase diárias dos jornais, da orgia — até financeira — dos trovadores populares, da frequência às conversas do Catete e do Monroe, dos três, dos cinco, dos sete Estados da Federação. Aqui, sim, está-se diante de um cangaço tipicamente sertanejo e talvez a este e só a este tenha-se referido Graciliano Ramos quando disse ser fenômeno próprio da nossa zona pastoril. No Nordeste, com esse volume todo, de fato foi. Mas pelo volume, não pela forma, fique sempre claro.
Do casamento de modalidade criminal de si mesma rica em violência — como é o caso do cangaço — com ambiente natural e social profundamente predisposto a esta — caso da área sertaneja do Nordeste — resultaria o surgimento, a partir do meado do século XIX, de um banditismo rural cada vez mais desenfreado, findando por levar a região a clima que beirava o socialmente convulso, nas duas últimas décadas daquele século, e que foi capaz de produzir, na primeira metade do seguinte, sagas criminais de dimensões nunca vistas em qualquer outro período anterior da história do Nordeste, como as de Antônio Silvino e principalmente a de Lampião.
Cartaz distribuído no governo Frederico Costa, da Bahia, no meado de 1930, em vias de ser apeado pelo movimento revolucionário. Em 1938, morto Lampião, o tenente Bezerra receberá esses 50 contos de réis, em Salvador — valor de 10 automóveis novos — e mais outro tanto no Rio de Janeiro, da Perfumaria Lopes. Recuperação de imagem por Sandra Rodrigues
Convém particularizar melhor o assunto, o que faremos através da indicação de dois momentos máximos de recrudescimento do cangaço, selecionados a partir dos vários registros que compõem a história do fenômeno no Nordeste, na qual ele figura quase ininterruptamente como ocorrência de sentido crônico em largas áreas da região, desde as primeiras etapas do esforço colonizador.
Embora as indicações impliquem sempre em algum subjetivismo indesejável, cremos não se mostrar historicamente temerário apontar o ciclo da grande seca “dos dois setes”, no século XIX, e a já referida década de 1920, no passado, como dois momentos nos quais o paroxismo da ação desenvolvida pelos grupos em armas faz com que a habitual cronicidade do cangaço se aqueça até o ponto de ceder lugar à instalação de quadro agudo, muito próximo de uma convulsão social generalizada.
A importância de que se assinalem esses dois momentos, nos quais o fenômeno evolui do ordinário-endêmico para o extraordinário-epidêmico, está no fato de ter sido sempre possível à sociedade sertaneja — e dela não excluímos aqui o componente representado pelo poder público — conviver, sem maiores traumas, ou, ao menos, sem traumas insuportáveis, com o cangaço. Não custa relembrar que a sociedade surgida da pata do boi, da luta permanente contra o meio hostil e da afirmação cruenta sobre os primitivos habitantes era uma sociedade violenta, que vivia sob a égide do épico, naquela atmosfera “admirável nos seus efeitos dramáticos” a que se referiu Caio Prado Júnior ao comentar precisamente o tipo humano da pecuária setentrional no Brasil.20
Ninguém mais que o cangaceiro encarnou esse épico tão querido, dando-lhe vida ante os olhos extasiados do sertanejo. Por força disso, ajusta-se perfeitamente à realidade uma representação da sociedade pastoril do Nordeste em que o contingente populacional se mostre dividido entre os que apenas convivem bem com o cangaceiro e os que — como geralmente se dava com os jovens — chegam francamente a admirar-lhe os feitos guerreiros.
A palavra à idoneidade do poeta sertanejo Francisco das Chagas Batista, contemporâneo e biógrafo de um grande do cangaço como Antônio Silvino, para retratar com fidelidade o ambiente sertanejo e neste, a imagem social do cangaceiro:
Ali se aprecia muito
Um cantador, um vaqueiro
Um amansador de poldro
Que seja bom catingueiro
Um homem que mata onça
Ou então um cangaceiro21
Os surtos de cangaço epidêmico, em cuja etiologia acham-se sempre presentes fatores de desorganização social e de consequente inibição das atividades repressoras, tais como, revoluções, disputas locais, agitações de fundo místico ou político ou social, lutas de família e principalmente as prolongadas estiagens, provocavam o rompimento do equilíbrio que permitia à sociedade sertaneja viver, produzir e continuar crescendo lado a lado com o cangaceiro, com base em compromisso tácito de coexistência.
Falando inicialmente de um tempo de cangaço apenas endêmico, em que “cangaceiros bonachões preguiçavam”, mandando aqui e acolá emissário que “chegava à propriedade e recebia do senhor uma contribuição módica”, Graciliano Ramos, em artigo contemporâneo ao segundo dos momentos epidêmicos aqui analisados, assinala que “tudo agora mudou”, denunciando em seguida que “os bandos de criminosos, que no princípio do século se compunham de oito ou dez pessoas, cresceram e multiplicaram-se” e que “já alguns chegaram a ter duzentos homens”. E ele próprio conclui que, em consequência disso, “as relações entre fazendeiros e bandidos não poderiam ser hoje fáceis e amáveis como eram”.22
Nada de diverso se passou durante o outro apogeu mencionado, o que corresponde ao período da seca de 1877-79, em que também se rompe o especialíssimo compromisso de coexistência que ligava o sertanejo ao cangaceiro, por força de uma admiração mal-disfarçada pela liberdade selvagem que este último encarnava e que lhe permitia materializar, no aqui e no agora do cotidiano, o conteúdo talvez mais forte do arquétipo mental do sertanejo do Nordeste: o individualismo arrogante, aventureiro e épico, plantado ali nos primeiros momentos da colonização e conservado sem contraste, ao longo de séculos, pela ausência de contaminação externa que o isolamento sertanejo proporcionou. Mas nada disso importa agora.
Com o rompimento do compromisso, impõe-se ao sertanejo denunciar o cangaceiro mais próximo, o que passa em sua porta, malsinar o cangaço em geral, protestar, fazer tudo o que estiver ao seu alcance para obter a restauração de um clima que, se não chegava a ser jamais de inteira e completa segurança individual e da propriedade, era ao menos tolerável, no relativismo das garantias oficiais deficientes, sob cujo império mambembe sempre viveu o sertão. A seca de 1877-79, talvez a maior de todos os tempos, representa momento bem eloquente no demonstrar esse jogo de substituição momentânea do banditismo endêmico pelo epidêmico mais desabrido, a suscitar empenhos de governo igualmente especiais, em consequência do alarido do povo, multiplicado pela imprensa. Na fala com que encerrou a primeira sessão e abriu a segunda, da legislatura da Assembleia Geral do Brasil do ano de 1879, lamentava o Imperador a quebra “em alguns lugares” da “segurança individual e da propriedade”. “Às causas notórias — dizia ele aos parlamentares — por mais de uma vez trazidas ao vosso conhecimento, acresceram outras provenientes da calamidade da seca e consequente mudança da condição e hábitos da população. O governo empenha-se em combater essas causas e acredita que cessando os efeitos daquele flagelo e mediante a enérgica repressão ao crime, seja mantida a segurança individual e respeitada a propriedade”.23
Na superposição das causas extraordinárias oriundas da seca, e como tal transitórias, àquelas de caráter ordinário e crônico — “causas notórias”, segundo as imperiais palavras — contém-se toda a estrutura da criminalidade rural tornada epidêmica. A história nos mostra que esse beijo trágico une condições socioculturais básicas a uma causalidade episódica deflagradora.
À fixidez das primeiras, opondo-se à mutabilidade da segunda, que tanto pode ser uma seca como uma agitação política ou qualquer outra convulsão socialmente traumática responsável pelo afrouxamento das estruturas sociais e consequente inibição do aparelho repressor. Não esquecer o importante indicador representado pela quebra nesses momentos do compromisso tácito de coexistência entre o homem do sertão e o cangaceiro, capaz de eclipsar a admiração daquele por este e de, em decorrência, decretar uma perigosa — para os cangaceiros, já se vê — suspensão de determinadas atitudes comissivas ou omissivas com as quais o sertanejo exercia uma espécie de militância tácita e difusa em favor do cangaço endêmico, vale dizer, do cangaço moderado e tolerável dos tempos normais. Citando Bournet, autor do La criminalité en Corse, de 1887, afiança Garofalo que “na Córsega, a criminalidade endêmica, uma ou outra vez comprimida por uma forte repressão, ressurge sempre que esta afrouxa”.24
Como entender essa realidade irmã gêmea da nossa e de tantas outras que vimos acima senão pela admissibilidade de uma colaboração popular ao banditismo, representada ao menos por uma conduta omissiva? Ainda assim, pareceu-nos bem clara a ideia de que antes de demonstrarmos a quebra, por ocasião dos surtos epidêmicos, do especialíssimo compromisso que unia o homem pecuário do Nordeste ao cangaceiro, cumpria-nos evidenciar ao menos alguns aspectos dessa mais que complexa aliança, além de, como é natural, demonstrar a sua própria existência.
Aliás não é outra coisa o que vimos fazendo nestas últimas páginas: mostrar o quanto o cangaceiro realizava os valores de uma sociedade peculiar em muitos de seus aspectos, abafada pelo isolamento, agredida por todo um conjunto de fatores naturais e sociais hostis, além de inviabilizada crescentemente, sobretudo a partir de fins do século XVIII, por processo de decadência econômica que negava ao homem maiores oportunidades de ascensão pelas vias ditas normais ou legais, fornecendo ao mesmo tempo a esse homem uma via atapetada por inegável chancela cultural — que era o cangaço — através da qual ele poderia saciar os humaníssimos requerimentos de mando, prestígio, patrimônio e notoriedade, exercendo uma “profissão” cheia de aventuras, nada monótona, sedutora mesmo, pelo que nela é oportunidade de protagonizar o épico tão do gosto do sertanejo.
Que as especificidades socioculturais sertanejas mostravam-se capazes de empurrar os temperamentos jovens e mais vibrantes na direção do cangaço, não temos qualquer dúvida. Mas daí a cair neste vai um passo, a ser dado pela predisposição psicológica. Porque havia sempre os recursos heroicos da resignação e da fuga, capítulo este último em que a maniçoba do Piauí, a seringueira do Amazonas e o industrialismo de São Paulo, ao menos no período que corresponde aos dois surtos epidêmicos de cangaço aqui comentados e em ordem de sucessão no tempo, desempenharam papel de não pouca expressão.
Assim, parece-nos exagerado ver no cangaço o que a passionalidade de Manuel Bonfim o conduziu a ver: caminho “inevitável” e “único” para uma “população forte e a quem a ordem normal nenhuma possibilidade oferece de boa atividade social e política”.25
Certo na essência, ou seja, no caráter criminógeno da sociedade sertaneja por tantos de seus aspectos, o sergipano nos parece pouco sensato na dose.
Os que conhecem os fatos históricos do cangaço e os a este vinculados diretamente, como os que resultam da reação oficial à sua existência, sabem não ser fácil encontrar registros diretos dessa colaboração dada pelo sertanejo ao bandido. Na boca da polícia tais registros sempre pareceram desculpa para os reiterados insucessos, o que não deixava, em algumas ocasiões, de ser verdade. Em todo caso, por basicamente suspeitos, não surgiram em profusão e, quando surgidos, não mereceram muita importância. Igual impedimento tocava aos políticos, só que por uma outra razão: a de não desagradar a um eleitorado que jamais poderia encarar racionalmente sua condição de colaborador, não o do tipo específico, o coiteiro — não é a este que nos estamos referindo aqui — mas o genérico, aquele que, espécie de coiteiro cultural do cangaço, fez da sociedade sertaneja toda ela uma sociedade coiteira, a justificar frase que ouvimos de velho e ilustre sertanejo que mascateara, ainda menino, no Pajeú de 1914, Gerson Maranhão, que insistia em afirmar que “naquela época, todo mundo era cangaceiro”. E explicava: “todo mundo tomava partido pelo cangaceiro”. (…)
FREDERICO PERNAMBUCANO DE MELLO possui formação em História e Direito, sendo procurador federal (aposentado). Na Fundação Joaquim Nabuco, integrou a equipe do sociólogo Gilberto Freyre, de 1972 a 1987, período em que se especializou, sob a orientação deste, no estudo da História Social do Nordeste do Brasil, com maior foco em seus conflitos.
Publicado originalmente pela Revista Continente
http://lampiaoaceso.blogspot.com/2023/01/banditismo-no-nordeste-brasileiro.html
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